19.8.20

Servos (short stories #250)

Keep Razors Sharp, “I See Your Face” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=f2m7vXwmPfg

          Partilha o sal que o teu corpo sorri. Num recanto algures, longe do sol disfarçado de discretos néones com a luz intermitente vertida sobre nós. Que verbo conjugamos? Que sejam órfãos os embaraços que se desenham à frente dos pés; se assim não for, não capitulamos e temos de vencer no xadrez imponderável. A pele musica a noite onde se aninham os corpos exangues. Serve para isso, a noite: fortaleza onde os lábios selam as sílabas quiméricas antes que o sonho seja o beneplácito de sonhos por dentro de sonhos sonhados. E dizemos: seremos servos de um amor matricial, a base de todas as coisas, a peça centrípeta de onde gravita o resto do mundo. Servos, mas de uma servidão que se antepõe à fratura da vontade, dela sua máxima expressão. Não colhemos as flores nos campos demandados. Deixamos, atrás e à nossa volta, a exuberância de flores variadas, e atiramos com a orquestração de cores contra a monotonia dos vendilhões. Sorri, o teu corpo, enquanto se exacerba o magma interior. Tocamos com as mãos os poros acetinados que falam o desejo. Jogamos ao sexo forte. E é como se o mundo interrompesse enquanto espera que a tempestade dos sentidos encontre o seu cais. Repetimos o apoderamento da servidão que desmente o sentido comum, desdenhativo, de servidão. Pois somos servos do que mais queremos ter, uma rosa que enche a mão inteira com o nome que dizemos em sílabas vagarosas, um ao outro. Se fossem as mãos as arquitetas do mundo, elas desenhariam arco-íris até onde não chove, moveriam as nuvens quando os olhos peticionassem o dia soalheiro, trariam um pouco do céu para adocicar os planos terrestres que fossem apóstrofes da carência, seriam poetas imortais. Como se tudo fosse imorredoiro – e é imorredoiro, pois temos nas mãos a medida do tempo e não dizemos o segredo a ninguém.


Sem comentários: