7.8.20

Duzentos à hora, as árvores com silhueta esbatida (short stories #242)

Gorillaz, “Clint Eastwood” (with Snoop Dog) (live at Glastonbury), in https://www.youtube.com/watch?v=HKdhbp_JHcI

          Não digas que o tempo está à nossa espera. Não sei como hei de ver as costuras da frase. Podias querer dizer que não temos pressa, que o tempo tem o seu vagar e que se formos gulosos, na ânsia de perder o tempo que não se perde, acabamos por tudo deixar à consideração do acaso. Ou podias apenas dizer o contrário, que não podemos esperar porque o tempo está à espera e cada minuto de letargia é um minuto que perdemos no acaso da desatenção. Temos que rodar a duzentos à hora, mesmo que as árvores fiquem com a silhueta esbatida – mas, o que nos interessam as árvores, se elas estão agarradas firmemente pela raiz e nós perdemo-la no sortilégio do tempo? Um certo medo sobe à boca se a duzentos à hora avançarmos pela estrada sem nome onde as árvores, de terem a silhueta esbatida, perdem também o nome. O medo não será por irmos a duzentos à hora, que julgamos ter arnês para a velocidade em excesso. Também não será pela possibilidade de contravenção. Receamos que o tempo seja uma fina camada da memória e que se extinga com a cobiça da velocidade. Vamos a duzentos à hora e não são só as árvores cuja silhueta se esbate: pode ser tudo, até a própria noção do tempo. Oxalá não tivesses dito que o tempo está à nossa espera. Ou então, que eu tivesse entendido que querias dizer que não havia pressa, que o tempo é paciente e somos nós que o adestramos na incomensurável dose de vontade que nos move. Sempre tive medo do tempo. De ser escasso. E sempre quis meter-me a duzentos à hora, para ser mais depressa a casa de chegada. Só então percebia que o curto espaço entre dois pontos longínquos é a definição de tempo perdido.



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