Podia dizer o que apetecesse. Subido a palco, deparava com o silêncio próprio da ausência. A plateia preenchida por cadeiras vazias, próprias do silêncio intruso que se abateu como uma máscara que soezmente desfez os rostos a matéria anónima. Podia dizer o que apetecesse. Não que o não dissesse se a plateia estivesse repleta. Pelo menos, quero acreditar que não seria desembaraçado de coragem se em vez do silêncio de uma ausência completa houvesse pessoas diante de mim. Diria que sufragamos as lágrimas perdidas nos contratempos avulsos de que vamos sendo predadores. Diria que não nos entediamos se não nos projetos vagos que encontram sempre a mesma esquadria. Diria que somos todos cabeças pensantes, uns com receio de o exibir e outros ajuizando que o dever de recato impõe a modéstia. Diria que não importam os ultrajes, os que vemos perpetrados sobre os outros, nós como apeadeiro por onde passa a ofensa, e muito menos os que nos são dirigidos (sobretudo os que não temos conhecimento). Diria, ainda sem remorso por o ter dito, que há palavras que se fundem na intransigência e, todavia, não ficam paradas à boca de cena. Diria que não deve haver ninguém que fique preso ao paradoxo da indecisão, quando no limiar do abismo fica sem saber se a fala deve ser ativada ou devolvida ao silêncio. A récita podia demorar horas a fio. Quem nunca teve um leve azedar do céu da boca pelo que podia ser dito? Deviam ser orquestradas récitas em modo avulso, haver um lugar próprio – talvez o palco num teatro – onde a fala pudesse romper as algemas que a limita. Como se fosse a fusão do londrino Speakers’ Corner com um austero confessionário. Sem padres por perto, nem mirones que olham para o orador pela lente de um olhar apenas lúdico.
3.8.20
A récita sem quórum (short stories #238)
Queens of the Stone Age, “The Devil Has Landed” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=XgLcnfp9s_M
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