Acto primeiro: sábado, marcha do mundo rural sobre a capital. A ruralidade desceu à grande urbe. Para a imprensa, raramente penhor do rigor da notícia, o “mundo rural” invadiu Lisboa – quando, afinal, tomou conta de uma das principais avenidas da cidade. Continuando na senda da mistificação teatralizada, a comunicação social afivelou-se no acto pedagógico: quis lembrar – noutros casos, ensinar – aos lisboetas que a água não nasce engarrafada, que o leite vem das vaquinhas antes de ser embalado no Tetrapack, que os frangos de churrasco são aves com penas e cabeça, não os bichos degolados e depenados à venda nas grandes superfícies comerciais.
Na amostra da ruralidade, por entre campinos, pastores, produtores de leite, vitivinicultores, minhotos e outros espécimes do mundo rural, o folclore, o inevitável folclore. E o vinho carrascão a jorrar, abundante, dos garrafões de cinco litros, acompanhado do caldo verde, das moelas, das sandes de torresmos, dos nacos de presunto abocanhados com a fome de quem trabalha a terra de sol a sol, na exaustão das energias que desbrava o terreno para uma fome de leão.
Acto segundo: a “selecção de todos nós” (como abomino o rótulo…) chegou à Alemanha, onde vai disputar o campeonato do mundo. Deposita as esperanças da mais profunda portugalidade. São os embaixadores da grandeza pátria. Por estes dias, não há-de haver coisa mais importante – nem política, nem economia, nem o deplorável paternalismo que teimamos em exercer em Timor-Leste, nada. Como os penhores da nobreza lusitana chegaram a terra de emigrantes, reunidos os ingredientes para um cocktail de transbordante entusiasmo. A terra onde os futebolistas nacionais vão estagiar é uma ilha de Portugal na distante Alemanha. Tanto que até uma jovem polícia pintou uma pequena bandeira verde e rubra na bochecha esquerda (desconhece-se se o superior hierárquico a puniu pela desfaçatez).
O regozijo dos emigrantes estava à solta. Um domingo diferente. Não é todos os dias que eles dão corpo à lusitanidade além fronteiras. Em rigor, é todos os dias que eles prolongam o Portugal pátrio além fronteiras. Os saudosos da terra-mãe deixada para trás defendem-na com mais ardor que os nativos que por aqui ficaram. Mas ontem era dia especial: o contacto visual com os heróis da bola, os instantes de glória por que nunca mais hão-de passar, com as suas caras na televisão. Para alguns, um microfone para dizerem de sua justiça. Um deles sentenciou, de lágrima furtiva ao canto do olho: “Portugal somos nós”. E depois a câmara rodou para a esquerda e dois acordeões desataram com os sons primários do folclore luso, para gáudio da turba que começou a pular, braços no ar, os polegares e os dedos médios a estalarem ao ritmo da melodia, na coreografia feita de semi-círculos voltejados.
“Portugal somos nós”. Se esta é a idiossincrasia nacional, não é aqui que pertenço. Porventura será mais verdadeiro falar de pertenças múltiplas. Ou redutor resumir a portugalidade ao folclore estridente que vem do Minho, aos piqueniques na mata, aos garrafões de vinho de cinco litros, à barbárie da tourada, ao Benfica com mais adeptos que cidadãos existentes, ao sarrabulho e outras iguarias que metem sangue de animais degolados com uma frieza bestial, o que explica a apetência lusa para sair do carro e ver se há sangue derramado num acidente de automóvel, ao foguetório ensurdecedor em dia de romaria, à música pimba que polui a audição e corrói o cérebro.
Já o terei escrito várias vezes: o país é a minha família e os meus amigos. Esses não têm bandeira. Nem hino. Nem precisam. É neles que ancoro os meus sinais de pertença. Foi com eles que cresci, que me tornei homem, parte do que sou é muito do seu património genético. Não me repugna que sejamos olhados com zombaria pelos outros povos, quando lá por fora os embaixadores da portugalidade – os emigrantes – mostram o que de pior por cá existe. Os outros têm os seus pecadilhos próprios e com eles se devem entretecer. E nem me importa a opinião que o outro tem de mim, pelo que o juízo de valor que fazem de todos nós me é indiferente.
Todavia maçam-me os estereótipos cimentados da lusitanidade. Quando estou no estrangeiro e desvendo a nacionalidade que carrego comigo, começo por sentir que ainda somos vistos como uma curiosidade antropológica, de algures a meio caminho entre a Europa civilizada e o norte de África. Uma espécie de aves raras da grande casa comum europeia. Incomoda a imagem que me colam como exemplar da lusitana gesta: são as sardinhas, o FC Porto quando vence lá fora, o vinho verde, o fado. Já nem me apoquento em fazer a dissociação dos rótulos. Para desenraizado, já bastam os meus sinais de não pertença. O desenraizamento intensifica-se quando levo com os rótulos que os outros conhecem de nós. E quando entram pelos olhos os sinais que cultivam a “forma de ser português”, tal e qual vem nos manuais e nos roteiros turísticos.
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