4.5.20

Praça Moderna


Mão Morta, “Istambul”, in https://www.youtube.com/watch?v=PoPQyGcBWUw
O vento engasga-se. Ao longe, o minarete vocifera a laudatória ladainha contra os hereges. Não sabe mal ser herege. Pela noite, quando as sombras se enfeitam com a silhueta das luzes, nada fica ao acaso: os lugares-tenentes da dissidia envolvem-se na neblina e combinam conspirações corpóreas que consomem a gente comum. Ali à frente é a Praça Moderna. Não é o que parece: os atavismos não foram proscritos.
Uma mulher parece perdida. Talvez embriagada, ou drogada. Cambaleia, encostada às paredes carcomidas pela vida austera da cidade. Um sacerdote cruza-se com ela, a más horas (os sacerdotes não andam na rua a más horas). Ignora-a. Se soubesse as prescrições da Praça Moderna cuidaria de salvar a alma errante. O hábito da cabeça aos pés explica o diletantismo do sacerdote. Impede a lucidez.
No jardim sobranceiro à Praça Moderna, só os patos que habitam o lago testemunham a noite ordeira. Dizem: a noite ordeira – e não estão enganados. Tirando uns apóstatas que se refugiam na frugalidade da noite, a noite é desabitada. 
Um tumulto assalta uma viela adjacente da Praça Moderna. A meio da tarde, entre a poeira que sobe às bocas com o basalto do calor, uma correria demencial perturba o bazar. Polícias correm atrás de jovens meliantes. Soube-se depois, no procedimento da identificação, os rapazes haviam fugido do asilo. Não queriam roubar. Queriam ver como se portavam os transeuntes quando a gritaria e a correria fossem espalhadas na viela e os comerciantes, com medo do prejuízo, se juntassem ao tumulto.
 Numa das entradas da Praça Moderna há uma casa de chá. O chá é típico na cidade que alberga a Praça Moderna. O enólogo finge-se interessado pelas tisanas e pela explicação da lojista em mau inglês. A parceira do enólogo está ao corrente do fingimento. Sabe que ele era alérgico a chá. No fio do crepúsculo habilitado pelo entardecer, ela assiste, inebriada, à encenação da mentira: o enólogo encomendou umas dezenas de embalagens de chá. Não lhe ocorre outra explicação se não o deferimento de um seu prazer, generosamente satisfeito pelo enólogo, seu amante. Os cânticos do minarete, que então se faziam ouvir, não são contra o amor (pois não)?
A Praça Moderna é o desenho de uma cidade ancestral. O paradoxo que se consome por dentro de si. Os anciãos sentados num banco, protegidos do calor asfixiante pela sombra de árvores caritativas, enrolavam e desenrolavam as contas nos dedos e ensurdeciam a praça com o silêncio enquanto jogavam um jogo típico. Os comerciantes de rua fustigavam a praça com os pregões insistentes, incansavelmente tentando resgatar os turistas do torpor de quem habita um lugar desconhecido. No ar, a fusão do calor com a incandescência da multidão. Sem fronteiras, que os comerciantes parecem diligentes no manuseamento de idiomas mil.
Afinal, a Praça Moderna é que alojava a cidade imensa.

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