20.6.06

Os intelectuais não gostam de futebol?

Na enxurrada de futebol desde que começou o campeonato do mundo (três jogos por dia!), é o futebol que açambarca as atenções. Dos fanáticos, dos estudiosos do fenómeno, dos que se inebriam com a grandeza da nacionalidade em disputa com as outras nacionalidades, das senhoras que não ligam patavina ao jogo a não ser quando há estes torneios inter nações. E até os que desdenham do futebol acabam por cair na ratoeira: falam dele, nestas ocasiões em que todos os olhos estão focados na bola pontapeada dentro do relvado.

Até os intelectuais, que não perdem a oportunidade para tecer comentários jocosos à futebolite aguda que invadiu os espíritos, não conseguem escapar ao futebol. Ainda que seja pela negativa. Ainda que seja para exibirem o seu descontentamento pela alienação que se apodera da populaça. Não só da populaça: também de outros intelectuais (ou aparentados) possuídos pela pecaminosa tentação de estacionarem diante de uma televisão durante os noventa minutos de um jogo de futebol.

Os intelectuais que deixam escapar os comentários verrinosos sobre o estado de alienação geral exibem uma soberba que me fez, por um momento, estar de braço dado com a gentalha. Pacheco Pereira é um expoente do sarcasmo elitista que vem desfiando um choradinho pelo protagonismo reservado ao futebol. Teve o condão de me fazer ver uma revoada de jogos como há largos anos não acontecia. Dei comigo, no fim-de-semana passado, a ser espectador de três jogos de futebol. Duzentos e setenta minutos à frente da televisão, a ver o fervor nacionalista aos pontapés, a ver como os rapazes procuravam derrotar os adversários na triunfante marcha da respectiva nacionalidade.

Quando intelectuais como Pacheco Pereira gritam a incomodidade pelas atenções generosas de que o futebol é merecedor, ao menos podiam disfarçar a azia. Podemos não gostar de certa coisa: temos a liberdade de o manifestar, mas devemos ter o pudor de respeitar opiniões contrárias. Independentemente delas serem ou não maioritárias. Pacheco Pereira embrulha a sua antipatia pelo futebol com a chacota pelo povo que, coitado, se entrega de corpo e alma a semelhante manifestação que, no fundo, é o espelho da pobreza de espírito da ralé tão entusiasmada com o desporto dos pontapés numa bola. Altivo, sentencia-nos ao lugar menor de quem tem vistas curtas por gostar de futebol. É nestas alturas – quando vejo a pesporrência, a superioridade intelectual dos expoentes máximos da intelectualidade para consumo doméstico – que me acomete um súbito desejo de andar de braço dado com a ralé. Essa mesma ralé que, como é sabido, é tão vergastada ocasionalmente nos meus textos.

Talvez seja do mau feitio, que me inculcou a mania do espírito de contradição: suspeito que foi o desdém altivo de Pacheco Pereira que me colocou à frente da televisão, a assistir a vários jogos do campeonato. Uma pausa para pensar. Percebo como é fácil cair em contradição. Eu, que tanto deprecio o povo, agora embarcado na mesma nau, mercê da soberba intelectual de Pacheco Pereira. Depois de tanto vituperar o povo, depois de o criticar pela música pimba, pelo folclore que nos identifica no estrangeiro, pela mania dos piqueniques, do garrafão de cinco litros e das iguarias que se servem do sangue de animais mortos sem piedade, depois de tantas vezes me colocar nos antípodas do lugar habitado pelo povo, percebo como isso é perigoso.
Foi Pacheco Pereira, com a crítica corrosiva à populaça entusiasmada com o futebol, com a superioridade intelectual de quem se arvora à sebastiânica condição – pois se todos fôssemos como ele, este seria um país endireitado –, foi ele que me desnudou os perigos desta altivez intelectual. E aí dei conta que o desdém pelos sinais de fogo das manifestações tão do agrado do povo pode produzir ensaios de fino recorte literário, mas é uma armadilha para quem os produz. A armadilha de quem se coloca no pedestal da intelectualidade, como se pairasse sobre o povaréu rasteiro, numa espécie de auto-deificação muito perigosa. Foi Pacheco Pereira que me levou a perceber como sou incoerente.

1 comentário:

Roger Soares disse...

Ótimo texto!Sobre o comentário anterior, o futebol no Brasil não é só um entretenimento. Não é o 'circo' de um povo sem pão. É povo que se vê representado nos pés dos jogadores. É parte de nossa cultura. Pedro, a sua soberba me dá azia. O engraçado é que esse texto tem mais de 6 anos e se encaixa perfeitamente no contexto atual.