30.6.06

Música de protesto


À roda da conversa, o tema era a música de protesto. Passei a estar deslocado do contexto. Os outros falavam, atiravam as referências que preenchem o imaginário romântico de sucessivas gerações. Eu escutava-os. Os nomes trocados, como se estivessem numa troca e cromos para preenchimento da caderneta, não eram desconhecidos. Como não é música que afine os meus tímpanos, sou desconhecedor da obra. Até o inglês conhecia mais da poda.
O meu descompasso com a música de protesto é larvar, algo que entra no domínio do preconceito. Admito-o: fico de pé atrás pelo lastro ideológico que acompanha a malta das canções de protesto. E como não me revejo na militância e, sobretudo, nas causas entoadas numa lírica que arrebata as militâncias fiéis, a melodia soa-me ao mesmo odor pestilento do que se esconde na mensagem. E, ainda assim, tenho que reconhecer que trinta anos depois de termos dito adeus à tenebrosa ditadura, ainda adeja uma aura de romantismo nos expoentes da música de protesto.
Foram importantes vozes de protesto que, à sua maneira, iam minando os alicerces do Estado Novo. Paradoxalmente, o 25 de Abril trouxe-lhes más notícias. O rótulo "canção de protesto" perdia grande parte da razão de ser. Deixavam de lutar contra as purgas da polícia política, contra os silenciamentos da censura, contra a falta de liberdade de expressão. O desencanto, alimentado pela perda de causas que servissem de musa inspiradora, durou pouco. E se o sonho da satelização soviética ainda perdurou até às primeiras eleições, doravante as suas causas revestiram-se com nova roupagem. Voltavam a lutar contra o "fascismo". Não o "fascismo" enterrado em 25 de Abril de 1974. Um novo "fascismo", um fantasma que povoava as suas mentes atormentadas, em frete visível aos patronos políticos a quem a canção de protesto era tão conveniente. Para arrebatar gratuito tempo de antena nos programas de variedades, na doutrinação das massas. E para enfeitar a festa do Avante.
Intriga-me o rótulo de romantismo que costuma andar de mão dada com a canção de protesto. Denunciam as injustiças sociais. Denunciam as perseguições dos poderosos que asfixiam os pobres e os indefesos. Proclamam-se penhores dos direitos dos oprimidos, o que logo os investe na aura de romantismo. E, no entanto, há todo um programa político indisfarçável, o tal lastro ideológico que é a cama onde repousam os lençóis da música que compõem. É aqui que encontro a incoerência: ou de como o romantismo pespegado à canção de protesto não condiz com a obscura militância ideológica.
São os arautos da liberdade. E ainda defendem um modelo que cerceou as liberdades individuais, asfixiou a liberdade de expressão, condenou as massas a uma vida miserável. Recusam-se a olhar de frente para os ventos da História. Fiéis aos compromissos da ideologia, continuam a achar que o mundo pútrido que a queda do muro de Berlim desnudou é o paraíso da felicidade humana. Nem que esse mundo também fosse feito de censura, de perseguições políticas, do medo instalado de um dia qualquer a polícia política bater à porta porque houve uma denúncia de um invejoso colega de trabalho que mentiu a nosso respeito.
Revejo tudo isto e continuo sem perceber como o rótulo de romantismo permanece vivo na música de protesto. A menos que haja uma definição desconhecida de romantismo. A menos que o romantismo seja trucidar os ímpios interesses do "grande capital", que andam sempre mancomunados com o poder vigente, com a bênção dos tribunais, das polícias, das autoridades eclesiásticas. É romântico denunciar os compadrios, semear teorias da conspiração que antecipam o pior dos mundos para os oprimidos, sempre oprimidos por uma minoria que alarvemente se alambaza com lucros infindáveis. São os novos "fascistas", os "fascistas da democracia", de uma democracia apenas formal. E como a inspiração destes compositores de protesto exige um fantasma omnipresente, há que os inventar mesmo quando eles foram silenciados no passado.
Com o tempo eles envelhecem, os cantores do protesto. Uns, já mortos, entraram na galeria da imortalidade pela obra que legaram. São intocáveis, como heroificados são os que nos deixaram cedo de mais, com tanta obra mais por legar. As gerações começam a passar e a renovação dos artistas da música de protesto tarda. À imagem da pirâmide demográfica, com o angustiante envelhecimento que não augura nada de bom. Os ouvidos que se deleitam com o património da canção de protesto vão repetindo as audições, à falta de renovação da obra. Talvez daqui a duas gerações a música de protesto seja peça antropológica, uma mera curiosidade da história, uma nota de rodapé que teve o seu lugar num contexto muito específico. E que o romantismo regresse ao seu lugar original.

29.6.06

Ver a publicidade como se fosse um puritano

As cervejeiras não poupam em imaginação (e em dinheiro) nas campanhas publicitárias. Chegado o Verão, quando o calor aperta e convoca a dessedentar com um copo de cerveja, a publicidade à bebida ganha um protagonismo ímpar. Na publicidade, a imaginação é a palavra-chave. Para o bem ou para o mal, pois há campanhas que tresandam a mau gosto, a antítese do que deve ser feito para fidelizar consumidores.

A mais recente campanha da Super Bock desperta no consumidor o imaginário do Verão no seu melhor: a praia, as meninas que passeiam no areal corpos bronzeados e secos de adiposidades. A imagem é sugestiva. O calção vermelho esconde uma esbelta modelo com as medidas certas. Os slogans fazem o resto no chamariz publicitário: “até a abertura é cool” e “aberta a novas experiências”. Há qualquer coisa de sublime na mensagem, sobretudo quando ela se associa à imagem veiculada. E como vivemos numa era em que é fácil esquadrinhar teorias da conspiração, quando vi as imagens ocorreu-me ensaiar a reacção de dois puritanos bem diferentes, mas ainda assim irmanados na denúncia do abjecto (para eles) anúncio. O primeiro puritano é um rato de sacristia, penhor da moral e dos bons costumes, guardião da assepsia católica. O segundo puritano é uma exacerbada feminista.

Diria o rato de sacristia vindo das catacumbas da Opus Dei:

E vejam, irmãos, como este anúncio da cerveja é uma tentação demoníaca. A sugestão de todos os prazeres carnais, como se a entrega a esses prazeres fosse a realização suprema de um homem. Desvalorizam-se os misteres da alma. Que um homem goste de acariciar a sede num copo de cerveja em dia de calor, decerto Jesus Cristo não se oporia. Que matar a sede traga para o imaginário corpos femininos em trajes menores, ainda por cima em poses sugestivas que remetem o imaginário de homens com hormonas aos pulos para aquilo que nós sabemos – mas que a nossa Opus manda reprimir, nem que seja com as flagelações corporais – isso é intolerável.

E vejam, irmãos, como as mensagens dos publicitários são tudo menos inocentes. Quando nos entra pelos olhos o calção vermelho, lá está, é a cor do demo, o vermelho infernal que denuncia a impureza da entrega aos prazeres da carne. As nádegas (rabo é palavra proibida…) da menina ligeiramente emproadas para trás, e vistas por trás, imagem tão inocente como é o anti-líbido de uma freira escondida nos seus trajes monásticos. Como se as imagens não falassem mais que mil palavras, estas vêm ainda desajudar mais.

Quando os publicitários de serviço a esta tenebrosa causa assinam mensagens como “até a abertura é cool”, percebe-se onde querem chegar. Podem dizer que a minha mente é um labirinto escabroso, sempre a ver o mal onde há apenas a ligeireza de inócuas mensagens. Não caiam na esparrela, irmãos. Quando dizem que “a abertura é cool” e olham para as nádegas (não podemos dizer rabo…) suavemente emproadas para trás, o que vos ocorre? Quando se fixam nessa imagem sugestiva e lêem “aberta a novas experiências”, digam, irmãos, se o vosso instinto não sugere que o calção vermelho faz as vezes de cápsula de uma garrafa de cerveja gelada, mesmo a pedir para ser aberta. Que é como quem diz, o calção está mesmo a pedir para ser despido, desnudando as partes do corpo da menina que, por pudor, não ficaram expostas ao bronzeado solar.

Por isso, irmãos, protestem de peito aberto, vozes ao rubro, contra esta diabolização do consumo. Bebemos cerveja sem precisar que nos forneçam o engodo de meninas esculturais. A cerveja não tem nada a ver com os prazeres carnais. Porque a tolerância de Deus não se concilia com os prazeres proibidos. Por isso, irmãos, boicotemos a Super Bock. Até que a empresa ganhe vergonha e deixe de nos confundir. Já basta o calor do Verão para nos atormentar, mais as mulheres que vêm para rua escandalosamente pouco vestidas, para nossa mortificação interior. Não precisamos que a Super Bock incendeie mais o tormento que é o Verão para estes servos do Senhor
”.

A retórica da segunda puritana – a feminista empedernida – é mais singela:

É nestes pequenos sinais que se confirma a desigualdade de sexos que persiste na nossa sociedade. O corpo feminino é instrumentalizado até para coisas sem relação aparente com o corpo de uma mulher. Sabemos que o protótipo do consumidor de cerveja é o homem marialva que continua a acreditar que a mulher foi feita para servir os seus caprichos. Talvez isso explique a associação da imagem de um corpo feminino ao consumo de cerveja. Até porque esta homenzarrada é como os cães: os que mais ladram são os que menos mordem. Quando estão com meia dúzia de cervejas no bucho, vomitam um extenso catálogo de piropos que soam ao que há de mais execrando para a dignidade da mulher. (Se se esqueceram, convém lembrar que a mulher também tem dignidade.) Se fossem chamados a passar da teoria à prática, era um deserto de ideias…

Aqui no movimento feminista, propomos às nossas simpatizantes que remetam os seus companheiros à total abstinência se eles não se recusarem a praticar a abstinência de Super Bock. A mudança é feita destes pequenos gestos. Somados são grandes empresas que mudam a agulha do mundo. Para os publicitários, que sabemos estarem em conluio com o grande capital (a excrescência do império masculino que teima em dominar a sociedade), perceberem que somos uma força mobilizada e que temos a força para boicotar os produtos que eles publicitam ao arrepio da igualdade dos sexos.
Restava saber se uma feminista lésbica teria a mesma reacção exacerbada perante o spot. Ou se, embevecida pelo corpo da menina, deixaria o silêncio falar mais alto…

28.6.06

Mais achegas para a inutilidade de competições desportivas entre países: "o futebol é o prolongamento da guerra por outros meios" (George Orwell)

Como confessei há dias, decidi ser espectador assíduo do campeonato mundial de futebol. Espicaçado pelos intelectuais assépticos que sentenciaram a barbárie do futebol, alonguei o corpo no sofá e só tenho perdido jogos por imperativos profissionais (não tenho os mesmos privilégios que os senhores deputados). Foi um exercício pedagógico. Se é verdade que, de repente, me apeteceu ver uma enxurrada de futebol (o tal efeito anti-Pacheco Pereira), aproveitei para confirmar ou desmentir a ideia que fui sedimentando acerca de eventos do género: uma anacrónica competição onde se enaltece a grandeza da(s) pátria(s) contra as demais.

Ontem, no final de mais um jogo, o comentador surpreendeu com uma citação de Orwell: “o futebol é o prolongamento da guerra por outros meios”. Se as rivalidades entre clubes se explicam pelas desavenças regionais, muitas vezes pelos antagonismos figadais dentro da mesma cidade entre clubes de bairros diferentes, nas competições entre países a irracionalidade é singular. Também confesso o pecadilho. Ontem, ao ver a disputa entre a França e a Espanha, dei comigo a pensar: como seria bom que os dois perdessem! Quando o Brasil joga, sou sempre pelo adversário, qualquer que ele seja. Neste campeonato deixei-me seduzir por um certo espírito terceiro-mundista: a minha simpatia estava do lado das equipas mais fracas, os “outsiders”, sobretudo as equipas do continente africano.

Durante o jogo entre a França e a Espanha, o comentador revelou que estava em causa uma intensa rivalidade que ia além do desportivo. Uma rivalidade com contornos sociológicos. Tinha razão. É nessas competições que o irracional sentimento de pertença vem à superfície. Fervilha a exaltação quase religiosa de ser nacional de um país. A irracionalidade fala mais alto naqueles povos que desfilam a sua grandiosidade, como se fosse desígnio divino. Espanhóis e franceses são mestres na arte do chauvinismo. A essa irracionalidade reage outro tipo de irracionalidade: a antipatia que tais equipas provocam, uma reacção contra a arrogância, a altivez, a superioridade que fabrica vencedores antecipados. E depois há a gratificação suprema de os ver empacotar as malas quando regressam mais cedo a casa, com o travo amargo da derrota, finalmente reduzidos à sua insignificância.

Tudo isto é irracionalidade – ainda que seja uma reacção fermentada pela irracionalidade chauvinista desses países. Quando a pós-modernidade aponta para a emergência de uma cidadania universal, compatível com a natureza humana que faz de nós iguais entre iguais independentemente do lugar da nascença, o exacerbado sentimento de pertença fomentado pelas competições entre países é um atavismo sazonal. Assoma de quatro em quatro anos, diriam os que cultivam o optimismo de ver coisas boas até nas imagens mais sombrias. Contraponho: a sazonalidade é de dois em dois anos, porque os jogos olímpicos intercalam estes campeonatos (e coincidem com o campeonato da Europa de futebol).

Se cultivar a cidadania universal é um sinal de pós-modernidade, o futebol vive na idade das cavernas. A juntar ao frémito de ser orgulhosamente nacional do país envolvido na competição, vem o sentimento anti-desportivo que ganhou raízes na modalidade. Com o advento da lógica Mourinho (o que conta são os fins, valendo todos os meios para os atingir), a expressão fair play é um amor platónico, apenas um imaginário inculcado nas criancinhas que se deixam seduzir pelos heróis da bola. Os dois ingredientes – exaltação patrioteira e falta de fair play – compõem um cocktail explosivo. São a sagração do que há de mais irracional dentro da pessoa. E se parece que a humanidade atingiu a idade maior que a faz rejeitar os conflitos bélicos com a frequência que a história testemunhou, as guerras ganharam novos cenários. Guerras sem o poder destrutivo das armas, mas ainda assim guerras que enfrentam pessoas de nacionalidades diferentes através do desporto.
Diria, “guerras pacíficas”, por mais paradoxal que o conceito seja. Mas guerras. Do mau perder, até do mau ganhar, quando vencedores espezinham os humilhados derrotados no rescaldo de uma disputa. Uns e outros, mergulhados em sentimentos contraditórios. Os derrotados, com o orgulho pátrio ferido porque os seus não souberam dignificar a bandeira. Normalmente organizam recepções hostis no regresso dos que estavam prometidos para heróis, insultos abundantes na exaltação das emoções descontroladas. Ficam agendadas vinganças. Quando a selecção portuguesa reencontrou a Grécia na final do Euro 2004 depois da derrota do jogo inaugural, um amigo enviou-me um lapidar SMS: “it’s payback time”. Os países encontram-se e fazem a contabilidade dos jogos passados. Às derrotas recentes jura-se a vingança fria: o redobrado sabor doce da vitória vem servido no prato da vingança. Irracionalidade no estado puro. Os vencedores exaltam o feito, enobrecem a façanha, gabam-se pela pertença a uma nação de maiores, desfilam pesporrência. Como se os feitos no futebol das nações fossem o barómetro da grandeza de um país.

27.6.06

Um acto de caridade


Na hora de avaliar os alunos, há dilemas que se agigantam. Sobretudo naqueles casos que estão na corda bamba, no limiar entre a reprovação e a ida ao exame oral, ou mesmo à beira de conseguirem os décimos de valor necessários para escaparem ao tormento do exame oral, alcançado o desejado dez. Com os anos, as percepções vão mudando. Sinto que fui amolecendo na exigência colocada na avaliação. Condescendo mais. E cá está o dilema que a condescendência avaliativa semeia: por vezes, sinto que a generosidade (a “água benta” que alguns alunos, com despudor, me pedem para deitar nas suas provas) leva a nivelar a qualidade por baixo.

Nisto da pedagogia há métodos diferentes. Há aqueles que são cegamente exigentes, inflexíveis nos critérios que estabelecem, incapazes de levar uma nota de 9,4 a uma classificação de dez valores afixada em pauta. Na outra extremidade, os que cultivam a máxima de Leonardo Coimbra: veio ao exame, só pelo incómodo já merece dez; o que vier em acrescento serve para ir subindo a nota final. Consta que uma derivação deste sistema de facilidades está em moda nos Estados Unidos. Os professores que forem pouco generosos na hora de avaliar, pautas exibindo notas médias não inflacionadas, estão destinados ao insucesso. Estranhamente, instalou-se um clima de terror intelectual que fomenta nos professores uma insólita rivalidade: é ver quem consegue dar as notas mais altas.

Se há coisa que me causa estranheza é ver uma pauta de avaliação onde todos os alunos são classificados com excelência. Quando essas pautas inflacionadas se generalizam, é sintoma de que os alunos conseguem estar muito próximos do nível de conhecimentos do professor. Ou que o professor tem conhecimentos que o não distanciam dos alunos creditados com notas tão elevadas. É o estigma daquelas turmas do ensino secundário talhadas à medida dos “crânios” que meteram na cabeça que haveriam de entrar em medicina. Os meninos têm todos calibre de excepção. Depois é vê-los concluir o ensino secundário com 19,4 de média. E a nota mínima de acesso a medicina a sofrer um processo de hiper-inflação, sempre acima dos 18,5 valores.

Quando se passa para a outra extremidade, há algo de errado num professor que colecciona alunos ano atrás de ano, engrossando as suas turmas com os veteranos, os menos veteranos e os candidatos ao sacrificial ritual de todos os anos. Sobretudo naqueles casos em que o professor se auto-convence que a sua disciplina é a mais importante do curso. Eleva-se o grau de exigência a níveis desfasados da realidade do ensino universitário. Porventura nem sequer alunos de mestrado teriam capacidade para ultrapassar a elevada fasquia. As pautas destes professores são uma paisagem desalentadora. Quase sempre abaixo dos cinco valores. As aprovações são um oásis perdido no meio de um vasto deserto de areia (e de conhecimentos). E se no caso dos professores com generosidade a rodos parece que eles descem ao nível dos alunos, quando toca a perceber a cabeça dos professores que fazem gala de coleccionar chumbos a eito parece que eles anseiam que os alunos subam ao seu douto nível.

Já se percebeu que no assunto faz sentido procurar um equilíbrio, dar vencimento ao afamado “meio-termo”. Todavia, os anos passam e a qualidade média dos alunos tem diminuído. O dilema ergue-se no horizonte: manter a fasquia e encher o bornal das reprovações? Ou ir adaptando a fasquia ao nível médio da audiência, para evitar o aumento da taxa de insucesso universitário? Não é apenas a perspectiva dos resultados que conta. É um aspecto que, no entanto, tem a sua importância. Levar o mesmo aluno vezes sucessivas à avaliação da mesma disciplina pode fermentar a desmotivação, pode levá-lo a abandonar a universidade. Em certos casos, é um acto de caridade para com o aluno, sobretudo quando a opção pelo curso foi um equívoco.

O que me causa inquietação é quando desço a fasquia e dou conta que aprovo alunos por um acto de caridade. Para com o aluno, quando já ascendeu à nada invejável condição de veterano, tantas as tentativas fracassadas de ter uma nota com dois dígitos. E para com o próprio professor, que a certa altura é derrotado pelo cansaço e apenas quer ver o aluno com a disciplina feita, para o não aturar jamais. Temo que o preço possa ser elevado: que a fasquia menos apertada não resulte numa preparação adequada para os alunos, que saem da universidade impreparados para a vida profissional.
É nesta altura que uma paradoxal teoria pedagógica me aquieta o espírito: é lá fora, na selva profissional, que os ex-alunos ganham toda a sua tarimba. Um pouco como acontece com as escolas de condução: o que lá se aprende são os rudimentos; só depois de encartados é que os automobilistas aprendem a conduzir. Mas se esta teoria for levada a sério, há duas perguntas que ficam sem resposta: o que andam os alunos a fazer na universidade? E para que servem os professores universitários?

26.6.06

Pérolas da gramática

Correspondência no correio. Uma carta da administração do condomínio. Por fim, há solução para o jardim. Cito a carta: "o jardim será já a partir do próximo dia 26 de Junho de 2006 sujeito a uma intervenção de fundo por parte da empresa Regaflôr que irá proceder à reconstrução dum novo jardim, conforme sempre foi protelado pelos condóminos do edifício supracitado."

Porque são ilegais os estupefacientes?


Algures num passado muito remoto, antepassados descobriram que a uva era um fruto que dava um saboroso néctar. Descobriram mais: a uva, depois de esmagada, fermentava. E que, no final da fermentação, o sumo de uva toldava os espíritos: subitamente mais alegres, sentidos ofuscados na penumbra de uma misteriosa substância escondida na uva. Imagino-os, aos antepassados, estupefactos pelos efeitos que os transtornavam. Adivinho-os a endossarem a explicação para um qualquer veneno com efeitos temporários.

O resto da história é conhecido: cientistas, séculos mais tarde, derrubaram a magia da uva feita em vinho, culpando o álcool pelo efeito inebriante; a humanidade habituou-se ao vinho – e as outras bebidas com variável teor alcoólico. Hoje é vê-la, em doses variáveis, aos trambolhões depois de uma noite de folia, a cair em coma alcoólico depois de uma noite desregrada de copos, a padecer de cirroses agudas pelos anos em que o fígado foi sendo curtido pelo reiterado estado de etilização. Criaram-se associações de alcoólicos anónimos, pois havia vidas pessoais e familiares destruídas pela dependência do álcool. Mas as bebidas alcoólicas continuam a conviver com a sociedade. Há excepções: nos países do fundamentalismo islâmico o álcool foi banido.

As bebidas alcoólicas são toleradas pela sociedade. Há até a regra da necessária ingestão de álcool para acompanhar um opíparo repasto. Não há bom garfo que não faça gala de degustar uma garrafa de bom vinho. O “bom vinho” pode ter significados diferentes. O vinho de eleição, garrafas a preço exorbitante, só para carteiras mais abastadas. Ou o vinho carrascão, para o povaréu menos endinheirado, só para perfumar os sentidos com o odor etilizado após a refeição. Para depois camionistas irem para a estrada após meterem no bucho uma garrafa de três quartos de litro de tinto do Cartaxo, e ainda os ouvirmos com a prosápia grotesca: que conduzem melhor depois de enfrascarem os sentidos com o tinto de mesa com taninos de zurrapa.

Quando soa o alarme da sinistralidade rodoviária, o excesso de álcool anda de braço dado com o culpado do costume – o excesso de velocidade. O álcool a mais nas veias dos condutores tem ceifado a vida de muita gente. E, ainda assim, continua o desfile de um abundante mostruário de bebidas alcoólicas de variados tipos, nas estantes de supermercados. Para se ter uma ideia de como a sociedade é tolerante com o álcool – como se não bastasse a simples venda legal – há uma expressão sintomática: “bebidas espirituosas”. Infere-se: as bebidas que nos põem com boa disposição, libertam os espíritos reprimidos pela vegetativa vida que levamos, mostram o lado desinibido que a não etilização traz castrada.

