22.6.06

Nevoeiro


O nevoeiro, aura nebulosa que disfarça as coisas que desfilam perante o olhar. O nevoeiro espesso tinge as coisas com um manto secreto, ofusca-as entre as gotículas que vêm pousar nas flores e nas árvores, tingindo-as com uma fina película que testemunha a névoa que se densificou. É perto do rio que está nascente do nevoeiro. Ergue-se das profundezas do leito como um vulto que se agiganta, cobrindo as coisas com o seu manto espesso. Tão espesso que o leito do rio parece sumido entre a língua de nevoeiro vomitada pela fúria avassaladora comprimida nas profundezas das águas.

Dizem que o nevoeiro distorce as coisas. Perde-se a nitidez delas quando a névoa invade os poros da cidade. Que é difícil distinguir as formas e as cores. Dir-se-ia que o nevoeiro vem esconder as coisas como elas são. Um teatro do obscurantismo que semeia a incerteza, avaria a bússola dos sentidos, espalha a desorientação. Nos dias em que se torna denso, parece que asfixia os sentidos. Como se tentássemos emergir da espuma compacta para saber por onde ir, onde estar, como são as coisas.

E, porém, o nevoeiro encerra a contradição do que nele julgamos ver oculto. Tem o condão de instalar a dúvida, interrogar os sentidos se tudo o que julgamos ser na sua nitidez o é, ou se não é apenas uma capa que ilude os sentidos anestesiados pela nitidez da límpida luz. Quando chega o nevoeiro, os olhos discernem novas formas, nunca vistas. Ainda que o sejam pela penumbra do manto que se abateu na cidade e parece corroer os ossos. Levanta as questões nunca colocadas. É no estertor da desorientação que faz sentido questionar as certezas. Fazer delas apenas incógnitas, novas questões que convocam os sentidos na demanda de respostas. As mesmas, que sejam, mas ao menos uma digressão que desfaz a quietude das certezas instaladas.

Por vezes é a consistente penumbra que desvela novas respostas. Um mergulho nos confins do nevoeiro, navegando pelas ruelas esconsas, cercado pela escuridão, tacteando a lenta marcha que palmilha os centímetros em busca das armadilhas do caminho. Como se fosse um mergulho aos confins do ser, uma catarse que só o nevoeiro, com a sua paradoxal luz que tudo revela, permite redescobrir as coisas que pareciam certezas inabaláveis. Quando o nevoeiro zarpa, deixando-se derrotar pela persistente luz do sol, os sentidos provam a luz como se nunca tivesse sido vista. O nevoeiro, na sua pureza terapêutica, povoa um novo caminho.

Há um lugar comum: nem sempre o caminho mais perto entre dois pontos é uma linha recta. Os segredos revelados pelo nevoeiro são a prova. A revelação de que a simplicidade das coisas esconde uma capa mais densa, as várias camadas que se sedimentaram com a passagem do tempo, na formatação dos herméticos quadros mentais. Faz bem questionar onde estamos. É o nevoeiro das coisas que alimenta a purgação necessária. Só ir ao fundo do ser quando a desorientação tomou conta do espírito. Pode a névoa toldar o discernimento. Pode semear a confusão dos sentidos, tornando ininteligíveis até as coisas aparentemente mais simples. É aí que se percebe que as coisas, na sua simplicidade, são uma aparência falsificadora. Nas sucessivas camadas dos sedimentos acumulados, quebradas pela obstinada inquisição do devir, flutua a deriva dos sentidos. A complexidade até nas coisas que eram tão simples na sua aparência.
O torpor vem com a luz cristalina que encandeia os sentidos. Os anos cimentam o apaziguamento oportuno das coisas na sua aparente lhaneza. Dir-se-ia, o fruto da necessária pacificação interior. Ou, apenas, a maneira mais confortável de não serem questionadas as coisas pela aparente beleza irradiada pela luz celeste. O torpor perde-se no fio do horizonte quando o nevoeiro que dilui o horizonte. É aí, quando os sentidos se sentem perdidos, quando a bússola mostra as agulhas furiosamente avariadas, que o torpor vai ser derrotado. É aí, no incómodo nevoeiro que questiona o sentido das coisas, que a inércia dá lugar à febril, incessante procura por um sentido que seja – um sentido que escape dos herméticos quadros mentais que fazem tão bem ao apaziguamento da alma, mas que são uma falácia de si mesmos. Purificador, o nevoeiro.

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