É da história da humanidade: guerras santas, onde os homens que matam os seus semelhantes obtêm a absolvição divina por matarem em nome do deus adorado. Os guerreiros não questionam o sentido da guerra. São a carne para canhão necessária que alimenta a superioridade de um deus que fala através do clamor da colectividade. Assim foi com as cruzadas, assim se matou em nome da ortodoxia católica, e hoje continua-se a ferro e fogo porque há religiões que se chocam. Mais que um choque de civilizações – usando a expressão que Samuel Huntington tornou conhecida – acredito que se trata de um choque de religiões. Elas continuam a exibir todo o seu potencial. Continuam a perfumar a existência dos homens, a seduzi-los com as promessas de vida eterna na dimensão celestial, a amedrontar a vida terrena com o estigma do pecado.
O deus, qualquer deus, é bondoso. Os livros sagrados de qualquer credo não se desviam desta matriz. A bondade divina inspira os artesãos que deus colocou na terra. É através dos artesãos, humildes servos, que as pétalas aspergidas pelos bondosos dedos divinos cobrem as terras com o manto sagrado da protecção de deus. Mas os homens divergem nas crenças. Deus não terá aparecido com a mesma forma, a mesma cara, a proclamar as mesmas mensagens inspiradoras das crenças. A divergência religiosa nutre a violência. A humanidade vive de costas voltadas porque não se põe de acordo na metafísica. Quando a divergência faz rebentar a corda esticada ao limite, é em nome da superioridade de um deus que os homens sangram até à morte. A bondade divina alimenta-se no sangue dos inimigos, que não se revêem na superioridade do deus rival. São sacrificados no campo da batalha, para vergar a religião oposta, dobrá-la de joelhos no humilhante reconhecimento da superioridade trazida do campo de batalha.
O deus, todos os deuses, vomitam bondade através da indómita violência que os seus seguidores exercem sobre os teimosos que professam credos diferentes. E se as divindades cantam loas à tolerância entre diferentes, os seus sacerdotes inquinam a retórica com a saga bélica que patrocinam. Fossem os deuses entidades omnipresentes e omnipotentes e decerto a venenosa mensagem dos sacerdotes, convocando as hostes para a violência sobre os fiéis de outros credos (que levam logo com o rótulo de infiéis), não passava das intenções. Os deuses, com poderes sobre-humanos para comandar a vontade dos homens, encarregar-se-iam de ciciar palavras de paz, elas sim encerrando o manancial da bondade de que os deuses se dizem penhores.
Dizem-me que deus permite o livre arbítrio dos homens. Que eles, no exercício do livre arbítrio, se apartam da bondade inata de deus. Se há maldade no vocabulário da humanidade, deve-se apenas à acção dos homens. A explicação não me convence. É a prova da incapacidade dos deuses. E se os deuses são incapazes, ineptos para levar a vontade humana pelos caminhos da bondade, essas entidades serão coisas fantasiadas no imaginário colectivo; mas não serão deuses.