25.8.20

Quebra mar (short stories #254)

James Blake, “Are You Even Real”, in https://www.youtube.com/watch?v=OL_-bakSRlc

          No império das marés vivas, não se importuna a terra. As pessoas não se amedrontam: o quebra mar irrompe mar adentro e dissolve a fúria das marés que podiam tornar o tempo num desassossego. Quem se desliga dos meandros da memória (ou quem a conserva numa fina camada) não se interroga sobre a empreitada vultuosa que foi precisa para construir o quebra mar. Quanta pedra foi preciso arrancar ao subsolo para acamar os exigíveis alicerces do quebra mar? Que cálculos a engenharia industriou para certificar a função esperada do quebra mar e a sua segurança? Quantos braços e quantas máquinas tiveram de subir a palco para amansar o mar? Que águas mansas passaram a ser sulcadas pelos navios que visitavam o porto? Quantas vidas foram salvas pelo quebra mar? Podem uns envelhecidos estafetas da antiguidade, que se autointitulam curadores da natureza sem reparos, protestar contra o quebra mar: argumentam que a áspera língua de terra roubando mar ao adentrar no mar é um espécime artificial, o redesenho da geografia, uma intervenção humana que adultera a ordem natural. Podem contestar a nova gramática das correntes marinhas, protestando contra a ingerência do Homem no império da natureza. Quantos perecimentos seriam precisos para os empedernidos cultores da antiguidade, os zeladores da inviolável natureza, se convencerem que a crueza da natureza pode ser assassina e que, sendo-o, a intervenção humana que a domestica não é uma intromissão? Continuariam advogados de defesa de uma natureza virginal se entre os seus houvesse danos causados pelo mar iracundo? Indiferente a todas as interrogações, e ao pleito entre quem o defende e quem ainda não se convenceu da sua utilidade, o quebra mar avança pelo tempo fora como avança mar adentro, domesticando um mar que outrora nunca foi generoso com esta terra.


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