24.8.20

O pecúlio grande (short stories #253)

Gorillaz, “Momentary Bliss”, in https://www.youtube.com/watch?v=QTt7301PR5k

          O motor grande vocifera contra o asfalto. As vozes não sabem dos abismos que nascem nos fiordes, estão longe. Há manhãs altivas que se desembaraçam no cais acabado de ser noctívago. Paredes-meias com a fala estremunhada, sobem ao sangue os verbos que hasteiam a luz clara. Promete-se um dia fecundo. Um dia diferente, porque a ousadia redige os termos da diferença. Será um dia cheio, o relógio será testemunha de cinquenta e cinco horas (pelo menos). Às vezes pensa que não devia tomar o dia pela ousadia do pensamento, não vá o dia (que não é seu domínio) atraiçoar o pensamento. Não será empreitada impossível se arrebatar os minutos possíveis e os impossíveis, porque as empreitadas que transbordam os limites transfiguram o possível em impossível. Deita ao sal do tempo o sangue que transita pelas veias, o sangue efervescente, a condizer com a frenética encenação que saiu a palco. Os contratempos não chegam a ganhar nome. O dia está prometido à fecundidade. O seu rosto prolixo há de quadrar com a jura alinhavada pelo pensamento sem limites. Como o dia passa pelo crivo de cinquenta e cinco horas, parece interminável. Não sobra tempo para todos os feitos que foram ajuramentados. Se fossem sessenta horas, ou até mais, não seria um fartote. O entardecer arrasta-se, como se fosse aliado da jura congeminada. Não há de faltar muito para resgatar o dia em seu cômputo. Antes do deitar, que o deitar foi arrastado para dentro do dia consecutivo, e não há nisto tresleitura da medida do tempo. O labirinto não provê uma grelha de leitura. Será a honestidade dos pesos usados a servir de juízo. O melhor é esperar pela porta aberta pelo sono. O pecúlio grande está a salvo, arrecadado no silo da memória que não se dissolve no tântalo do sono. 


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