O Calimero era uma personagem de desenhos animados que me prendia a atenção em criança. Mal sabia então que, chegado à idade adulta, os Calimeros que fazem da comiseração a pedinchice alheia são das personagens da vida real que mais náuseas me provocam.
Porventura a inocência infantil esbate-se com os anos que passam, com o conhecimento da vida, da gente e das suas artimanhas que falsificam a espontânea forma de ser. Hoje, quando deparo com um Calimero profissional, revejo a personagem dos desenhos animados virada do avesso. O pintainho com lágrima ao canto do olho, sempre injustiçado por se sentir no papel de patinho feio, lamuriando-se “che porca miseria” (do original italiano), alvo de recriação na idade adulta. Personifica o coitadinho profissional que se sente cercado por tudo e por todos, que está de mal com o mundo porque é o mundo inteiro contra ele, Calimero saído das telas dos desenhos animados para a vida de carne e osso.
Estes Calimeros são uma recriação adaptada às vicissitudes dos tempos modernos e ao catálogo de malfeitorias que personagens ímpias não se coíbem de praticar. Sobretudo nestes Calimeros, eternas vítimas das injustiças dos humanos. São os perenes incompreendidos. Um escol que passa ao lado do estrelato. Eles sabem, no seu íntimo, que são a nata dos escolhidos, passando ao lado de uma carreira brilhante porque são perseguidos, vitimados pelo injusto não reconhecimento público das suas qualidades situadas muito acima da mediania.
Os Calimeros dos tempos modernos sabem-se gente infalível. Incapazes de deslizar para o erro. Supõem-se detentores de uma condição sobre-humana. O que adensa neles a sensação de injustiça, enquanto os que mandam não os escolherem para a casta reduzida dos que partilham o poder. Reagem com virulência. Por um lado, todos os outros são desvalorizados ao estatuto de incompetência. Só o Calimero é que teve a graça divina da competência intelectual. Daí à infalibilidade é um simples passo. Por outro lado, o Calimero é congenitamente desconfiado. Sente-se perseguido por todos, é a vítima das injustiças do mundo que nasceu para estar virado contra si; Calimero cultiva a desconfiança metódica. Está sempre de pé atrás em relação ao que os outros fazem. À partida, avalia-os com a sua superior bitola, num diagnóstico nada simpático: o que os outros fazem é revelador da incompetência genética que os domina. Ele é o único agraciado com o dom do saber fazer bem.
Este Calimero contemporâneo de carne e osso lamuria-se a toda a hora. Consegue arregimentar um séquito, não de seguidores obedientes, mas de incautos que caem na esparrela de corresponderem aos subtis pedidos de comiseração. Desfia o rosário das queixas, tenta mostrar como os outros são os incapazes para o que quer que seja, e reclama a piedade da audiência que o ouve com atenção. Ao Calimero e a esta audiência atenta, um mínimo denominador comum: fracos de espírito, acobardados num mundo imaginário preenchido por inenarráveis teorias da conspiração. O Calimero é o alvo preferencial destas teorias da conspiração. No fundo, é um egocêntrico incorrigível.
A transfiguração do Calimero que se operou no meu imaginário é de uma injustiça atroz. Não para as personagens que fazem gala em desfilar como sucedâneos carnais do patinho feio sempre de beicinho a pedir a lágrima fácil, que esses merecem o maior dos desdéns. Há injustiça em relação ao Calimero no seu retrato original, emoldurado nas histórias de desenhos animados. O patinho feio não tem culpa que veja nas carpideiras que estendem a mão à comiseração dos outros a personificação do Calimero, na sua desvirtuação. O mal não está no Calimero. Está nos Calimeros humanos, que enquanto assoam a baba e o ranho da sua inditosa passagem pelo mundo vão colhendo os louros semeados pela pena alheia.
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