26.5.20

A porta sem forro


The Fall, “Touch Sensitive”, in https://www.youtube.com/watch?v=i90EMCj98es
- Invade-me a melancolia que bolça dos arriscados mapas retirados ao luar.
- É uma invasão contra a vontade?
- São todas. Conheces uma invasão feita no aprumo da maré?
- Eu posso entretecer as condições para que algo de mim se apodere. Se for exterior e me contaminar por dentro, será com o usufruto da vontade.
- Nesse caso não te será autorizado usar o termo “invasão”. A vontade que concorre para que algo do exterior se insinue por dentro de ti não admite uma invasão.
- Não podemos tentar um ponto de equilíbrio?
- Como dizes?
- O que nos é exterior pode passar a ser nossa pertença. A vontade é a caução necessária.
- Não usaste “invasão”.
- É do foro semântico. Não amesquinhemos o palco onde nos movemos. Sobrepujemos a substância ao rigor formal. Dizias no início que a melancolia te invadia. Que descaminhos justificam o açambarcamento da vontade?
- Vejo as múltiplas janelas em meu redor. Vejo-as fechadas. E depois entreabrem-se, avulsas, uma a uma. Não todas. Algumas ficam fechadas. Em algumas janelas assomam vultos, mas não lhes distingo o rosto. É estranho. Se estivesse longe das janelas, o vulto justificava a inoperância de um rosto. Não é o caso. As casas só têm janelas. Durante a noite, interroguei-me se os moradores entravam em casa através das janelas.
-  Notaste se os prédios tinham guardas-noturnos?
- Alguns. Os que aparentavam ser habitados por gente abastada.
- Ouvi dizer que os guardas-noturnos são muito diligentes na atalaia das casas. Previnem extemporâneos extravios das almas às janelas. Os eruditos advertem que as almas podem ser dissolvidas pelo ar exterior. 
- Por exposição aos ventos da melancolia?
- Correm esse risco, sim. Os diligentes curadores da sanidade pública cuidam de evitar o contágio dos ventos. Ainda está por determinar quando os ventos proveem de latitudes que contaminam as almas com o vinco larvar da melancolia. 
- Mas, em todo o caso, não tenho ido à janela e sei que fui usurpado pela melancolia.
- Não será erro de diagnóstico? Não estarás erradamente convencido da melancolia?
- Como poderei saber?
- Há lugares nas cidades que são a prova dos nove. Lugares sem mapa, a localização corre de boca em boca, em segredos cuidadosamente ciciados. Chamam-lhe lugares com as portas sem forro. As pessoas passam pela porta e ficam com a alma desenroupada. Quando a franqueares, saberás se a tua ossatura foi invadida pela melancolia.
- Temo sabê-lo.
- Como?
- E se se confirmar que é melancolia o meu diagnóstico?
- Terás ido ao encontro do tira-teimas.
- Não sei se corro o risco. 
- Preferes lobrigar na dúvida? Sentir a tempo inteiro o pulso madraço da hesitação a adejar sobre o sono?
- Prefiro. Antes ficar sem saber se foi a melancolia que me invadiu do que ter a certeza do diagnóstico. O convencimento da melancolia é um cárcere de que receio não conseguir extração. Antes ficar amordaçado pela dúvida. É menos do que um convencimento. 

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