21.8.20

Antes morfina (short stories #252)

Einstürzende Neubauten, “Blume”, in https://www.youtube.com/watch?v=lVZ1c_VMWYM

          Do aeroporto, nem as aves voavam. Se ao menos os engenheiros se dispusessem na véspera dos estiradores e ao vespeiro tirassem o ar todo, os demais não seríamos modestos nos encómios. As estradas desenham-se nos contrafortes, entre a luz timorata da alvorada e o mar que bordeja a paisagem ao longe. Sinuosas, cansativas, as estradas. Os corpos, divididos, pertencem aos dois lugares. Estão vacinados contra o vespeiro que os cerca, quotidianamente. Não se precatam, que todo o tirocínio pelo tempo fora é a combustão que incendia a vacina contra o desmodo do mundo. Alguém pressentia, entre os suores frios da rebeldia, que ninguém se furta ao medo que se hasteia nos nós dos dedos trémulos. Por mais que sejamos lestos a reivindicar um lastro de experiência, os contratempos sobrepõem-se. Confecionam-se as juras de não mais lágrimas serem vertidas, mas nem sempre as juras são abrigadas das intempéries. Pergunta-se: e não há um antídoto que vista a dor do seu oposto? Não é por acaso que somos atraiçoados pelos sentidos: são eles que nos combinam com o indesejado, com os degraus em que tropeça uma dor excruciante, o lamento que se desenha nas imediações de um pensamento sem coalho. Um antídoto – diz-se. Reifica-se a morfina. Aval das almas que foram presas da mortificação e a quem foi prescrita a morfina salvífica. Confirmando o princípio geral da hibernação, o telúrico amplexo que omite a dor, nem que seja mercê de um disfarce. Mas o disfarce é uma mentira. Um santuário com numerosa frequência. Alguém pergunta (possivelmente treslendo uma intenção censória na ativação da morfina): quem se insubordina contra a possibilidade de asfixiar a dor, se essa é a serventia da morfina? E a resposta: de acordo; antes a morfina do que as lodosas avenidas em que se enreda o mundo sem carta de recomendação.  

 

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