27.6.06

Um acto de caridade


Na hora de avaliar os alunos, há dilemas que se agigantam. Sobretudo naqueles casos que estão na corda bamba, no limiar entre a reprovação e a ida ao exame oral, ou mesmo à beira de conseguirem os décimos de valor necessários para escaparem ao tormento do exame oral, alcançado o desejado dez. Com os anos, as percepções vão mudando. Sinto que fui amolecendo na exigência colocada na avaliação. Condescendo mais. E cá está o dilema que a condescendência avaliativa semeia: por vezes, sinto que a generosidade (a “água benta” que alguns alunos, com despudor, me pedem para deitar nas suas provas) leva a nivelar a qualidade por baixo.

Nisto da pedagogia há métodos diferentes. Há aqueles que são cegamente exigentes, inflexíveis nos critérios que estabelecem, incapazes de levar uma nota de 9,4 a uma classificação de dez valores afixada em pauta. Na outra extremidade, os que cultivam a máxima de Leonardo Coimbra: veio ao exame, só pelo incómodo já merece dez; o que vier em acrescento serve para ir subindo a nota final. Consta que uma derivação deste sistema de facilidades está em moda nos Estados Unidos. Os professores que forem pouco generosos na hora de avaliar, pautas exibindo notas médias não inflacionadas, estão destinados ao insucesso. Estranhamente, instalou-se um clima de terror intelectual que fomenta nos professores uma insólita rivalidade: é ver quem consegue dar as notas mais altas.

Se há coisa que me causa estranheza é ver uma pauta de avaliação onde todos os alunos são classificados com excelência. Quando essas pautas inflacionadas se generalizam, é sintoma de que os alunos conseguem estar muito próximos do nível de conhecimentos do professor. Ou que o professor tem conhecimentos que o não distanciam dos alunos creditados com notas tão elevadas. É o estigma daquelas turmas do ensino secundário talhadas à medida dos “crânios” que meteram na cabeça que haveriam de entrar em medicina. Os meninos têm todos calibre de excepção. Depois é vê-los concluir o ensino secundário com 19,4 de média. E a nota mínima de acesso a medicina a sofrer um processo de hiper-inflação, sempre acima dos 18,5 valores.

Quando se passa para a outra extremidade, há algo de errado num professor que colecciona alunos ano atrás de ano, engrossando as suas turmas com os veteranos, os menos veteranos e os candidatos ao sacrificial ritual de todos os anos. Sobretudo naqueles casos em que o professor se auto-convence que a sua disciplina é a mais importante do curso. Eleva-se o grau de exigência a níveis desfasados da realidade do ensino universitário. Porventura nem sequer alunos de mestrado teriam capacidade para ultrapassar a elevada fasquia. As pautas destes professores são uma paisagem desalentadora. Quase sempre abaixo dos cinco valores. As aprovações são um oásis perdido no meio de um vasto deserto de areia (e de conhecimentos). E se no caso dos professores com generosidade a rodos parece que eles descem ao nível dos alunos, quando toca a perceber a cabeça dos professores que fazem gala de coleccionar chumbos a eito parece que eles anseiam que os alunos subam ao seu douto nível.

Já se percebeu que no assunto faz sentido procurar um equilíbrio, dar vencimento ao afamado “meio-termo”. Todavia, os anos passam e a qualidade média dos alunos tem diminuído. O dilema ergue-se no horizonte: manter a fasquia e encher o bornal das reprovações? Ou ir adaptando a fasquia ao nível médio da audiência, para evitar o aumento da taxa de insucesso universitário? Não é apenas a perspectiva dos resultados que conta. É um aspecto que, no entanto, tem a sua importância. Levar o mesmo aluno vezes sucessivas à avaliação da mesma disciplina pode fermentar a desmotivação, pode levá-lo a abandonar a universidade. Em certos casos, é um acto de caridade para com o aluno, sobretudo quando a opção pelo curso foi um equívoco.

O que me causa inquietação é quando desço a fasquia e dou conta que aprovo alunos por um acto de caridade. Para com o aluno, quando já ascendeu à nada invejável condição de veterano, tantas as tentativas fracassadas de ter uma nota com dois dígitos. E para com o próprio professor, que a certa altura é derrotado pelo cansaço e apenas quer ver o aluno com a disciplina feita, para o não aturar jamais. Temo que o preço possa ser elevado: que a fasquia menos apertada não resulte numa preparação adequada para os alunos, que saem da universidade impreparados para a vida profissional.
É nesta altura que uma paradoxal teoria pedagógica me aquieta o espírito: é lá fora, na selva profissional, que os ex-alunos ganham toda a sua tarimba. Um pouco como acontece com as escolas de condução: o que lá se aprende são os rudimentos; só depois de encartados é que os automobilistas aprendem a conduzir. Mas se esta teoria for levada a sério, há duas perguntas que ficam sem resposta: o que andam os alunos a fazer na universidade? E para que servem os professores universitários?

Sem comentários: