Saudades, não as tenho do direito. O direito passou por mim de forma fugaz. Cinco anos a penar nos bancos da universidade, mais ano e meio de estágio de advocacia só para confirmar que não tinha vocação, nem estômago, para a função. Hoje, quando notícias da justiça entram pelos olhos, certifico-me que a opção foi a correcta.
O direito anda de mão dada com a justiça. Vem nos manuais, é a convicção dos leigos que se arvoram na condição de julgadores dos outros. Quem julga deve estar empossado nas faculdades de discernir o que é a justiça. É aqui que emergem os problemas. Primeiro, a justiça entra no domínio do subjectivo. Por mais que existam leis que tentam tornam a justiça uma coisa objectiva, a aplicação pelos julgadores faz entrar a justiça nos terrenos movediços da subjectividade. Não que tenha algo contra a subjectividade. Apenas anoto o conflito quando a subjectividade se encontra com a justiça.
Segundo, o direito é pródigo em detalhes de circunstância que beliscam o exercício da justiça. Os chamados “vícios processuais”. Por vezes, a justiça é negada porque uma fase de um complexo processo ou um requisito processual foram esquecidos. Em vez do conteúdo, a justiça parece interessar-se mais com o trajecto seguido, com os detalhes, com o acessório. Tantas vezes prescrevem delitos que a justiça se vira contra ela mesma: deixa impune o criminoso, parecendo condenar duplamente a vítima (como se não fosse bastante ter sido vítima, acresce o incómodo de saber que o criminoso sai airosamente sem dar com os costados na cadeia).
Outras vezes são os juízes que sentenciam soluções insólitas. Os episódios sucedem-se. Um juiz do supremo tribunal que acha natural que uma criança deficiente mental seja açoitada e remetida a um quarto escuro quando se porta mal, porque os castigos nunca fizeram mal aos petizes, servem para dobrar impertinências mordazes e para domesticar rebeldias que vão além do aconselhável. Ou um juiz que nega a nacionalidade a uma senhora porque ela não sabia todas as estrofes do hino nacional, como se este fosse o critério decisivo para a condição da portugalidade. Ou um juiz que absolve um violador, porque a senhora andava por aí de mini-saia, “mesmo a pedi-las” – percebendo-se que além de julgadores, os juízes são os vigilantes da consciência moral de todos nós. Ou uma justiça espúria que se apresta a passar uma esponja num mega processo de corrupção desportiva, branqueando aquilo que é voz corrente e que foi descoberto em escutas telefónicas, como se nada tivesse acontecido, como se tudo isso fosse do domínio da normalidade.
O pouco tempo que andei pelos meandros do direito e dos tribunais foi esclarecedor da podridão que por ali campeia. Juízes arrogantes que abusam do poder que lhes é confiado; juízes ignorantes que ajuízam ao arrepio do direito; advogados que não olham a meios para atingir os fins; advogados que se desfazem em cortesias e salamaleques, mas que pela calada são mestres na arte de romper compromissos, testemunhas de uma anti-ética que faz escola; jovens advogados que querem subir vertiginosamente, enganando clientes e sugando-lhes o tutano; cumplicidades entre juízes e advogados que fazem questionar a imparcialidade dos julgadores; processos que demoram anos até começar o julgamento e que depois se arrastam entre manobras dilatórias e recursos, demora que em si é a denegação da justiça.
E o direito em si, a forma como é pensado, ainda inspirado por concepções anacrónicas que vêm do tempo do salazarismo. Basta lembrar o Código Civil, datado de 1966, com algumas alterações ditadas pelo fervor revolucionário: em bloco, é um produto com a chancela conservadora dos esteios do Estado Novo. Este direito entra numa dança descompassada. Porque o par do Código Civil anacrónico pela direita é uma Constituição também anacrónica, mas pela retórica inconsequente de um “vanguardismo” esquerdista que tinha cabimento em aves de arribação como a Venezuela ou a Bolívia.
No dia em que celebro quinze anos de licenciatura em direito, o que verdadeiramente festejo é ter voltado as costas ao direito. Sem arrependimentos. Porque o direito e a justiça são paradoxais remos que se movem em direcções contrárias.
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