Por esta altura hão-de pensar que estou a fazer campanha pela ilegalização do álcool. Errado. Pego no exemplo do álcool para me interrogar porque se convencionou que outras substâncias que produzem efeitos alucionogénicos são proibidas pelos bons costumes. Tal como o Homem nasceu para a etilização, mais tarde foi descobrindo plantas que podiam ser esmagadas e submetidas a uma transformação química para resultarem nos chamados “estupefacientes”. O azar das “drogas” é que chegaram à história da humanidade mais tarde que o álcool. Apetece especular: acaso o Homem tivesse descoberto as tais plantas e houvesse o engenho para as saber transformar nos estupefacientes hoje perseguidos pela lei, e porventura hoje seria proibidas as bebidas alcoólicas.

A própria designação “drogas” revela o rótulo negativo que foi pespegado a estas substâncias. Fala-se das “bebidas espirituosas” e logo o álcool merece a chancela contemporizadora da sociedade. Alude-se aos estupefacientes e vem a carga negativa das “drogas”. Ambos provocam dependência. Ambos alteram o discernimento de quem os ingere. Ambos destroem vidas, quando o seu consumo passa para além do razoável. E alguém pode erguer o dedo de reprovação se uma pessoa decide mergulhar no consumo excessivo – de álcool ou de estupefacientes? Não é uma decisão individual, puramente individual?

Às “drogas” acrescenta-se o labéu de outros males. De baixo para cima: os desgraçados que se entregam à toxicodependência, trastes humanos que entram numa espiral que, em muitos casos, termina com a despedida da vida; a criminalidade associada ao desnorte de quem cai na ressaca e necessita de recursos para mais uma dose; o tráfico que enriquece poucos com a desdita de muitos. Há quem suspeite que a ilegalidade do consumo destas substâncias tem contornos sombrios: é a ilegalidade que encarece exponencialmente o preço dos estupefacientes, dando o mote para uma extensa cadeia de intermediários que enriquecem com o tráfico de uma substância tornada ilegal.
Acaso não houvesse o estigma social que leva a chamar “drogas” a estas substâncias; acaso as suspeitas de quem se sacia no altar dos lucros do tráfico ilícito são poderosos tubarões que se acobertam na teimosia da lei que criminaliza a venda e compra destas substâncias; e aí os estupefacientes teriam o mesmo estatuto do álcool. Seriam mais baratos porque desaparecia a extensa cadeia de intermediários que se banqueteiam na conivente teimosia em manchar estas substâncias com a ilegalidade. Já não haveria a pequena criminalidade que enxameia as cidades, por causa de toxicodependentes em desespero. E, acima de tudo, franqueavam-se as portas ao império das decisões individuais, sem o estigma perverso das proibições em catadupa que aumentam o tom do Estado policial em que vivemos agrilhoados.

23.6.06

"No longo prazo estamos todos mortos" (John Maynard Keynes)



Esta foi uma das frases gravadas no epitáfio de Keynes, o economista que tarda em sair de moda. Navegação à vista, empurrando as consequências de decisões tomadas hoje para daqui a umas décadas, quando o endividamento de hoje começar a ser pago pelas gerações de amanhã. É o esteio da maneira de governar de um grande arco de políticos, toda a esquerda sem distinções até ao centro-direita que se deixa deslumbrar pela obra faraónica quando ocupa o cadeirão do poder.

Entre nós, Keynes tem afamados discípulos entre os economistas. O actual presidente da república, por exemplo, nunca se desprendeu dos quadros mentais legados por Keynes, quando ensinava nos bancos da universidade e quando governou durante dez anos. Ainda agora, quando lança uns palpites sobre o caminho certo para entrarmos nos trilhos, a sua cabeça continua dominada pelo pensamento keynesiano. Os que não se revêem nesta escola do pensamento económico costumam ser mimados com o (no entendimento dos críticos) ultrajante rótulo de “neo-liberais”. Nos dias que correm, ser “ultra-liberal” – ainda obscuro conceito convenientemente usado pelos guardiães da ortodoxia de Keynes e outros arautos da esquerda dura – é uma espécie de sarna, a fonte de todos os males de que o mundo contemporâneo padece.

Não há tempo para desfiar o longo rol de antinomias em relação a Keynes. Concentro-me na frase que dá título a este texto. É em homenagem a esta divisa que sucessivos governos fazem obra pública, endossando a factura para as gerações futuras. Constrói-se hoje, quantas vezes obra desnecessária, sumptuosa, desenquadrada das necessidades da colectividade, o espelho de como teimamos em viver acima das possibilidades. A colectividade tem prerrogativas que estão vedadas aos indivíduos. Pode-se endividar e remeter os encargos para as gerações que hão-de vir. A justiça inter-geracional é assunto de somenos importância. As gerações futuras também vão beneficiar da obra feita pelas luminárias que hoje assinam as autorizações para gastos faustosos. Lamenta-se que ninguém tente inquirir as gerações futuras se elas estão de acordo: com a obra decidida pelos seus antepassados, e pelo encargo que lhes é endossado.

Quando Keynes disse que no longo prazo estamos todos mortos, disse-o com a convicção que no presente interessa apenas olhar àquilo que a vista alcança. Que devemos menosprezar a programação antecipada dos efeitos. Mesmo que no plano pessoal acredite na insensatez de viver hoje a pensar no que podemos fazer a longo prazo – porque um acidente de percurso pode desfazer, num ápice, os planos laboriosamente gizados – o mesmo princípio não pode ser válido para a governação de todos nós. Há uma importante diferença de escala. As minhas decisões individuais têm influência no agregado familiar, só muito residualmente alimentam efeitos no todo que somos. As decisões do todo, na forma dos governantes que empossamos através do voto, afectam o todo no presente e deixam marcas indeléveis para aqueles que ainda não nasceram mas serão chamados a suportar os encargos das decisões de hoje.

Em tempos, numa discussão acerca de escolas do pensamento económico, tentei ilustrar a antipatia em relação a Keynes demonstrando que ao Estado é permitido o que é proibido aos particulares: o endividamento com factura endossada às gerações futuras. Do outro lado, a contra-argumentação: se o investimento de hoje é feito com proveito para as gerações do amanhã, faz sentido que elas sejam chamadas a pagar um preço pelas decisões que hoje tomamos e que, no futuro, as vão beneficiar. Se assim é, afinal Keynes também se preocupava com o longo prazo, deixando-o (e aos seus defensores) numa encruzilhada: sempre é verdade que no longo prazo estamos todos mortos, mas esse não deixa de ser um argumento usado por Keynes (e pelos seus cultores) para defender a generosidade gastadora do Estado.

Passando por cima desta incoerência dos keynesianos, há outro aspecto que conta para contrariar a lógica desta escola: é verdade que, como indivíduos, também nos endividamos; até é verdade que nos endividamos até ao tutano, fruto da atracção consumista que nos aliena nos prazeres cada vez menos proibidos do desditoso capitalismo. A diferença é que as dívidas dos indivíduos não passam para os descendentes. As dívidas que a colectividade contrai estão contratadas a longo prazo, um cutelo sob a cabeça das gerações futuras quando elas acordarem para a vida e começarem a pagar impostos.
Percebo que a esfera individual tem diferenças em relação à colectividade. Só não consigo perceber que nos livros venha a ideia de que a colectividade deve ser o penhor das virtudes de cada indivíduo, e depois lhe sejam atribuídas prerrogativas que entram no domínio da impossibilidade para a esfera individual. Não é verdade que o Estado deve dar o exemplo? Dão exemplo de empurrar para os filhos e netos o pagamento da nossa dívida pública. Especulemos: e se cada indivíduo pudesse fazer o mesmo? No fundo, estaria a dar cumprimento à sentença de Keynes: no longo prazo estamos todos mortos, o mote para a desresponsabilização de todas as nossas decisões.

22.6.06

Nevoeiro


O nevoeiro, aura nebulosa que disfarça as coisas que desfilam perante o olhar. O nevoeiro espesso tinge as coisas com um manto secreto, ofusca-as entre as gotículas que vêm pousar nas flores e nas árvores, tingindo-as com uma fina película que testemunha a névoa que se densificou. É perto do rio que está nascente do nevoeiro. Ergue-se das profundezas do leito como um vulto que se agiganta, cobrindo as coisas com o seu manto espesso. Tão espesso que o leito do rio parece sumido entre a língua de nevoeiro vomitada pela fúria avassaladora comprimida nas profundezas das águas.

Dizem que o nevoeiro distorce as coisas. Perde-se a nitidez delas quando a névoa invade os poros da cidade. Que é difícil distinguir as formas e as cores. Dir-se-ia que o nevoeiro vem esconder as coisas como elas são. Um teatro do obscurantismo que semeia a incerteza, avaria a bússola dos sentidos, espalha a desorientação. Nos dias em que se torna denso, parece que asfixia os sentidos. Como se tentássemos emergir da espuma compacta para saber por onde ir, onde estar, como são as coisas.

E, porém, o nevoeiro encerra a contradição do que nele julgamos ver oculto. Tem o condão de instalar a dúvida, interrogar os sentidos se tudo o que julgamos ser na sua nitidez o é, ou se não é apenas uma capa que ilude os sentidos anestesiados pela nitidez da límpida luz. Quando chega o nevoeiro, os olhos discernem novas formas, nunca vistas. Ainda que o sejam pela penumbra do manto que se abateu na cidade e parece corroer os ossos. Levanta as questões nunca colocadas. É no estertor da desorientação que faz sentido questionar as certezas. Fazer delas apenas incógnitas, novas questões que convocam os sentidos na demanda de respostas. As mesmas, que sejam, mas ao menos uma digressão que desfaz a quietude das certezas instaladas.

Por vezes é a consistente penumbra que desvela novas respostas. Um mergulho nos confins do nevoeiro, navegando pelas ruelas esconsas, cercado pela escuridão, tacteando a lenta marcha que palmilha os centímetros em busca das armadilhas do caminho. Como se fosse um mergulho aos confins do ser, uma catarse que só o nevoeiro, com a sua paradoxal luz que tudo revela, permite redescobrir as coisas que pareciam certezas inabaláveis. Quando o nevoeiro zarpa, deixando-se derrotar pela persistente luz do sol, os sentidos provam a luz como se nunca tivesse sido vista. O nevoeiro, na sua pureza terapêutica, povoa um novo caminho.

Há um lugar comum: nem sempre o caminho mais perto entre dois pontos é uma linha recta. Os segredos revelados pelo nevoeiro são a prova. A revelação de que a simplicidade das coisas esconde uma capa mais densa, as várias camadas que se sedimentaram com a passagem do tempo, na formatação dos herméticos quadros mentais. Faz bem questionar onde estamos. É o nevoeiro das coisas que alimenta a purgação necessária. Só ir ao fundo do ser quando a desorientação tomou conta do espírito. Pode a névoa toldar o discernimento. Pode semear a confusão dos sentidos, tornando ininteligíveis até as coisas aparentemente mais simples. É aí que se percebe que as coisas, na sua simplicidade, são uma aparência falsificadora. Nas sucessivas camadas dos sedimentos acumulados, quebradas pela obstinada inquisição do devir, flutua a deriva dos sentidos. A complexidade até nas coisas que eram tão simples na sua aparência.
O torpor vem com a luz cristalina que encandeia os sentidos. Os anos cimentam o apaziguamento oportuno das coisas na sua aparente lhaneza. Dir-se-ia, o fruto da necessária pacificação interior. Ou, apenas, a maneira mais confortável de não serem questionadas as coisas pela aparente beleza irradiada pela luz celeste. O torpor perde-se no fio do horizonte quando o nevoeiro que dilui o horizonte. É aí, quando os sentidos se sentem perdidos, quando a bússola mostra as agulhas furiosamente avariadas, que o torpor vai ser derrotado. É aí, no incómodo nevoeiro que questiona o sentido das coisas, que a inércia dá lugar à febril, incessante procura por um sentido que seja – um sentido que escape dos herméticos quadros mentais que fazem tão bem ao apaziguamento da alma, mas que são uma falácia de si mesmos. Purificador, o nevoeiro.

