27.8.20

A coreografia dos lagostins e outras considerações avulsas sobre a aquietação das consciências com a intermediação da publicidade (short stories #256)

Yo La Tengo, “Friday I’m in Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=jJwTSTlpsak

(Mote: Se os gurus da publicidade soubessem o que é o surrealismo...) 

            Os lagostins dançam na companhia de outros moluscos e peixes que enfeitam a banca do supermercado. Os tomates, pimentos, cebolas e demais vegetais ensaiam uns passos para a exultante dança às escondidas. “É quarta-feira, é dia de festa” (na grande superfície comercial). A festa é interpretada pelos cadáveres dispostos (expostos), para gáudio do consumo e das correspondentes necessidades alimentares. Faz-se jus a uma sexualidade insinuada, mas só vagamente reprimida: os mantimentos, em sua cadavérica forma, estão expostos (dispostos) nos palcos diversos da grande superfície comercial para nosso prazer, mas eles, os mantimentos, é que celebram a entrega sacrificial; os lagostins e os moluscos e os peixes e as carnes e os vegetais vão ser comidos e estão em êxtase só de anteciparem o ato. Dir-se-á: é apenas publicidade (da má). Mas toda a mensagem enviada esconde umas entrelinhas, por mais que sejam descobertas pelo exegeta (e por muito que o exegeta liberte a mensagem de umas algemas que só ele terá distinguido). Os lagostins dão o mote para o grande festim que (adivinha-se) tem lugar em hora muito matinal, antes da hora de abertura da grande superfície comercial. Os lagostins e demais mantimentos, nas suas diversas formas e feitios, sobem o tom da festança porque “é quarta-feira, é dia de festa”. E a festa traduz-se na compra dos mantimentos com descontos, com o selo de generosidade da grande superfície comercial. Ó humanos na qualidade de espetadores da publicidade: vão ao supermercado sem constrangimentos de consciência, que a vossa carteira agradece aos mecenas que pagaram a publicidade e, afinal, os mantimentos estão em festa, à espera que os comam. Quem disse que a comida não é um ato sexual?



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