8.5.20

Fazíamos de conta que não sabíamos das farsas (um vitral da contemporaneidade)


New Order, “The Age of Consent” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=cYx8yW3POcg
Um véu perene abate-se sobre a lucidez. O retrato fidedigno do palco em que somos todos atores. Uns fingem não o ser. Outros sabem que o são, mas assobiam para o alto, colocando-se a par dos primeiros. Outros incarnam o papel de protagonistas, detêm em suas mãos o leme que habilita o tempo e o modo no espaço da sua jurisdição.
Em cena, farsas imorredoiras. Disfarçadas de proezas dignas de odes epopeicas. A volúvel liquidez que se açambarca dos planos sólidos, adulterando a forma como os olhares decifram os fenómenos à sua volta. Desde os bancos da escola. E continuando pela existência fora, com a exposição à normalidade castradora que tem na imprensa aliado de primeira instância – quase a casa indeclinável onde bebemos na fonte os rudimentos do que interessa saber para escorar o estado geral de fingimento. As farsas nunca são apresentadas como farsas. Os farsantes têm um séquito arregimentado para preparar as loas e as genuflexões devidas, autênticos mestres da retórica da falácia, vogando de fingimento em fingimento pela mão estrepitosa da mitomania.
E nós, atores em palco sem o sabermos, ou atores com consciência da sua posição, mas sem vagar para escrutinar os meandros do teatro de que somos pares, fazemos de conta que fingimos. Uma dupla farsa. Fingimento, por nos sabermos enganados pelos eventos e pelos atores que os manobram. E fingimento, por querermos fingir que não sabemos do fingimento. Para sossego dos mandantes, que preferem suseranos amestrados, desprovidos de sentido crítico. Fingimos e somos culpados por nos deitarmos no pântano do fingimento. Culpados por admitirmos a palco uma casta de fingidores.
É tanto o medo das castas superiores, que o menor laivo de crítica é abjurado sem demora, devolvendo a injúria maior com a ajuda do ataque pessoal, misturando o gérmen da desonestidade intelectual para amesquinhar os oponentes e os apoucar por não serem agentes da “consensualização”. Um lugar onde a dissidência é apostrofada com desembaraço é um convite à perpetuação da farsa.
O método é a teimosia. Nos dois sentidos. Os cultores do sistema enraizado teimam na fiscalização dos detratores. Se um dissidente cai na apertada malha do radar, é desmembrado sem piedade. Mas a teimosia tem de funcionar no sentido contrário. Os poucos que se furtam ao lugar sitiado pelo fingimento não podem capitular. Pode-lhes valer dissabores vários, o aquartelamento na trincheira onde são arrumados os que ousam tresmalhar, a perda de regalias, o isolamento, provavelmente uma soez orquestração para os diminuir resgatando ao património pessoal uns podres que serão a prova da sua desqualificação. Mas não podem desistir. Para não se juntarem ao numeroso exército acautelatório do fingimento.
O método é o pior dos sintomas do fingimento em curso. Expõe a mesquinhez dos artesãos das farsas da contemporaneidade. Não se defendem das críticas; atacam a personalidade de quem as tece. São a imagem da pequenez que adeja com o odor pérfido da tutela das almas insubmissas.

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