26.6.06

Porque são ilegais os estupefacientes?


Algures num passado muito remoto, antepassados descobriram que a uva era um fruto que dava um saboroso néctar. Descobriram mais: a uva, depois de esmagada, fermentava. E que, no final da fermentação, o sumo de uva toldava os espíritos: subitamente mais alegres, sentidos ofuscados na penumbra de uma misteriosa substância escondida na uva. Imagino-os, aos antepassados, estupefactos pelos efeitos que os transtornavam. Adivinho-os a endossarem a explicação para um qualquer veneno com efeitos temporários.

O resto da história é conhecido: cientistas, séculos mais tarde, derrubaram a magia da uva feita em vinho, culpando o álcool pelo efeito inebriante; a humanidade habituou-se ao vinho – e as outras bebidas com variável teor alcoólico. Hoje é vê-la, em doses variáveis, aos trambolhões depois de uma noite de folia, a cair em coma alcoólico depois de uma noite desregrada de copos, a padecer de cirroses agudas pelos anos em que o fígado foi sendo curtido pelo reiterado estado de etilização. Criaram-se associações de alcoólicos anónimos, pois havia vidas pessoais e familiares destruídas pela dependência do álcool. Mas as bebidas alcoólicas continuam a conviver com a sociedade. Há excepções: nos países do fundamentalismo islâmico o álcool foi banido.

As bebidas alcoólicas são toleradas pela sociedade. Há até a regra da necessária ingestão de álcool para acompanhar um opíparo repasto. Não há bom garfo que não faça gala de degustar uma garrafa de bom vinho. O “bom vinho” pode ter significados diferentes. O vinho de eleição, garrafas a preço exorbitante, só para carteiras mais abastadas. Ou o vinho carrascão, para o povaréu menos endinheirado, só para perfumar os sentidos com o odor etilizado após a refeição. Para depois camionistas irem para a estrada após meterem no bucho uma garrafa de três quartos de litro de tinto do Cartaxo, e ainda os ouvirmos com a prosápia grotesca: que conduzem melhor depois de enfrascarem os sentidos com o tinto de mesa com taninos de zurrapa.

Quando soa o alarme da sinistralidade rodoviária, o excesso de álcool anda de braço dado com o culpado do costume – o excesso de velocidade. O álcool a mais nas veias dos condutores tem ceifado a vida de muita gente. E, ainda assim, continua o desfile de um abundante mostruário de bebidas alcoólicas de variados tipos, nas estantes de supermercados. Para se ter uma ideia de como a sociedade é tolerante com o álcool – como se não bastasse a simples venda legal – há uma expressão sintomática: “bebidas espirituosas”. Infere-se: as bebidas que nos põem com boa disposição, libertam os espíritos reprimidos pela vegetativa vida que levamos, mostram o lado desinibido que a não etilização traz castrada.

Por esta altura hão-de pensar que estou a fazer campanha pela ilegalização do álcool. Errado. Pego no exemplo do álcool para me interrogar porque se convencionou que outras substâncias que produzem efeitos alucionogénicos são proibidas pelos bons costumes. Tal como o Homem nasceu para a etilização, mais tarde foi descobrindo plantas que podiam ser esmagadas e submetidas a uma transformação química para resultarem nos chamados “estupefacientes”. O azar das “drogas” é que chegaram à história da humanidade mais tarde que o álcool. Apetece especular: acaso o Homem tivesse descoberto as tais plantas e houvesse o engenho para as saber transformar nos estupefacientes hoje perseguidos pela lei, e porventura hoje seria proibidas as bebidas alcoólicas.

A própria designação “drogas” revela o rótulo negativo que foi pespegado a estas substâncias. Fala-se das “bebidas espirituosas” e logo o álcool merece a chancela contemporizadora da sociedade. Alude-se aos estupefacientes e vem a carga negativa das “drogas”. Ambos provocam dependência. Ambos alteram o discernimento de quem os ingere. Ambos destroem vidas, quando o seu consumo passa para além do razoável. E alguém pode erguer o dedo de reprovação se uma pessoa decide mergulhar no consumo excessivo – de álcool ou de estupefacientes? Não é uma decisão individual, puramente individual?

Às “drogas” acrescenta-se o labéu de outros males. De baixo para cima: os desgraçados que se entregam à toxicodependência, trastes humanos que entram numa espiral que, em muitos casos, termina com a despedida da vida; a criminalidade associada ao desnorte de quem cai na ressaca e necessita de recursos para mais uma dose; o tráfico que enriquece poucos com a desdita de muitos. Há quem suspeite que a ilegalidade do consumo destas substâncias tem contornos sombrios: é a ilegalidade que encarece exponencialmente o preço dos estupefacientes, dando o mote para uma extensa cadeia de intermediários que enriquecem com o tráfico de uma substância tornada ilegal.
Acaso não houvesse o estigma social que leva a chamar “drogas” a estas substâncias; acaso as suspeitas de quem se sacia no altar dos lucros do tráfico ilícito são poderosos tubarões que se acobertam na teimosia da lei que criminaliza a venda e compra destas substâncias; e aí os estupefacientes teriam o mesmo estatuto do álcool. Seriam mais baratos porque desaparecia a extensa cadeia de intermediários que se banqueteiam na conivente teimosia em manchar estas substâncias com a ilegalidade. Já não haveria a pequena criminalidade que enxameia as cidades, por causa de toxicodependentes em desespero. E, acima de tudo, franqueavam-se as portas ao império das decisões individuais, sem o estigma perverso das proibições em catadupa que aumentam o tom do Estado policial em que vivemos agrilhoados.

5 comentários:

Anónimo disse...

Vamos por essa onda de raciocínio. E que tal legalizar a pedofilia, ou os assaltos aos bancos... afinal, depende da decisão de cada um... ninguém é obrigado a matar, a roubar ou a violar, mas não devemos repreender quem o quer fazer... Não me venha com essas histórias...

Anónimo disse...

só agora vi este texto, e o anonimo que escreveu antes está a compara pedofilia? com drogas?? há sequer comparação possivl?? de um lado temos o consumo de drogas que como foi dito é da responsabilidade unicamente da pessoa que consome... e comparares á pedofilia que é 1 acto para com outros... matar? roubar? violar? tudo actos para com outros...

a droga é como o alcool, quem quer melhor, quem não quer paciencia... não percebo porque é que não evoluimos... a unica forma que combater o narcotrafico é legalizar as drogas leves, porque se não os podem vencer, ao menos que o estado tenha lucro com isso...

Anónimo disse...

diga não a apologia as drogas denuncie a policia

Anónimo disse...

"a droga é como o alcool, quem quer melhor, quem não quer paciencia..."

isso só pode ser uma brincadeira de mau gosto..

Anónimo disse...

Hehehe, forte debate. Gostei, caríssimos!