À roda da conversa, o tema era a música de protesto. Passei a estar deslocado do contexto. Os outros falavam, atiravam as referências que preenchem o imaginário romântico de sucessivas gerações. Eu escutava-os. Os nomes trocados, como se estivessem numa troca e cromos para preenchimento da caderneta, não eram desconhecidos. Como não é música que afine os meus tímpanos, sou desconhecedor da obra. Até o inglês conhecia mais da poda.
O meu descompasso com a música de protesto é larvar, algo que entra no domínio do preconceito. Admito-o: fico de pé atrás pelo lastro ideológico que acompanha a malta das canções de protesto. E como não me revejo na militância e, sobretudo, nas causas entoadas numa lírica que arrebata as militâncias fiéis, a melodia soa-me ao mesmo odor pestilento do que se esconde na mensagem. E, ainda assim, tenho que reconhecer que trinta anos depois de termos dito adeus à tenebrosa ditadura, ainda adeja uma aura de romantismo nos expoentes da música de protesto.
Foram importantes vozes de protesto que, à sua maneira, iam minando os alicerces do Estado Novo. Paradoxalmente, o 25 de Abril trouxe-lhes más notícias. O rótulo "canção de protesto" perdia grande parte da razão de ser. Deixavam de lutar contra as purgas da polícia política, contra os silenciamentos da censura, contra a falta de liberdade de expressão. O desencanto, alimentado pela perda de causas que servissem de musa inspiradora, durou pouco. E se o sonho da satelização soviética ainda perdurou até às primeiras eleições, doravante as suas causas revestiram-se com nova roupagem. Voltavam a lutar contra o "fascismo". Não o "fascismo" enterrado em 25 de Abril de 1974. Um novo "fascismo", um fantasma que povoava as suas mentes atormentadas, em frete visível aos patronos políticos a quem a canção de protesto era tão conveniente. Para arrebatar gratuito tempo de antena nos programas de variedades, na doutrinação das massas. E para enfeitar a festa do Avante.
Intriga-me o rótulo de romantismo que costuma andar de mão dada com a canção de protesto. Denunciam as injustiças sociais. Denunciam as perseguições dos poderosos que asfixiam os pobres e os indefesos. Proclamam-se penhores dos direitos dos oprimidos, o que logo os investe na aura de romantismo. E, no entanto, há todo um programa político indisfarçável, o tal lastro ideológico que é a cama onde repousam os lençóis da música que compõem. É aqui que encontro a incoerência: ou de como o romantismo pespegado à canção de protesto não condiz com a obscura militância ideológica.
São os arautos da liberdade. E ainda defendem um modelo que cerceou as liberdades individuais, asfixiou a liberdade de expressão, condenou as massas a uma vida miserável. Recusam-se a olhar de frente para os ventos da História. Fiéis aos compromissos da ideologia, continuam a achar que o mundo pútrido que a queda do muro de Berlim desnudou é o paraíso da felicidade humana. Nem que esse mundo também fosse feito de censura, de perseguições políticas, do medo instalado de um dia qualquer a polícia política bater à porta porque houve uma denúncia de um invejoso colega de trabalho que mentiu a nosso respeito.
Revejo tudo isto e continuo sem perceber como o rótulo de romantismo permanece vivo na música de protesto. A menos que haja uma definição desconhecida de romantismo. A menos que o romantismo seja trucidar os ímpios interesses do "grande capital", que andam sempre mancomunados com o poder vigente, com a bênção dos tribunais, das polícias, das autoridades eclesiásticas. É romântico denunciar os compadrios, semear teorias da conspiração que antecipam o pior dos mundos para os oprimidos, sempre oprimidos por uma minoria que alarvemente se alambaza com lucros infindáveis. São os novos "fascistas", os "fascistas da democracia", de uma democracia apenas formal. E como a inspiração destes compositores de protesto exige um fantasma omnipresente, há que os inventar mesmo quando eles foram silenciados no passado.
Com o tempo eles envelhecem, os cantores do protesto. Uns, já mortos, entraram na galeria da imortalidade pela obra que legaram. São intocáveis, como heroificados são os que nos deixaram cedo de mais, com tanta obra mais por legar. As gerações começam a passar e a renovação dos artistas da música de protesto tarda. À imagem da pirâmide demográfica, com o angustiante envelhecimento que não augura nada de bom. Os ouvidos que se deleitam com o património da canção de protesto vão repetindo as audições, à falta de renovação da obra. Talvez daqui a duas gerações a música de protesto seja peça antropológica, uma mera curiosidade da história, uma nota de rodapé que teve o seu lugar num contexto muito específico. E que o romantismo regresse ao seu lugar original.