21.6.06

Um aplauso podre: os deputados mudaram a hora dos trabalhos para verem o jogo entre Portugal e o México


Às três da tarde, quando os descendentes dos “magriços” de 1966 pisarem a relva para a contenda com os mexicanos, o parlamento vai parar. Aliás, deve um país parar à frente da televisão. Não vale a pena repetir o que já foi escrito ontem, acerca da entrega desalmada de um povo às vicissitudes do campeonato do mundo de futebol. Que não se entenda que hoje entro em contradição com o texto de ontem: por hoje, apenas denunciar o coro de aplausos pela integridade do parlamento ao anunciar que vai suspender os trabalhos agendados para suas excelências, os deputados da nação, poderem ver pela televisão como nos representam os que envergam a camisola de “todos nós”.

Já li e ouvi encómios diversos à decisão do presidente da assembleia da república. Que é um acto de frontalidade. Em vez dos deputados fugirem, à socapa, para sintonizarem a transmissão do jogo, fugindo às tarefas já calendarizadas, fica tudo às claras. Entre as três e as cinco da tarde de quarta-feira, 21 de Junho de 2006, o parlamento entra em parênteses. Como se fosse acometido por uma insólita paralisação dos seus membros, anestesiados diante do ecrã, alguns com a iconografia da nacional pertença a resguardar o pescoço, aplaudindo os golos e amargurando as jogadas de ataque do adversário.

Os que acham bem que o parlamento tenha decidido ficar em banho-maria a meio da tarde sublinham a mudança de atitude que enobrece os deputados. Há meses rebentou o escândalo da falta de quórum para uma votação qualquer, descobrindo-se que alguns parlamentares assinavam o ponto no início da sessão e punham-se ao fresco logo a seguir, desertificando o hemiciclo. A vergonha caiu sobre a assembleia da república. Se não era muita a credibilidade da instituição aos olhos dos representados, com aquele episódio diminuiu mais ainda. Agora – dizem com contentamento os que elogiam a decisão do presidente do parlamento – há transparência: nada a esconder, sem subterfúgios nem pretextos mil para justificar ausências, apenas a possibilidade de todos os deputados poderem folgar por duas horas para vibrarem com a “selecção de todos nós”.

Não sei se hei-de dizer que o parlamento, como instituição, goza de imaculada imagem que lhe permite dar o exemplo aos demais. Por um momento, ponho de lado o cepticismo militante acerca da utilidade do parlamento. Vou condescender na respeitabilidade que a instituição merece – pelo menos é o que vem nos livros. Assim como assim, é um órgão de soberania. Por um momento, vou fazer de conta que o paraíso existe, por conveniência dos argumentos que se seguem. Como órgão de soberania, o parlamento dá o exemplo. A mensagem enviada pela assembleia da república é lapidar: o resto do tecido produtivo – desde a administração pública às empresas privadas, nos mais variados sectores – está convidado a fazer a mesma gazeta. A menos que se confirme que os privilégios dos deputados fazem deles criaturas de primeira, num pedestal inacessível ao comum dos mortais.

É esta a imagem que retenho: o parlamento vai folgar, todo o país tem legitimidade para folgar. Estou a imaginar a luta titânica nas empresas, com trabalhadores compulsivos consumidores da “selecção de todos nós” a reivindicarem das chefias uma paragem de duas horas. (Claro que na administração pública não haverá problemas: basta um sussurro da malta, amparada pelos activos sindicatos, para perceber que é inútil ser utente da administração pública no dia de hoje, entre as três e as cinco horas da tarde.) Portanto, Portugal tem que parar para ver o jogo da selecção. Os polícias vão desertar das patrulhas, as fábricas vão deixar de laborar, os aviões não vão descolar nem aterrar, as cirurgias urgentes terão que esperar mais um par de horas, os transportes públicos não vão sair à rua. Se eu tivesse que dar um exame na universidade a essa hora, podia-o adiar? Tudo vai parar, com a chancela do parlamento.
Há quem suponha que a transparência dos deputados lhes fica bem. Em vez de ludibriarem a verdade com imaginativos estratagemas, dão o peito à verdade e confessam que vão parar para ver o jogo da bola. Há quem aplauda a franqueza. A franqueza é sempre merecedora de aplausos. Não tenho a certeza que a falta de profissionalismo o seja. E temo que aqueles que se deixam enlevar pelo esboço de transparência dos deputados estejam a confundir responsabilidade com profissionalismo, quando a falta de profissionalismo mostra irresponsabilidade.

20.6.06

Os intelectuais não gostam de futebol?

Na enxurrada de futebol desde que começou o campeonato do mundo (três jogos por dia!), é o futebol que açambarca as atenções. Dos fanáticos, dos estudiosos do fenómeno, dos que se inebriam com a grandeza da nacionalidade em disputa com as outras nacionalidades, das senhoras que não ligam patavina ao jogo a não ser quando há estes torneios inter nações. E até os que desdenham do futebol acabam por cair na ratoeira: falam dele, nestas ocasiões em que todos os olhos estão focados na bola pontapeada dentro do relvado.

Até os intelectuais, que não perdem a oportunidade para tecer comentários jocosos à futebolite aguda que invadiu os espíritos, não conseguem escapar ao futebol. Ainda que seja pela negativa. Ainda que seja para exibirem o seu descontentamento pela alienação que se apodera da populaça. Não só da populaça: também de outros intelectuais (ou aparentados) possuídos pela pecaminosa tentação de estacionarem diante de uma televisão durante os noventa minutos de um jogo de futebol.

Os intelectuais que deixam escapar os comentários verrinosos sobre o estado de alienação geral exibem uma soberba que me fez, por um momento, estar de braço dado com a gentalha. Pacheco Pereira é um expoente do sarcasmo elitista que vem desfiando um choradinho pelo protagonismo reservado ao futebol. Teve o condão de me fazer ver uma revoada de jogos como há largos anos não acontecia. Dei comigo, no fim-de-semana passado, a ser espectador de três jogos de futebol. Duzentos e setenta minutos à frente da televisão, a ver o fervor nacionalista aos pontapés, a ver como os rapazes procuravam derrotar os adversários na triunfante marcha da respectiva nacionalidade.

Quando intelectuais como Pacheco Pereira gritam a incomodidade pelas atenções generosas de que o futebol é merecedor, ao menos podiam disfarçar a azia. Podemos não gostar de certa coisa: temos a liberdade de o manifestar, mas devemos ter o pudor de respeitar opiniões contrárias. Independentemente delas serem ou não maioritárias. Pacheco Pereira embrulha a sua antipatia pelo futebol com a chacota pelo povo que, coitado, se entrega de corpo e alma a semelhante manifestação que, no fundo, é o espelho da pobreza de espírito da ralé tão entusiasmada com o desporto dos pontapés numa bola. Altivo, sentencia-nos ao lugar menor de quem tem vistas curtas por gostar de futebol. É nestas alturas – quando vejo a pesporrência, a superioridade intelectual dos expoentes máximos da intelectualidade para consumo doméstico – que me acomete um súbito desejo de andar de braço dado com a ralé. Essa mesma ralé que, como é sabido, é tão vergastada ocasionalmente nos meus textos.

Talvez seja do mau feitio, que me inculcou a mania do espírito de contradição: suspeito que foi o desdém altivo de Pacheco Pereira que me colocou à frente da televisão, a assistir a vários jogos do campeonato. Uma pausa para pensar. Percebo como é fácil cair em contradição. Eu, que tanto deprecio o povo, agora embarcado na mesma nau, mercê da soberba intelectual de Pacheco Pereira. Depois de tanto vituperar o povo, depois de o criticar pela música pimba, pelo folclore que nos identifica no estrangeiro, pela mania dos piqueniques, do garrafão de cinco litros e das iguarias que se servem do sangue de animais mortos sem piedade, depois de tantas vezes me colocar nos antípodas do lugar habitado pelo povo, percebo como isso é perigoso.
Foi Pacheco Pereira, com a crítica corrosiva à populaça entusiasmada com o futebol, com a superioridade intelectual de quem se arvora à sebastiânica condição – pois se todos fôssemos como ele, este seria um país endireitado –, foi ele que me desnudou os perigos desta altivez intelectual. E aí dei conta que o desdém pelos sinais de fogo das manifestações tão do agrado do povo pode produzir ensaios de fino recorte literário, mas é uma armadilha para quem os produz. A armadilha de quem se coloca no pedestal da intelectualidade, como se pairasse sobre o povaréu rasteiro, numa espécie de auto-deificação muito perigosa. Foi Pacheco Pereira que me levou a perceber como sou incoerente.

19.6.06

Estado de delação


Há lições do passado de que se perde o rasto, cristalizadas no bolor das palavras vãs. Retórica que aponta num sentido que não coincide com os pontos cardeais da prática. E se ninguém pode atirar a primeira pedra ao ar quando se discute o alçapão da incoerência, há alguns que deviam estar remetidos ao sepulcral silêncio pela responsabilidade a que se alcandoraram.

Dos bancos da escola vem a pedagogia do civismo. Somos educados no património genético do politicamente correcto: o que se deve fazer e o que deve ser evitado, o que se deve dizer e o que deve ser repudiado quando os discursos exalam o mais execrável. Dos bancos da escola, educação politicamente orientada: a rejeição do Estado Novo, pela coacção das liberdades individuais, pela repressão dos que ousavam dissidir da linha oficial. Entre os sinais pedagógicos para uma boa educação cívica, o Estado Novo fornece a antítese para o comportamento das criancinhas que serão os homens e as mulheres de amanhã. Nunca hei-de perder a recordação dos vários professores que martelavam sempre na mesma tecla: denunciar o outro é coisa feia. O fantasma dos bufos da ditadura ainda pairava no subconsciente de gerações que zelavam pela liberdade conquistada em 1974.

Cresci com essa imagem na retina: delatar não é acção recomendável. Aos delatores, o odioso carimbo do Estado Novo deixado no baú das más recordações. Parece que a memória é curta. Ou, ao que tudo indica, há bons e maus delatores. Os maus delatores eram os que bufavam para a PIDE, fazendo com que opositores ao regime dessem com os ossos na cadeia. Que não restem dúvidas: eram péssimas criaturas, estes delatores. Trinta anos de democracia depois parece que a memória se diluiu com o tempo. Quando se pensava que trinta anos fossem suficientes para trazer a nossa democracia para a idade adulta, eis os sinais de retrocesso. Esta trupe de socialistas não hesita em enviar sinais atrás de sinais que nos convidam a sermos um colectivo de delatores. Com a diferença, dirá a trupe cor-de-rosa, que seremos agora “bons delatores”, por causas nobres.

De repente, ocorrem-me três provas de como o governo do PS está na senda da delação institucionalizada. Há mais de um ano, no afã de combater a evasão fiscal, a trupe que nos (des)governa abriu a possibilidade do diligente contribuinte meter os pés ao caminho, entrar numa repartição de finanças e pedir para espiolhar as declarações de impostos dos vizinhos. Mais: permitiu que uma chusma de invejosos apresente queixa contra pessoas que invejam, denunciando possíveis irregularidades no pagamento de impostos.

Há uns meses, segundo acto desta tenebrosa encenação de fascismo encapotado: sob o pretexto de combater o tráfego de carne branca, que leva à exploração sexual de mulheres aprisionadas em bares de alterne perdidos algures na profunda província, a notícia de que a trupe de bem pensantes governantes da internacional socialista ia criminalizar os clientes das mulheres escravizadas sexualmente. A medida incentivava as mulheres exploradas a denunciarem a clientela. Como se os clientes fossem culpados do tráfego de carne branca, como se eles espezinhassem os direitos fundamentais destas infelizes mulheres. Creio que percebi a lógica da medida: entremeada com uns pozinhos de moralidade pestilenta (um cheirinho às inefáveis “mães de Bragança”), a imagem que é mais fácil atacar o peixe miúdo do que os tubarões.

