1.6.06

A têmpera de um povo – sequela


É ao fim-de-semana que Casimiro Silva se realiza. Não tem que aturar o empreiteiro, nem os colegas ucranianos que são uma nódoa na corporação dos trolhas. Eles trabalham a sério, não bebem oito cervejas por dia (no mínimo uma dúzia quando a canícula tem os seus dias), não ouvem raspanetes dos capatazes. Como se tudo isto não bastasse, as madames olham-nos com comiseração, enquanto Casimiro e os comparsas lusitanos são votados ao desprezo. São umas ingratas. Elas não sabem reconhecer um piropo. Como podem as senhoras fazer um esgar de nojo com as tiradas tão poéticas que ele os seus companheiros conseguem inventar? Isto causa-lhe confusão: os elogios não chamam o agradecimento?

O fim-de-semana chega para limpar as agruras de uma profissão pesada. Não há tempo para pensar nos riscos (uma viga que se desprende do guindaste, o pé que escorrega causando queda de vários andares, o pó do cimento que intoxica os pulmões). É tempo de descanso. Se Casimiro fosse governante – o que nem é improvável, num introspectivo devaneio, sendo fiel votante do PS – só ficava satisfeito quando decretasse mais um dia de descanso. À escolha do cidadão: segunda-feira ou sexta-feira.

Ao fim-de-semana Casimiro dorme. Doze horas por dia. As crianças têm instruções para não perturbarem o silêncio. Ai delas que algazarrem casa fora num sábado de manhã. Está o fim-de-semana estragado para Casimiro e, por arrasto, para o resto da família. Não é só pelo descanso que tantas horas de sono são necessárias. Se à semana o álcool jorra com generosidade pelas veias carcomidas pelo colesterol, as noites de sexta-feira e de sábado são de desgraça. Bebedeiras de caixão à cova, para curar na manhã seguinte. Uns frugais copos de vinho pelo almoço são a cura milagrosa. Água, “só para lavar os pés”, assevera com garbo masculino o chefe de família, consumido por uma cefaleia chamada ressaca.

Como benfiquista dos sete costados, Casimiro leva a peito a divisa clubista: não há bom pai de família que não seja benfiquista. Para cumprir o preceito, Casimiro convence-se que o fim-de-semana é de dedicação aos filhos e à consorte. Pela semana, a lambada escorre com fluência. Os chistes aos cozinhados da Segismunda têm frequência quase diária. E se acaso ela vem do médico – dada a maleitas, como a sogra que tarda em partir para o outro mundo – com ideias de uma alimentação saudável (grelhados, cozidos, carne branca e muito peixe), desengana-a. Se houver mudança de ementa, Casimiro já ameaçou: só aparece em casa para se meter directamente na cama, já jantado e, decerto, ainda mais bem bebido.

Fim-de-semana é tempo de família. De um piquenique na mata, ou na praia fluvial quando o calor estival aperta e os corpos pedem espalhafatosos saltos mortais nas águas do rio. Casimiro comanda as tropas. Encavalita-se nos xanatos que deixam à mostra unhas dos pés onde a higiene escasseia. Veste os mesmos calções de há dez anos, ainda que os dez anos tenham testemunhado um alargamento das formas. A camisola de alças, justa ao corpo, põe à mostra a protuberância adiposa que empurra a barriga para a frente. Põe os óculos de sol comprados aos ciganos por cinco euros – não se sabe se anda pela praia moçoila que se deixe seduzir pelos seus predicados – e fornece o rádio fanhoso com cassetes de boa música. Pimba, certamente.

A estância dominical na praia fluvial é algazarra apenas entremeada pela soneca pós-refeição. Aí pelas duas e meia da tarde, todos os Casimiros decretam silêncio sepulcral. Até os pássaros deixam de chilrear. A barriga cheia e o sangue preenchido pelo álcool exigem hora e meia de sono. As crianças vão com as mães mata dentro, na profícua actividade da descoberta da fauna e da flora. Casimiro não é dado aos atractivos da cultura. É pelo futebol que morre de amores. Só não se casou com o Benfica porque o Benfica não usa saias e não lhe providencia os prazeres carnais que Segismunda aprendeu com ele.

Pelo Benfica é capaz de cometer loucuras. Até financeiras. Foi dos que comprou o kit de sócio, deixando nesse mês a Sónia Carina (não esquecer de ler “Cárina”) sem a ida programada ao dentista. Assim como assim – pensa com os seus botões – a ele já faltam sete dentes e continua a cometer proezas gastronómicas dignas de um bom garfo. O estado de espírito – o seu e o do agregado familiar – varia no mesmo sentido da performance desportiva do Benfica. As vitórias trazem a bonomia. Os petizes serão benfiquistas por empatia: hão-de perceber que o clima se turva quando os de camisola vermelha perdem um jogo. Quando o árbitro foi gatuno, a culpa é da Segismunda, que serve de saco de pancada para Casimiro descarregar a ira.
No caminho para casa estaciona na churrascaria plantada na berma da estrada nacional. Vai dar descanso à Segismunda: presenteia-a com o jantar comprado. Uns frangos assados com o travo adocicado do monóxido de carbono expelido pelos tubos de escape dos automóveis, acompanhados de batatas fritas chumbadas em óleo que não é mudado há largos dias. Repasto moderado para preparar mais uma semana que vai começar. Já o Cláudio Rafael segue as pisadas do pai: apenas com três anos lambuza-se com as batatas fritas que lhe engorduram os dedos que depois passa pelo cabelo que há-de repousar assim mesmo, engordurado, no travesseiro.

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