31.8.20

Refinaria (short stories #258)

Tindersticks, “Marbles”, in https://www.youtube.com/watch?v=i5vwo08DTvI&frags=pl%2Cwn

          Punhos de renda – dizia-se: punhos de renda. Alvitres sofisticados, fermento lógico dos pergaminhos distintivos. Como se houvesse uma refinaria imaginada que destilasse todas as impurezas e para o exterior sobrasse uma imagem asseada, dir-se-ia, assética. Uma pessoa à prova de falhas. Uma pessoa na antítese das pessoas. Um logro, bem vistas as coisas. Ninguém sabia onde estava a refinaria. Ninguém sabia como era o desenho da refinaria. Nem do paradeiro do seu engenheiro-chefe. (Alguns, iludidos pelo temor da fragilidade dos Homens, insinuavam que o engenheiro-chefe era deus, na sua omnipresença.) Eram os bons costumes que pendiam sobre a conduta dos diletos filhos dos punhos de renda. Só a eles era permitida a convivência com a refinaria. Os demais, atirados para a pútrido lugar da boçalidade. Pois por mais que fosse ocasional, a boçalidade selava a inacessibilidade da refinaria. Ficava por saber se os quase-eleitos que ficam a um pequeno patamar da refinaria tinham entoado essa ambição. Aliás, que seja conhecido (e que tenha vindo a palco por testemunhos para memória futura), não havia sido inventariado ninguém de que se pudesse certificar ter passado pelo crivo da refinaria. Mas as pessoas (algumas pessoas) insistiam na existência da refinaria; não sabiam descrevê-la, nem identificar o seu paradeiro – era como se a refinaria fosse uma entidade metafísica, ao jeito dos que creem em deus (“ele existe, mas não sabemos da sua substanciação; existe, apenas, e essa existência pacifica-nos”). E, todavia, os punhos de renda eram sucessivamente evocados. Mas ninguém conseguia descrever os detalhes dos punhos de renda: de que fazenda concreta eram feitos, qual a cor da renda, e se os folhos que se desprendiam das extremidades das mangas eram exuberantemente barrocos ou de uma discrição enfática. Está por provar quem os enverga. E se existem (e se precisam de existir, fundadas sejam as dúvidas sobre este quesito).


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