Último episódio da sanha moralista que nos convida a sermos bufos uns dos outros: no fascismo higiénico que apontou a mira aos tabagistas, a nova lei recuou na intenção de multar os estabelecimentos onde é proibido fumar. Ao tirar com uma mão, logo de seguida não perdeu tempo em repor com a outra: o “bom cidadão” é convidado a denunciar às autoridades aqueles estabelecimentos onde tenham visto “maus cidadãos” a fumar, ao arrepio da zelosa lei.

Não há maus e bons delatores. Há apenas delatores, com a conotação negativa que a palavra merece. Não vale a pena fazer malabarismos intelectuais, num esforço para forjar um contexto que estenda a passadeira a “bons delatores”, como se por estarem ao serviço de “causas nobres” a delação seja tolerável. Delatar continua a ser coisa feia. Cauciona o anonimato de quem segreda às autoridades. Possibilita a pequena vingança. Fertiliza a síndroma da farda, empossando cada “bom cidadão” na qualidade de agente de autoridade desfardado que, todavia, fica empossado no poder de denunciar e de causar problemas ao “mau cidadão”. Se tudo não bastasse, é uma retórica que nos divide entre os “bons” e os “maus” cidadãos.
Quanto mais vejo este fascismo encapotado a galopar, mais me apetece ser “mau cidadão”, cultor do politicamente incorrecto. Nem que seja para fermentar um simples espírito de contradição. Porque me sinto asfixiado por este socialismo intolerante.

16.6.06

Aversão aos militares

Será por não ter feito o serviço militar. Será por me gabar de nunca ter tocado numa arma de fogo. Será por ver nos militares os fautores materiais das guerras que estupidificam a espécie humana. Por tudo isto, vejo nos militares um anacronismo que teima em persistir como se ainda fossem matéria crucial.

Voltei às sensações desagradáveis sobre a tropa quando vi, há dias, uma reportagem sobre a turbulência em Timor-Leste. Uma ida aos confins das montanhas timorenses, onde estão acantonados os rebeldes. Contava-se uma história, com contornos obscuros, envolvendo a entrega de armas pelo patético primeiro-ministro a um grupelho de militares com o propósito de aniquilar opositores dentro do mesmo partido. O que faz reflectir no tribalismo latente desta gente: que não hesitarão fazer se adversários de outros partidos passarem das marcas no incómodo de quem se opõe? Pelo caminho, a imagem clara do entendimento distorcido da convivência democrática. Não foram educados para conviver com a diferença de opinião, ainda que tenham que mostrar ao mundo o contrário, quando condescendem com a “inutilidade” das eleições.

Volto ao essencial: de como os militares são peças a mais no xadrez. A imagem retratada nesta crise timorense é a dos militares a assumirem um protagonismo que não os deixa bem na fotografia. Um cocktail explosivo: militares a mais, armas a rodos, políticos ambiciosos que não olham a meios para atingir os fins. Militares ao serviço dos políticos, a eito, militares que exibem as suas ambições políticas. É outro cocktail explosivo, com resultados nefastos, como o prova a história desde sempre: quando os militares saem da caserna e se deixam inebriar pelo perfume do poder político. Os golpes de Estado, as guerras civis em países africanos, o protagonismo recalcado dos “militares de Abril” – tudo expressões de tropa que se estende para fora da sua coutada. Quando nem sequer a sua coutada devia existir.

Dos sinais enviados de Timor-Leste, fico com a percepção que a raiz de todos os males está na abundância de militares. Gostaria de ter dados rigorosos do número de militares naquele país. Para depois fazer o ratio de militares por habitante. Correndo o risco de especular, aposto que o ratio é dos mais elevados do mundo. Uma desnecessidade. Um caldeirão fervente que traz Timor-Leste em constante ebulição. Porque corre nas veias desta tropa o vírus do conflito. A pacificação da sociedade é um estertor que os leva à apoplexia. Têm que se entreter a dar uns tiros, para desenferrujar o antiquado armamento e voltarem a sentir a adrenalina do combate. Nem que, pelo meio, fique um rasto de morte e destruição. Quantas vezes ceifando a vida a inocentes. Simples pormenores que passam ao lado da estupidez que vive por dentro desta tropa disparatada.

O grito de ordem podia ser “desarme-se esta tropa”. Se é que existem paralelos entre a infância independentista de Timor-Leste e a infância democrática portuguesa, o segredo está no regresso dos militares às casernas. Para jamais de lá saírem. O segredo está em convencer os militares que a política é um império dos civis. Uma espécie de dessacralização da política, engavetando os militares – como se fez com a religião – num compartimento sem possibilidades de interferência com a governação. Quando muito, terão os timorenses que suportar a pesporrência dos militares que não se hão-de cansar de exibir a factura à sociedade civil. Lá como cá: para grande desgosto do pessoal dos quartéis que fez o 25 de Abril, o curso da história encarregou-se de os devolver onde eles pertencem: ao ascetismo das casernas. Desapossados de poder, não se cansam de enfatizar o heroísmo que lhes devemos, como se tivéssemos que ser recordados todos os dias da eterna dívida de gratidão. O que está errado. Fizeram o que devia ser feito no tempo que se conjugou para o efeito. Mas a história é isso mesmo, uma sucessão de páginas voltadas num tempo que já passou.
Há dependências do indivíduo em relação a instituições que o enfeudam, tolhem a sua individualidade, banalizam-no. É o apoucamento da personalidade que coincide com o engrandecimento de instituições a que devemos pertencer. A religião, a pertença nacional, a filiação partidária, o respeito pela nobreza de instituições arcaicas, como o exército. As lições da história parecem inúteis – ou a memória é muito curta. Se há passado infamante, é o dos militares que fizeram guerras mil à volta do planeta. E que as continuam a fazer. Se há utopia que não me importo de professar, é aquela que vê a aurora de um belo dia com militares expropriados de armas. Da aurora em que os militares desaparecessem do mapa.

15.6.06

Laivos de terceiro mundismo


É por causa das manobras sinuosas do processo apito dourado que nos podemos chamar uma república das bananas? Também. É por causa de uma justiça não tão cega como vem nos manuais, por resvalar para uma preocupante parcialidade quando toca a julgar figurões da política? Também é por isso que nos pespegamos o rótulo de república das bananas. Com o perfume terceiro mundista que o rótulo exala.

Falta o clima tropical, as águas cristalinas e cálidas, as tempestades súbitas com a sua fúria momentânea, as mornas e outros sons que sugerem a calmaria dos dias de calor húmido, os frutos como as papaias, o coco, as mangas, etc. Faltam os generais entretidos com as manobras políticas, sempre exercendo tutela sobre os políticos corruptos que açambarcam riqueza enquanto o grosso da população vegeta na miséria indigna. Não temos palácios presidenciais sumptuosos, rivalizando em opulência com os palácios presidenciais ou reais de países ricos. Mas temos outros traços de terceiro mundismo cristalinos como a água.

Não vale a pena falar de um povo inculto. A iliteracia não é exclusiva de países do terceiro mundo. Basta recordar a incultura geral do cidadão médio dos Estados Unidos, em especial a confusão mental causada pela geografia mundial. E lembrar o episódio, já tantas vezes contado, de como os norte-americanos estão convencidos que Portugal é uma província de Espanha, ou como outros asseveram que Madrid é capital de Portugal. Não merecem atenção os tiques de ostentação de riqueza, a feira de vaidades incessante que passa na televisão e é matéria-prima de um abastado segmento da comunicação social – a imprensa cor-de-rosa. Esvoaçantes arrivismos sociais, com personagens saídas do mais grotesco recôndito do imaginário dos nossos pesadelos, invadem as parangonas e fazem-se invejáveis exemplos para um exército de outros monstrozinhos que aspiram subir na escala do estrelato social. Nem que não tenham onde cair mortos. Tudo isto – e muito mais –, sinais do terceiro mundismo enraizado.

Por hoje, apenas um pequeno nada sintomático da matriz terceiro mundista que nos domina: as novas cores da TAP. Os aviões da “transportadora nacional” (mais um dos lugares comuns que nos enchem os ouvidos, na convocação do brio nacionalista; como se esta fosse a única “transportadora nacional”…) estão, aos poucos, a mudar de cores e de logótipo. A anterior imagem já tinha vários anos e sofria do desgaste da rotina instalada. Os especialistas de imagem terão concluído, em nosso nome, que estávamos cansados do anterior “livery” da TAP. A mudança é chamada a terreiro para afastar a monotonia semeada pela rotina, para refrescar as mentes e arrebitar a vivacidade das nossas vidas. Há quem acredite que é essencial lavar a cara dos “ícones” da idiossincrasia nacional. A TAP será um deles – apesar dos sucessivos anos de rombos financeiros, metendo a mão no bolso do contribuinte para salvar o mastodonte mal gerido.

Agora a TAP aparece com mais verde e menos vermelho. O verde apresenta-se numa tonalidade verde alface que não encontra eco na cor certificada pela bandeira nacional. Há que não o esquecer: as cores da “transportadora nacional” desde sempre representaram as cores da bandeira nacional. Não só o verde ganhou a faceta alface, como o vermelho se tornou mais garrido. O resultado final é uma paleta de cores que remete para a composição policromática folclórica das bandeiras dos países africanos ou caribenhos. Nada me move contra estes países. Alguns deles – em especial nas Caraíbas – seriam pousos ideais para uma reforma dourada. O que me intriga é como nos esforçamos por pertencer ao clube dos países desenvolvidos e depois resvalamos para mil e um sinais de terceiro mundismo.

No fundo, estamos a meio caminho entre dois mundos. Aspiramos à condição de país rico. Miragem que se distancia com a passagem do tempo e a sucessão de incompetentes governos. Acabamos por ser a ponte – e não apenas geográfica – entre a miragem do que queremos ser e o mundo subdesenvolvido que tem em nós uma porta de entrada no oásis das esperanças infindáveis.
Se estamos mais próximos do mundo próspero ou do mundo miserável, depende da perspectiva. Para alguns, torna-se inacessível entrar na elite da prosperidade. Definhamos no desperdício de oportunidades, esquecendo que abaixo de nós vive uma imensidão que permanece esquecida. Para os que insistem em cultivar a grandeza pátria, são os imensos que estão pior o chamariz para a auto-estima nacional. Para mostrar que podíamos estar pior, sinal do auto-comprazimento por termos chegado onde chegámos. Nem que isso signifique esquecer, por conveniência, que o passado é um cemitério de erros que negaram prosperidade. Este optimismo forjado é o pior sinal de terceiro mundismo.

14.6.06

Dicas para não respeitar o código da estrada


Quem não sonha em transgredir as regras bafientas do código da estrada e saber, à partida, que sobre ele (ela) não vai cair a mão pesada da justiça? Quem não gostaria de carregar no pedal direito, numa auto-estrada plana e sem trânsito, para sentir a adrenalina da velocidade vertiginosa, sem ir com o credo na boca por temer que uma brigada de trânsito traiçoeira o (a) venha a apanhar em flagrante delito?

Boas notícias para quem está em desacordo com o código da estrada: soube há dias que a brigada de trânsito tem instruções para fechar os olhos aos carrões do Estado que voam nas auto-estradas. A infracção passa impune. Justificação oficial: “viaturas em serviço oficial”. Os radares desligam-se nessa altura. Ou então os carrões dos figurões são como aqueles aviões ultra-modernos da força aérea dos Estados Unidos que conseguem voar sem serem capturados pelos radares. Eu digo: a isto chama-se infringir alarvemente. Mas, no fundo, é de boas notícias que se trata, porque os inestimáveis socialistas que estão convencidos que nos governam apregoam a toda a hora o valor da igualdade. A sagrada igualdade é ponto de honra, pelo menos na retórica inconsequente de governantes e afamados homens do aparelho partidário cor-de-rosa.

Se todos somos iguais – verdade insofismável dos socialistas – também quero usufruir das benesses dadas aos carrões do governo quando passam a velocidades impróprias debaixo das barbas dos senhores polícias da brigada de trânsito. Também quero fazer um Porto-Lisboa sempre a mais de duzentos à hora, no sossego de não me saber incomodado por um senhor agente da brigada de trânsito a brandir lições de moral, empunhando o código da estrada na mão esquerda como se fosse a sua bíblia sagrada, enquanto com a direita vai gatafunhando a multa que arromba as finanças pessoais. Se somos todos iguais, governantes e governados, certifiquem-me que as regalias dos primeiros não me podem ser cerceadas. Ou a igualdade não passa de uma miragem, de um golpe de asa da retórica que encanta o eleitorado para depois o iludir na governação.

Até sou modesto na reivindicação. Não reclamo a possibilidade de fazer vista grossa aos semáforos, prática habitual quando as comitivas de pessoas importantes desfilam pelas ruas das cidades. Apesar das ruas estarem enxameadas de semáforos, e da praga de semáforos às vezes criar dificuldades ao trânsito (em vez de o regular), são um mal necessário. O vermelho é para parar, o verde é para circular, o amarelo é para carregar no pedal do acelerador para escapar ao vermelho. Não quero para mim a prerrogativa de avançar alegremente com o sinal vermelho, com uma escolta de batedores cavalgando as suas potentes motas a parar o trânsito que tem o semáforo verde para si. Se há coisa que me mete espécie é esta pressa inusitada dos figurões, na especial condição de poderem escapar às regras mais elementares do código da estrada. Encontro uma explicação plausível: a governação não se compadece com atrasos, não pode ficar à espera que o semáforo abandone o vermelho e passe para verde. As tarefas da governação são mister urgente que não pode esperar pela chegada do semáforo verde.

Por este andar, qualquer dia os privilegiados do poder vão por outros trilhos que sulcam os mares da desigualdade de tratamento (que os favorece, como é lógico). Qualquer dia, quem sabe se os governantes ficam eximidos de pagar impostos, afinal o prémio pelo espírito de missão quando se entregam à causa pública. Como servidores do Estado (longe de mim pensar que eles se abancam à mesa do orçamento e se servem do lauto manjar que desfila através das funções que exercem…), devem ser agraciados com a dispensa de pagamento de impostos.

O rol de privilégios que negam a sagrada igualdade (que não passa de letra morta na boca de políticos mentirosos) não teria fim: as filas em repartições públicas, só para a gentalha comum; nos restaurantes, desalojar uma mesa ainda que os comensais estejam a meio da refeição, não vá o senhor ministro ficar irritado com a demora em ser servido; ir abastecer o automóvel de combustível e mostrar o cartão do governo para sair da bomba com o depósito gratuito; no verão, lugares reservados aos automóveis dos senhores importantes nos parques de estacionamento de praias concorridas, mesmo junto ao acesso pedonal ao areal, para suas excelências mais a prole e a consorte não serem obrigados a dar à perna sob o sol abrasador.
De tudo isto, apenas quero o privilégio de poder escorregar o pé direito no pedal do acelerador com a condescendência dos agentes da autoridade. Peço pouco.

13.6.06

Os lambe botas


São um espécime execrável. Insidiosos, fazem-se notar pela predisposição em lamber o chão que vamos pisar de seguida. Nas suas mãos, ficamos nos píncaros, quase entidades divinas. Eles desmentem um dos predicados da revolução francesa – a igualdade –, pois os tratos de polé que dedicam às entidades cujo ego massajam mostram que a igualdade não passa de uma miragem, e bem distante.

Estão em todo o lado. Há aqueles que nos tratam com indiferença se aparecemos desengravatados. Mas se no dia seguinte aparecemos de fatiota aprumada e gravata com estilo, logo muda o comportamento: a começar pela deferência de tratamento (“senhor doutor” para isto, “senhor doutor” para aquilo), finalizando nas atenções que o título concita. Há os que cultivam a cadeia de poder e se desfazem em vénias defronte do chefe, passando o espanador pelos locais onde o chefe senta o rabo, na elegia da chefia.

No universo dos lambe botas há três exemplos que me tocam pessoalmente. O primeiro é o dos restaurantes de primeira água, com uma estratégia de sedução do cliente bem estudada. Não tenho nada com os predicados de educação dos empregados de mesa. Entre um empregado de mesa com atenções excessivas e um empregado de mesa bronco, descuidado e desconhecedor da higiene, prefiro o primeiro. Mas há excessos que me irritam. O melhor exemplo é quando o repasto é servido e, passados uns minutos, o empregado de mesa (ou o chefe) se desloca até junto dos comensais e pergunta, delicadamente, se a refeição está a gosto.

Sei que a irritação pessoal pode ser apenas uma manifestação do mau feito que por aqui abunda. Neste momento, podia estar a ser flagelado pela contra-argumentação: diriam os que compreendem as multiplicadas atenções, que o empregado de mesa apenas se preocupa com a qualidade do que foi servido ao cliente. Quer saber se o preço que vai pagar compensa os atributos dos pitéus servidos. Tenho uma interpretação alternativa: quando o chefe de mesa chega cheio de salamaleques e interroga se está tudo a contento, está à espera que o cliente diga que sim. Ao dizer que sim, o restaurante enche-se de brio: e conclui que arrebatou mais um cliente. No fundo, quando o chefe de mesa se acerca dos amesendados e pergunta se estão satisfeitos com o lauto manjar, esta é uma forma disfarçada de puxar a graxa aos clientes. Uma forma alternativa de ser lambe botas.

Segundo exemplo: os alunos que se desdobram em elogios ao professor. Perturba-me: porque convivo mal com elogios (não é falsa modéstia, é apenas o incómodo que sinto quando os ouço, acometido pelo súbito desejo de me enfiar no buraco mais próximo); e reparo que há no rol de elogios a sensação de passar a escova pelo lombo do professor, uma tentativa para o domesticar, para conquistar a sua generosidade quando for chegado o momento crucial da avaliação. Àqueles espécimes que abusam na arte de lamber as botas, apetece-me perder a imparcialidade na avaliação. E penalizá-los, pesadamente, só para contrariar o indisfarçável dislate de quem ostenta a faceta de lambe botas, sem pudor pelos demais que o olham de soslaio.
Último exemplo: em tempos exerci funções de coordenação de uma das licenciaturas. Geria os recursos humanos do curso – por exemplo, a distribuição das disciplinas pelos professores. Alguns colegas não se coibiam de exercer pressão de forma despudorada. Alguns pediam-me para lhes atribuir a disciplina A ou a disciplina B. Um tinha a atitude típica do aluno que lambia o chão por onde passava, se necessário fosse. Deixei de exercer aquelas funções. A criatura em causa deixou de me cumprimentar sequer. Do oitenta ao zero, num ápice. O paradigma de como se é lambe botas de forma oportunista. Como, abandonadas as funções que me empossavam num poder que só os outros julgavam ser imenso, aquela criatura me passou a dedicar a mais profunda indiferença. Se há pior lambe botas, é este. O lambe botas que o é quando lhe convém e faz de conta que não conhece o anterior alvo quando ele perde o poder, logo, o interesse em mimar.

12.6.06

Cimento da portugalidade


Não é da “selecção de todos nós” que venho falar, na exaltação colectiva de um nacionalismo que multiplica os arrepios pelo corpo. Interessa-me perceber se as comemorações do 10 de Junho fazem sentido. Interrogações surgem no horizonte: se estas celebrações da portugalidade deixassem de ter lugar, por acaso ficaríamos menos portugueses? Perder-se-ia o rasto à nacionalidade, os sinais de pertença sublimados num evento que nos relembra o orgulho de sermos descendentes e continuadores da gesta lusitana?

Há algo que me perturba em tudo que resuma a um simples evento o festejo de uma pertença. É assim com a “festa da família” que coincide com o natal, como se nos restantes dias do ano os laços familiares fossem um fio indelével com a espessura das ondas hertzianas (sentem-se, mas não se vêm). É assim com o “dia de Portugal, de Camões e das comunidades”, o protocolo oleado numa sequência de actos, discursos, paradas militares e sabe-se lá mais o quê, para que nós, portugueses cidadãos, puxemos lustro à nacional pertença. Ao menos um dia no ano. Num caso como no outro, apenas o fogo-fátuo de exibições megalómanas.

Que me seja perdoada a forretice: vejo a corte presidencial que se mudou de armas e bagagens para a capital do norte, as paradas da tropa, o séquito que ocupa hotéis de cinco estrelas, mais os banquetes que enchem o bandulho à corte itinerante, e ponho-me a pensar se a factura desta exibição de exaltação de portugalidade não é um desperdício. Poderão dizer que não. Poderão dizer que se trata de trocos, que há facturas bem mais elevadas em coisas mais espúrias que os governantes fazem. Poderão até invocar o simbolismo das celebrações, no arrebatamento do sentir pátrio, para justificar o dinheiro enterrado. Aceito os argumentos, mas não me consigo convencer com eles.

Já para não falar do incómodo que a deslocação da corte trouxe à capital do norte. Carros e motas da polícia com sirenes estridentes, pondo a cidade em estado de sítio. Carrões negros, vidros fumados que obscureciam o interior, escondendo a intimidade dos ilustres ocupantes, em velocidade estonteante pelas ruas da cidade, sem respeito pelos semáforos. As dondocas da corte a entrarem e saírem dos hotéis de cinco estrelas. O trânsito, já difícil em dias normais, mais caótico com o estado de sítio instalado e com as prerrogativas concedidas às excelências que abrilhantaram as celebrações. O ambiente militarista com o arsenal dos três ramos das forças armadas deslocado desde os quartéis até à cidade, sinalizando que a tropa está preparada para nos defender de uma coisa que não passa do imaginário de generais entretidos com anacrónicos cenários de guerra. Quatro mastodontes fardados, exibindo com garbo a pertença a uma “tropa de elite” (comandos ou coisa afim), a saírem de uma pastelaria na Avenida do Brasil, empunhando ameaçadoras metralhadoras, depois de se saciarem com umas imperais (e não é verdade que não se bebe em serviço?).

E depois há a retórica e o simbolismo das cerimónias. Os discursos da prognose da nação. O roteiro necessário para voltar a erguer a bandeira ao alto, para retirar um povo da modorra e da falta de auto-estima que o enluta na falta de empenho tão letal. Palavras de circunstância, uma retórica estafada que nunca traz o segredo tão ansiado. O inevitável elogio do escol que se distingue, os melhores entre os melhores, agraciados com comendas várias. É a pátria que distingue os filhos ilustres. Ao impor a comenda, o mais alto magistrado da nação agradece-lhes, em nome da nação. Por um momento, sonho que um dia serei famoso. Só para algum dia, num 10 de Junho de um ano qualquer, merecer a honra de ser agraciado por um presidente da república que estiver na calha. Só para ser agraciado. E só para ter a honra de recusar a comenda.

Percebo que no domínio das pertenças, onde os sinais de identificação valem tanto, os símbolos reinem. No reino da simbologia, as encenações são elevadas ao altar do sagrado. Olho para os 10 de Junho, todos os anos, e não consigo discernir diferenças no registo. Mesmo quando se voltou a página e as esquerdas se sentem órfãs por acharem que a presidência da república foi parar, pela primeira vez, às mãos da direita (como se o actual inquilino de Belém fosse de direita…), nem assim a mudança aconteceu. Se há coisa que mudou, e para pior, foi a convocação de tropa abundante para os festejos. Para quem, como o escriba, considera que entraríamos na idade adulta se prescindíssemos de toda a tropa possível e imaginária, o sintoma é de doença agravada.
Os 10 de Junho tresandam ao bafiento odor de algo que permanece fechado num armário durante um ano, bem guardado a sete chaves, e vem apanhar o ar fresco num dia estival. Espera-se que as massas adiram em peso à convocação do sentir pátrio. Para desgosto dos políticos, as massas andam mais entretidas com os feitos da “selecção de todos nós”. É aí que a exaltação nacionalista bebe todo o seu fervor. E ainda que os políticos se colem ao pessoal do pontapé na bola (como é conveniente), a malta da política é derrotada, em popularidade e como ponto de ancoragem das lealdades populares, pela malta do pontapé na bola. A bota que não bate com a perdigota.

9.6.06

A beleza por dentro de tudo

O cansaço do cepticismo metódico. A urgência em mudar as lentes que filtram a imagem das coisas e das pessoas. Para perceber que as coisas e as pessoas, por dentro, são feitas apenas de beleza. Que tudo merece enaltecimento. Os tons ocres de antanho mergulham a existência numa sofrida, penosa avenida, com espinhos abundantes que ficam cravados nos pés descalços.

A pureza do ar que se respira. A luz límpida na exaltação do sol generoso. Uma luz branca, purificadora. As pessoas anónimas que se cruzam: partir do princípio, ingénuo mas recompensador, que cada anónima alma está preenchida por bondade. Não há maldade a adejá-las. Nem perfídia que ponha as pessoas no encalço da desonestidade, do aproveitamento da ingenuidade alheia, do encavalitamento na boa fé dos outros. Apenas respeito mútuo. As pedras graníticas então desfeitas em cascalho, caminho desbravado para extinguir os tribunais.

As serranias no fulgor da Primavera são o alento primordial. Os montes e vales que se repetem na passagem dos quilómetros, as verdejantes faldas das serras, os promontórios esplêndidos que albergam mistérios bem guardados. Um revigoramento indizível. Apetece sair do carro, adentrar no espesso matagal que empina rumo aos céus. E perder a noção do tempo, entre o perfume das madressilvas viçosas, a sombra refrescante dos choupos majestosos, dessedentar nos fios de água que descem do alto da montanha. Para regressar à origem e poder contemplar o quadro total, os contrafortes da colina que já escondem o sol que se deitou, lá atrás.

Ou estacionar o espírito junto ao mar. Fechar os olhos e sentir a cantoria das ondas que volteiam, nunca repetitivas, enquanto se despedaçam nos rochedos que se entregam à erosão combinada da água salgada e do vento. Sentir as lágrimas das ondas que se desfazem nas rochas, senti-las no refrescante acto que atenua o calor que anuncia o longo estio. Sempre de olhos fechados, na sublime expressão dos sentidos em erupção. Que não se demorem os olhos semi-cerrados na sua escuridão. Na dormente letargia que extasia, perdem a contemplação do gigantesco oceano que se espraia até à fusão com o horizonte. A linha ténue que faz a simbiose dos elementos perde-se no infinito, algures onde outrora a alma ansiava pertencer. Agora, no refulgente renascimento de si, o desejo de estar exactamente onde pertence.

As cores, os sons, as palavras – ditas, escritas, escutadas, murmuradas –, os gestos: um universo de plenitude, nutriente da jactante existência que se contenta com o acto tão simples, e ao mesmo tempo tão difícil, que é viver. Como se a vida fosse uma sinfonia que se compõe dia após dia, mais um punhado de notas compostas a cada dia que se sucede, mais uma estrofe na história da vida que se sedimenta. Um melodioso acto que fica a pairar, indelével. Crescer com as pessoas que dizem muito. Aprender todos os dias, até na surpreendente aprendizagem com desconhecidos que aprecem no caminho. Acordar para o dia sabendo que ele está semeado de surpresas. O desconhecido do dia que está para vir é o lenitivo maior, o desafio que manieta a monotonia.

A beleza das coisas, no seu mistério infinito, desvela o segredo da existência. Um mundo imenso, tantos os recantos por explorar, a luz da noite e do dia que guarda as palavras segredadas, os afagos que fazem renascer, as palavras murmuradas que descerram cortinas do outrora desconhecido. Há na beleza das coisas e das pessoas o oxigénio perene que retempera. Cultivar o tempo passado é uma inutilidade. A única servidão é a experiência cimentada, a lição que impede a repetição dos erros. Olhar para diante, para os dias vindouros. O alfobre dos desafios, dos novos horizontes que se dedilham com o dobrar dos dias, um passadiço para a letargia sepultada, bem fundo.
Por um momento ponho as lentes de parte. E temo que estivesse a ver desfocado através delas.

8.6.06

Enigma

Fui ao supermercado. Acabei de comprar "achocolatado de morango".
Em tempo de futebol, os pontapés estão em saldo. Até os que são dados na gramática.

Miopia

De alguém, pois leia-se duas fontes diversas:
Miopia, ou alguém necessita de uma reciclagem de zoologia.

Politicamente incorrecto em dois actos (sequela)

O texto de ontem motivou vários comentários (agradeço a todos os comentadores o contributo para o debate). Achei importante acrescentar mais alguns aspectos, para clarificar os meus pontos de vista.

A começar pelo excesso do último parágrafo, quando sugeri a tentação de me solidarizar com o dirigente da Frente Nacional que foi parar aos calabouços. Foi uma figura de estilo, obviamente. Se houve algum ímpeto de solidariedade, nunca se poderia estribar em afinidades ideológicas com a personagem. Apenas pelo facto da polícia, com uma celeridade inusitada, ter metido pernas ao caminho e enjaulado o filisteu. Como seria de esperar, o homem protestou. Dramatizou o episódio: escondido no carro celular que o levou ao juiz, pediu à audiência que lhe reconhecesse o estatuto de perseguido político. Até invocou algo que desdenha: a revolução que instalou a democracia. Por vezes, há manobras que têm o travo amargo da ironia do destino.

A propósito da rapidez da reacção da polícia, houve um comentário esclarecedor: “anacf” interrogava-se se a rapidez seria a mesma caso passasse uma reportagem com pormenores do tráfico de droga num qualquer bairro social problemático de Lisboa ou Porto. Ela sabe, como todos sabemos, a resposta: não, a lentidão, ou até a omissão, viriam ao de cima. O que deixa suspeitas pouco abonatórias para o funcionamento da justiça e da polícia. Sobretudo num regime que se ufana dos seus dotes democráticos. É aqui que está o busílis da questão. Como pode uma democracia gabar-se de o ser se nega um dos seus valores axiais?

Podem-me dizer que em matéria de valores há limites que se impõem quando alguém tenta asfixiar um valor matricial. Se a democracia é respeito pelas ideias diferentes das nossas, se é convivência em pluralismo, se tem como trave mestra o valor da tolerância, não pode pactuar com movimentos que têm como objectivo o seu aniquilamento. Mais ainda quando esses movimentos se distinguem pelo uso da violência, e fazem garbo disso.

Concedo que em Portugal o contexto histórico é hostil aos movimentos de extrema-direita. Somos uma democracia adolescente. O “fantasma” do “fascismo” ainda está bem vivo, sobretudo enquanto tivermos veteranos actores do meio político que lembram a toda a hora as perseguições de que foram vítimas no tempo da ditadura. Tenho para mim que a constante invocação do tenebroso “fascismo”, como meio de mobilização das massas para as virtudes da democracia, é um convite a sermos democratas pela negativa. Seremos democratas apenas porque o seu contrário – a ditadura de que nos vimos livres – era tão hedionda. Eu prefiro ver na democracia algumas virtudes pelo que ela oferece, não por ser um meio de combater ditaduras.

Um anónimo apresentou, no comentário, dois artigos da Constituição que são lapidares quanto à proibição da ideologia “fascista”. Só que a Constituição não é uma vaca sagrada, em relação à qual nos devemos curvar humildemente. Sobretudo esta Constituição anacrónica, verdadeira peça de arqueologia política. Continuo a acreditar que uma democracia que negue um dos seus valores matriciais é uma democracia de fachada, uma democracia de uma perna só. E, como bem sintetizava Rui Miguel Ribeiro no seu comentário, condescender em relação aos partidos comunistas, trotskistas e afins é um erro, uma incompreensível desigualdade de tratamento. Porque eles também não cultivam a democracia. Poderão não usar a violência como arma de arremesso – e nisso se distinguem da extrema-direita, cativando maior simpatia no eleitorado. Apesar da diferença dos meios, o fim é o mesmo: ditadura.
No rescaldo deste triste episódio, poucas pessoas dão conta que, involuntariamente, embarcaram na estratégia dos extremistas. Estão-lhes a dar uma visibilidade ímpar, atendendo à sua escassa implantação. Em vez de remeterem estes grupelhos para a marginalidade, temo que estejam a atrair pessoas às franjas da extrema-direita. O que se lamenta é o autismo de quem procura a toda a hora fantasmas no armário: é a ansiedade de denunciar o “fascismo” que explica a censura à extrema-direita. O exemplo francês – e podíamos recordar ainda a Áustria, a Holanda, a Bélgica, a Alemanha, a Itália – parece ter caído em saco roto. A memória é curta. Na França, a estratégia de isolamento da Front National do execrável Le Pen teve efeitos contrários aos pretendidos. Hoje, a extrema-direita em França tem um poder que há uns anos ninguém conseguia vaticinar. É isso que os cultores da democracia querem que aconteça em Portugal?

7.6.06

Politicamente incorrecto em dois actos


Cenário montado para o primeiro acto: primeiros dias de calor, primeiros incêndios. Um, em Barcelos, terá começado numa maldita romaria que põe o povo em exaltação domingueira a fazer piqueniques na mata. Com a ausente cautela destas ocasiões, misturada com a costumeira negligência popular e uns pozinhos da inevitável ignorância, uma chispa descontrolada no churrasco tresloucado e o incêndio ateado.

O tempo, inclemente como sempre, fez o resto. O calor antes de tempo, demorado e seco, o vento de leste com rajadas fortes, eis o combustível para a propagação das chamas. Já lá vão três dias de promessas, sempre adiadas, de "fogo circunscrito". Ontem pelo almoço, as televisões, sempre ávidas em serem veículos da voz do povo, deram a voz ao povo. Que protestava. Protestava contra a demora na utilização dos meios aéreos. Os exemplares do povo que foram porta-vozes do povo contristado dissertaram sabedoria infindável no domínio do combate aos fogos florestais.

À memória vieram imagens de uma brigada de bombeiros chilenos que esteve no Ribatejo a trocar experiências no combate aos fogos. Era conhecida pelos métodos inovadores e pela eficácia na extinção de incêndios. Já que o governante responsável estava pelas imediações do fogo de Barcelos, espero que não lhe tenha passado desapercebida tamanha sapiência popular. Tenho a esperança que o secretário de Estado do Costa (que, convenientemente, não deu a cara, depois de todas as vanglórias de há meses – “nada seria como dantes no combate aos fogos”, certificou-nos) tenha requisitado aqueles castiços exaltados e os envie para o Chile. Ficávamos quites no intercâmbio de especialistas de combate a incêndios. Com outra vantagem: os castiços cheios de sapiência podiam gostar das terras chilenas e nunca mais voltar.

Se há expressão que me deixa intrigado é “sabedoria popular”. Se é popular, não pode ser sabedoria. Será, quando muito, exibição de esperteza, uma coisa acientífica, fruto do acaso, uma sucessão de resultados que o empirismo e a sorte explicam. Talvez por esse motivo o povo se gabe que “de poeta, de médico e de louco todos temos um pouco”. O aforismo pode ser estendido consoante as necessidades. Ontem percebi que o povo, que mal sabe articular duas frases sem dar sete pontapés na gramática, é catedrático em incêndios. Sabe muito de química e de física para calcular o que deve ser feito – e quando – para apagar fogos. E sabe de aeronáutica, conhecimento reles, para perorar sobre a utilização de meios aéreos para combater incêndios.

