Às três da tarde, quando os descendentes dos “magriços” de 1966 pisarem a relva para a contenda com os mexicanos, o parlamento vai parar. Aliás, deve um país parar à frente da televisão. Não vale a pena repetir o que já foi escrito ontem, acerca da entrega desalmada de um povo às vicissitudes do campeonato do mundo de futebol. Que não se entenda que hoje entro em contradição com o texto de ontem: por hoje, apenas denunciar o coro de aplausos pela integridade do parlamento ao anunciar que vai suspender os trabalhos agendados para suas excelências, os deputados da nação, poderem ver pela televisão como nos representam os que envergam a camisola de “todos nós”.
Já li e ouvi encómios diversos à decisão do presidente da assembleia da república. Que é um acto de frontalidade. Em vez dos deputados fugirem, à socapa, para sintonizarem a transmissão do jogo, fugindo às tarefas já calendarizadas, fica tudo às claras. Entre as três e as cinco da tarde de quarta-feira, 21 de Junho de 2006, o parlamento entra em parênteses. Como se fosse acometido por uma insólita paralisação dos seus membros, anestesiados diante do ecrã, alguns com a iconografia da nacional pertença a resguardar o pescoço, aplaudindo os golos e amargurando as jogadas de ataque do adversário.
Os que acham bem que o parlamento tenha decidido ficar em banho-maria a meio da tarde sublinham a mudança de atitude que enobrece os deputados. Há meses rebentou o escândalo da falta de quórum para uma votação qualquer, descobrindo-se que alguns parlamentares assinavam o ponto no início da sessão e punham-se ao fresco logo a seguir, desertificando o hemiciclo. A vergonha caiu sobre a assembleia da república. Se não era muita a credibilidade da instituição aos olhos dos representados, com aquele episódio diminuiu mais ainda. Agora – dizem com contentamento os que elogiam a decisão do presidente do parlamento – há transparência: nada a esconder, sem subterfúgios nem pretextos mil para justificar ausências, apenas a possibilidade de todos os deputados poderem folgar por duas horas para vibrarem com a “selecção de todos nós”.
Não sei se hei-de dizer que o parlamento, como instituição, goza de imaculada imagem que lhe permite dar o exemplo aos demais. Por um momento, ponho de lado o cepticismo militante acerca da utilidade do parlamento. Vou condescender na respeitabilidade que a instituição merece – pelo menos é o que vem nos livros. Assim como assim, é um órgão de soberania. Por um momento, vou fazer de conta que o paraíso existe, por conveniência dos argumentos que se seguem. Como órgão de soberania, o parlamento dá o exemplo. A mensagem enviada pela assembleia da república é lapidar: o resto do tecido produtivo – desde a administração pública às empresas privadas, nos mais variados sectores – está convidado a fazer a mesma gazeta. A menos que se confirme que os privilégios dos deputados fazem deles criaturas de primeira, num pedestal inacessível ao comum dos mortais.
É esta a imagem que retenho: o parlamento vai folgar, todo o país tem legitimidade para folgar. Estou a imaginar a luta titânica nas empresas, com trabalhadores compulsivos consumidores da “selecção de todos nós” a reivindicarem das chefias uma paragem de duas horas. (Claro que na administração pública não haverá problemas: basta um sussurro da malta, amparada pelos activos sindicatos, para perceber que é inútil ser utente da administração pública no dia de hoje, entre as três e as cinco horas da tarde.) Portanto, Portugal tem que parar para ver o jogo da selecção. Os polícias vão desertar das patrulhas, as fábricas vão deixar de laborar, os aviões não vão descolar nem aterrar, as cirurgias urgentes terão que esperar mais um par de horas, os transportes públicos não vão sair à rua. Se eu tivesse que dar um exame na universidade a essa hora, podia-o adiar? Tudo vai parar, com a chancela do parlamento.
Há quem suponha que a transparência dos deputados lhes fica bem. Em vez de ludibriarem a verdade com imaginativos estratagemas, dão o peito à verdade e confessam que vão parar para ver o jogo da bola. Há quem aplauda a franqueza. A franqueza é sempre merecedora de aplausos. Não tenho a certeza que a falta de profissionalismo o seja. E temo que aqueles que se deixam enlevar pelo esboço de transparência dos deputados estejam a confundir responsabilidade com profissionalismo, quando a falta de profissionalismo mostra irresponsabilidade.
1 comentário:
Injusto! Acho o seu post injusto. A maioria das pessoas gosta de futebol, particularmente de competições de grande dimensão como os Campeonatos do Mundo e da Europa, interesse acrescido quando Portugal está presente. Goste-se ou não se goste, esta é a realidade e a maior parte das pessoas faz a "ginástica possível para ver os jogos de Portugal. Para sorte dos Portugueses, o calendário só reservou o Portugal-México para dia ou hora de trabalho. Ora, o que a Assembleia da República fez não foi meter folga: limitou-se a transferir o penário da tarde para a manhã de quart-feira. Fez algum mal? Prejudicou alguém? Não terá sido o tipo de exercício que a maioria dos portugueses que o conseguiu fez nesse dia? Em relação aos Deputados, como em ralação a todas as actividades que o permitam, mais importante que o dia ou a hora em que é feito, é o trabalho ser executado atempadamente. Que importa que eu corrija exames até às 4.00 da manhã e me levante mais tarde no dia seguinte, desde que as notas sejam atempadamente publicadas? Eu, se fosse Deputado, votaria a favor desta troca.
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