O texto de ontem motivou vários comentários (agradeço a todos os comentadores o contributo para o debate). Achei importante acrescentar mais alguns aspectos, para clarificar os meus pontos de vista.
A começar pelo excesso do último parágrafo, quando sugeri a tentação de me solidarizar com o dirigente da Frente Nacional que foi parar aos calabouços. Foi uma figura de estilo, obviamente. Se houve algum ímpeto de solidariedade, nunca se poderia estribar em afinidades ideológicas com a personagem. Apenas pelo facto da polícia, com uma celeridade inusitada, ter metido pernas ao caminho e enjaulado o filisteu. Como seria de esperar, o homem protestou. Dramatizou o episódio: escondido no carro celular que o levou ao juiz, pediu à audiência que lhe reconhecesse o estatuto de perseguido político. Até invocou algo que desdenha: a revolução que instalou a democracia. Por vezes, há manobras que têm o travo amargo da ironia do destino.
A propósito da rapidez da reacção da polícia, houve um comentário esclarecedor: “anacf” interrogava-se se a rapidez seria a mesma caso passasse uma reportagem com pormenores do tráfico de droga num qualquer bairro social problemático de Lisboa ou Porto. Ela sabe, como todos sabemos, a resposta: não, a lentidão, ou até a omissão, viriam ao de cima. O que deixa suspeitas pouco abonatórias para o funcionamento da justiça e da polícia. Sobretudo num regime que se ufana dos seus dotes democráticos. É aqui que está o busílis da questão. Como pode uma democracia gabar-se de o ser se nega um dos seus valores axiais?
Podem-me dizer que em matéria de valores há limites que se impõem quando alguém tenta asfixiar um valor matricial. Se a democracia é respeito pelas ideias diferentes das nossas, se é convivência em pluralismo, se tem como trave mestra o valor da tolerância, não pode pactuar com movimentos que têm como objectivo o seu aniquilamento. Mais ainda quando esses movimentos se distinguem pelo uso da violência, e fazem garbo disso.
Concedo que em Portugal o contexto histórico é hostil aos movimentos de extrema-direita. Somos uma democracia adolescente. O “fantasma” do “fascismo” ainda está bem vivo, sobretudo enquanto tivermos veteranos actores do meio político que lembram a toda a hora as perseguições de que foram vítimas no tempo da ditadura. Tenho para mim que a constante invocação do tenebroso “fascismo”, como meio de mobilização das massas para as virtudes da democracia, é um convite a sermos democratas pela negativa. Seremos democratas apenas porque o seu contrário – a ditadura de que nos vimos livres – era tão hedionda. Eu prefiro ver na democracia algumas virtudes pelo que ela oferece, não por ser um meio de combater ditaduras.
Um anónimo apresentou, no comentário, dois artigos da Constituição que são lapidares quanto à proibição da ideologia “fascista”. Só que a Constituição não é uma vaca sagrada, em relação à qual nos devemos curvar humildemente. Sobretudo esta Constituição anacrónica, verdadeira peça de arqueologia política. Continuo a acreditar que uma democracia que negue um dos seus valores matriciais é uma democracia de fachada, uma democracia de uma perna só. E, como bem sintetizava Rui Miguel Ribeiro no seu comentário, condescender em relação aos partidos comunistas, trotskistas e afins é um erro, uma incompreensível desigualdade de tratamento. Porque eles também não cultivam a democracia. Poderão não usar a violência como arma de arremesso – e nisso se distinguem da extrema-direita, cativando maior simpatia no eleitorado. Apesar da diferença dos meios, o fim é o mesmo: ditadura.
No rescaldo deste triste episódio, poucas pessoas dão conta que, involuntariamente, embarcaram na estratégia dos extremistas. Estão-lhes a dar uma visibilidade ímpar, atendendo à sua escassa implantação. Em vez de remeterem estes grupelhos para a marginalidade, temo que estejam a atrair pessoas às franjas da extrema-direita. O que se lamenta é o autismo de quem procura a toda a hora fantasmas no armário: é a ansiedade de denunciar o “fascismo” que explica a censura à extrema-direita. O exemplo francês – e podíamos recordar ainda a Áustria, a Holanda, a Bélgica, a Alemanha, a Itália – parece ter caído em saco roto. A memória é curta. Na França, a estratégia de isolamento da Front National do execrável Le Pen teve efeitos contrários aos pretendidos. Hoje, a extrema-direita em França tem um poder que há uns anos ninguém conseguia vaticinar. É isso que os cultores da democracia querem que aconteça em Portugal?
2 comentários:
Vários pontos:
1 - A Constituição não é uma vaca sagrada, é verdade, mas no presente é a que está em vigor e como tal tem que ser respeitada. Poderemos dissertar sobre eventuais alterações certamente, mas o que temos agora é bem explícito.
2 - Não considero que seja intelectualmente honesto meter no mesmo saco estes partidos/movimentos de extrema direira e os partidos de "extrema" esquerda representados no parlamento (leia-se PCP e BE). Estes estão plenamente integrados no sistema e certamente ninguém acredita que os mesmos pretendam hoje em dia a ditadura como regime. Os anos 70 e 80 já lá vão...
3 - Não estou no ponto 2 a afirmar-me partidário desta esquerda, pelo contrário, sou defensor do capitalismo, não o modelo "selvagem" dos EUA mas acho que temos excelentes exemplos de equilíbrio nos países nórdicos.
4 - Concordo no entanto que tanta polémica em volta desta gentalha acaba por lhes dar uma visibilidade que não teriam se fossem ignorados. Mas tb que fazer, fingir que n existem?
Ao afirmar que "estes (PCP e BE) estão plenamente integrados no sistema e certamente ninguém acredita que os mesmos pretendam hoje em dia a ditadura como regime. Os anos 70 e 80 já lá vão...", ou é desatenção, ou desconhecimento da realidade destes partidos, ou ingenuidade. Basta consultar os programas políticos dos partidos em questão.
PVM
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