Qualquer dia temos o povo tacanho, com a quarta classe mal tirada à custa da condescendência de generosas professoras primárias, a sentenciar sobre tudo e mais alguma coisa. A democracia a isso obriga. A miragem da igualdade exige-o. Já estou a ver o povo a decidir sobre a energia nuclear. Ou sobre questões éticas relacionadas com manipulação genética de embriões que resultam de espermatozóides e óvulos conservados no frio. Ou sobre a Constituição da União Europeia. Tudo e mais alguma coisa, que a voz popular é o substrato da democracia. Nem que, por um momento, se passe a esponja no que interessa: “vozes de louco não chegam ao céu”, pedindo outro adágio emprestado ao povo. A conclusão do acto, num esboço que me coloca no perigoso limiar do elitismo politicamente incorrecto: vai doente a democracia quando ela dá a voz a cada membro do povo, mesmo aos mais impreparados, aos mais incultos.

Mudança de cenário para o segundo acto. Uma reportagem sobre a extrema-direita caseira, que ressurge das cinzas do salazarismo deposto no 25 de Abril de 1974. Um “líder” de um grupelho qualquer é entrevistado. As ideias deploráveis de sempre. Tão deploráveis, mas em grau diverso, como os ideais anti-democráticos de comunistas e de outros lídimos representantes da extrema-esquerda com assento parlamentar. A violência tinha que vir à baila. Afinal a violência é um traço distintivo dos brutamontes da extrema-direita, que à falta da razão se servem da razão da força. O artista entrevistado diz que eles são pacíficos. Mas deixa a ameaça: que não os provoquem, que num estalar dos dedos põem o manancial de actos de violência em prática. Detrás de um sofá desvendou uma arma qualquer, parecida com uma metralhadora. Disse que era caçador, que tinha porte de arma, que aquela arma era legal e que a podia usar em auto-defesa.

Ao fim do dia, leio a notícia que as zelosas autoridades policiais (instruídas por um qualquer juiz que só vê perigos para a democracia quando as ameaças partem da extrema-direita) prenderam o rapaz. Posse de arma ilegal e apologia da violência, vinha na acusação. E assim se silencia uma voz que está fora do sistema – porque, há que o lembrar, os partidos de extrema-direita estão proibidos na Constituição, numa manifestação de evidente tolerância democrática...Não sei o que me leva mais depressa ao vómito: se as ideias do “dirigente” do grupúsculo de extrema-direita, se esta manifestação de intolerância do regime democrático – quando nos ensinam que democracia é tolerância. Afinal, parece que a tolerância só tem olhos para um dos lados que injuria a democracia.
Acabo o dia preocupado com um sintoma que se apodera de mim: de súbito, apetece ficar solidário com o rapaz da extrema-direita que teve a infelicidade de dar uma entrevista a um canal de televisão.

6.6.06

Paternalismo neo-colonial (e os “ais” que se dão por Timor)

Gostava de conhecer a maneira como os outros países que foram potências coloniais tratam os países que estiveram sob a sua alçada. Para tecer uma comparação com o paternalista Portugal que não se consegue desprender de uma consciência que tutela os passos dados pelas ex-colónias. Só para ver se há diferenças. E se as diferenças, caso existam, se explicam por uma dor de consciência de uma descolonização mal feita (apesar de Mário Soares estar convencido do contrário), ou por muita gente ainda não estar mentalizada que a descolonização se fez. Possivelmente, os laivos de paternalismo têm outra justificação: descolonizámos mais tarde, as feridas ainda não cicatrizaram. Daí os imperativos morais que assomam com mais intensidade.

O paternalismo neo-colonial por vezes confunde-se com uma catarse patrioteira. São exercícios de garbo nacionalista que aumentam a auto-estima pátria. No fundo, uma efabulação umbiguista: o paternalismo neo-colonial que se resume a puxar o lustro aos predicados da portugalidade pouco se interessa com o bem-estar dos povos das ex-colónias. Egocentrismo puro, portanto.

É em relação a Timor-Leste que o paternalismo neo-colonial se eleva ao expoente máximo. Decerto por ser o “mais jovem país do mundo” – como a comunicação social que romantiza o idílico caso timorense gosta de apregoar, – decerto por Timor ser a última ex-colónia a ascender à qualidade de país independente. Sem perder de vista a carga emocional: a dolorosa conquista da independência, depois dos timorenses se libertarem do jugo indonésio, com muitas mortes arroladas num mar de sangue donde emergiu a independência. É em relação a Timor-Leste que, por entre uma aura de misticismo, se afirma uma portugalidade perene. Pode Timor-Leste ser um país soberano, mas os laços com o ex-colonizador são indeléveis. Ruborescem quando a crise visita os timorenses.

São os mesmos que enchem o peito de brio, quando escutam os apelos sentidos dos timorenses para que chegue ajuda do longínquo Portugal, que se recusam a aceitar a tese de que Timor-Leste é um Estado falhado. Podem ser as dores pós-parto, de um parto tão doloroso que o recém-nascido parece ter saído prematuramente da incubadora. Que ninguém ouse afirmar que os costumes, a forma como a sociedade timorense está organizada (tribalismo), ou o anacrónico modelo escolhido pelo partido do governo, que parece ter parado no tempo ao recuperar tiques estalinistas, que ninguém ouse afirmar que estes são os motivos do falhanço de Timor independente. Obnubile-se a imagem que se vê, com uma frequência preocupante, da incapacidade dos timorenses se regerem a si mesmos.

Por entre a aura romântica, com os heróis que a comunicação social gosta de fabricar, Timor continua a batalhar pela existência. Penando, é certo. Com o sacrifício de tantas vidas humanas, que pagam o preço – o preço muito elevado – da independência. Dir-se-ia que Timor tem o estigma do muito sangue vertido em seu nome. Falta saber se faz sentido que cada vida ceifada o tenha sido em nome de um país que os que partiram nunca hão-de ter a delícia de sentir independente. Mas esses são contos de outro rosário.

O que me intriga é a ingenuidade dos timorenses, que regressam ao passado e convocam a ajuda de quem os colonizou quando as horas são de crise. E o pérfido aproveitamento que por cá se faz desse lancinante apelo, como se fôssemos os salvadores de um pátria acabada de nascer. A retórica oficial é esclarecedora: enviamos a GNR para pacificar o território, ajudando a causa condoída dos timorenses. Uma missão divina, a diferença que marcamos em relação aos interesseiros australianos, nós, os Messias de Timor-Leste. Lá atrás, bem escondida, a verdade toda: os pequenos sinais que os jornalistas enviam, no penhorado agradecimento que os timorenses não se cansam de dedicar aos lusitanos; o excelente acolhimento que nos dedicam; e como todos estes sinais fazem bem, tão bem, para hastear a bandeira do orgulho em sermos portugueses.
Podem-me censurar pelo cepticismo militante, pela descrença na genuinidade da missão dos latagões da GNR que espalham pacificação pelo território timorense. Aos que antes espalharam as sementes da conspiração de interesses económicos (porque a desestabilização terá sido encomendada pela Austrália, que parece não ter gostado de saber que Timor ia formar uma empresa estatal para refinar petróleo), um repto: por acaso acreditam que esta ajuda (que, para já, nos custa cinco milhões de euros) não terá recompensas para os interesses económicos lusitanos?

5.6.06

Que sinais de pertença? (Da rejeição desta portugalidade)


Acto primeiro: sábado, marcha do mundo rural sobre a capital. A ruralidade desceu à grande urbe. Para a imprensa, raramente penhor do rigor da notícia, o “mundo rural” invadiu Lisboa – quando, afinal, tomou conta de uma das principais avenidas da cidade. Continuando na senda da mistificação teatralizada, a comunicação social afivelou-se no acto pedagógico: quis lembrar – noutros casos, ensinar – aos lisboetas que a água não nasce engarrafada, que o leite vem das vaquinhas antes de ser embalado no Tetrapack, que os frangos de churrasco são aves com penas e cabeça, não os bichos degolados e depenados à venda nas grandes superfícies comerciais.

Na amostra da ruralidade, por entre campinos, pastores, produtores de leite, vitivinicultores, minhotos e outros espécimes do mundo rural, o folclore, o inevitável folclore. E o vinho carrascão a jorrar, abundante, dos garrafões de cinco litros, acompanhado do caldo verde, das moelas, das sandes de torresmos, dos nacos de presunto abocanhados com a fome de quem trabalha a terra de sol a sol, na exaustão das energias que desbrava o terreno para uma fome de leão.

Acto segundo: a “selecção de todos nós” (como abomino o rótulo…) chegou à Alemanha, onde vai disputar o campeonato do mundo. Deposita as esperanças da mais profunda portugalidade. São os embaixadores da grandeza pátria. Por estes dias, não há-de haver coisa mais importante – nem política, nem economia, nem o deplorável paternalismo que teimamos em exercer em Timor-Leste, nada. Como os penhores da nobreza lusitana chegaram a terra de emigrantes, reunidos os ingredientes para um cocktail de transbordante entusiasmo. A terra onde os futebolistas nacionais vão estagiar é uma ilha de Portugal na distante Alemanha. Tanto que até uma jovem polícia pintou uma pequena bandeira verde e rubra na bochecha esquerda (desconhece-se se o superior hierárquico a puniu pela desfaçatez).

O regozijo dos emigrantes estava à solta. Um domingo diferente. Não é todos os dias que eles dão corpo à lusitanidade além fronteiras. Em rigor, é todos os dias que eles prolongam o Portugal pátrio além fronteiras. Os saudosos da terra-mãe deixada para trás defendem-na com mais ardor que os nativos que por aqui ficaram. Mas ontem era dia especial: o contacto visual com os heróis da bola, os instantes de glória por que nunca mais hão-de passar, com as suas caras na televisão. Para alguns, um microfone para dizerem de sua justiça. Um deles sentenciou, de lágrima furtiva ao canto do olho: “Portugal somos nós”. E depois a câmara rodou para a esquerda e dois acordeões desataram com os sons primários do folclore luso, para gáudio da turba que começou a pular, braços no ar, os polegares e os dedos médios a estalarem ao ritmo da melodia, na coreografia feita de semi-círculos voltejados.

Portugal somos nós”. Se esta é a idiossincrasia nacional, não é aqui que pertenço. Porventura será mais verdadeiro falar de pertenças múltiplas. Ou redutor resumir a portugalidade ao folclore estridente que vem do Minho, aos piqueniques na mata, aos garrafões de vinho de cinco litros, à barbárie da tourada, ao Benfica com mais adeptos que cidadãos existentes, ao sarrabulho e outras iguarias que metem sangue de animais degolados com uma frieza bestial, o que explica a apetência lusa para sair do carro e ver se há sangue derramado num acidente de automóvel, ao foguetório ensurdecedor em dia de romaria, à música pimba que polui a audição e corrói o cérebro.

Já o terei escrito várias vezes: o país é a minha família e os meus amigos. Esses não têm bandeira. Nem hino. Nem precisam. É neles que ancoro os meus sinais de pertença. Foi com eles que cresci, que me tornei homem, parte do que sou é muito do seu património genético. Não me repugna que sejamos olhados com zombaria pelos outros povos, quando lá por fora os embaixadores da portugalidade – os emigrantes – mostram o que de pior por cá existe. Os outros têm os seus pecadilhos próprios e com eles se devem entretecer. E nem me importa a opinião que o outro tem de mim, pelo que o juízo de valor que fazem de todos nós me é indiferente.
Todavia maçam-me os estereótipos cimentados da lusitanidade. Quando estou no estrangeiro e desvendo a nacionalidade que carrego comigo, começo por sentir que ainda somos vistos como uma curiosidade antropológica, de algures a meio caminho entre a Europa civilizada e o norte de África. Uma espécie de aves raras da grande casa comum europeia. Incomoda a imagem que me colam como exemplar da lusitana gesta: são as sardinhas, o FC Porto quando vence lá fora, o vinho verde, o fado. Já nem me apoquento em fazer a dissociação dos rótulos. Para desenraizado, já bastam os meus sinais de não pertença. O desenraizamento intensifica-se quando levo com os rótulos que os outros conhecem de nós. E quando entram pelos olhos os sinais que cultivam a “forma de ser português”, tal e qual vem nos manuais e nos roteiros turísticos.