No Diário Económico de ontem, Domingos Amaral reflectia sobre a tendência de “suicização” (se me é permitido o neologismo) que se espalha entre nós. A propósito de uma festa em Cascais em que o colunista esteve presente, interrompida pela polícia às duas da manhã, depois da queixa de um vizinho atordoado com a música em gritaria.
O filho do anterior ministro dos negócios estrangeiros chegava à conclusão que nos estamos a civilizar, à maneira suíça. O que lhe causa perplexidade: porque os suíços são uns “chatos” cinzentões, levam uma vida sem sal, criaturas carrancudas incapazes de se divertirem. Teme Domingos Amaral que esta deriva para a civilidade nos descaracterize: que, por detrás de apelos à cidadania e à responsabilidade individual (que no seu somatório final perfaz a responsabilidade colectiva), esteja o esvaziamento da idiossincrasia de um povo. Aos suíços o que é dos suíços, mas na Suíça. O colunista louva os italianos, a antítese da organização milimétrica dos helvéticos. Proclama a saudade pelos traços que se vão esbatendo, pela desorganização organizada (tão própria dos povos latinos) que se está a perder.
Na Suiça tudo funciona bem – é a imagem passada para o exterior, sobretudo para quem nunca esteve naquele país. Um modelo de participação democrática, com os referendos populares que se multiplicam por tudo e mais alguma coisa. São as ruas limpas com zelo, com a colaboração de todos, o que se atesta pela educação que leva os suíços a não emporcalharem o chão com papéis e outros dejectos. Um país modelar pela convivência pacífica de comunidades com línguas, credos e culturas bem diferentes. Para os cultores do federalismo, a Suiça é o exemplo emblemático de como o federalismo cimenta povos tão diferentes num espaço onde a organização é singular.
Estamos, terra lusitana, nos antípodas da organização helvética. Porventura por não termos os traços de heterogeneidade dos suíços, por sermos um povo homogéneo, um Estado unitário. Os suíços, cientes das suas diferenças, esboçaram um modelo que ultrapassa divergências naturais. Conseguiram um produto exemplar em termos de eficácia. Pelo contrário, por cá sabemos que somos todos iguais (para além das insignificantes rivalidades regionais). Na certeza da nossa homogeneidade, o desleixo assomou. Somos desorganizados, ineficazes, preguiçosos. Sempre que possível, queremos estar longe da responsabilidade individual que nos toca à porta. Na escola somos educados a cultivar os feitos da gesta dos descobridores. Alimenta-se a grandeza sepultada no passado, o diagnóstico perfeito para adiar o futuro que chega sempre atrasado.
A interrogação surge, inevitável: o que prefiro, a ordem suíça ou o caos organizado lusitano? Não conheço a Suiça. Conheço países que têm afinidades com a Suiça, quanto à responsabilidade individual e à noção de civismo, à organização. Como conheço os seus contrários: Portugal, Espanha, Itália. Não tenho conhecimentos históricos para perceber como evoluíram as sociedades na Suiça, Alemanha, Áustria, Holanda. Gostava de perceber a antropologia destes povos. Para saber se a tendência para serem bem comportados (e sorumbáticos) foi um espartilho imposto de cima, pelas autoridades terrenas e pelas eclesiásticas. Se foi esse o caso, a organização modelar desses países e o exemplar civismo são um colete-de-forças que violou a forma espontânea de ser de quem aí nasceu e cresceu. Um produto contra-natura, a corrupção do livre arbítrio individual, na transformação de um colectivo numa massa obediente. No outro pólo, os povos latinos, pouco atreitos a regras que imponham organização. Mais saudavelmente caóticos, deixando vir à superfície uma natural rebeldia que sublima um individualismo difícil de rebater.
Guardo uma imagem sintomática deste contraste. Durante uma viagem por dez países europeus, viajei de Viena para Roma. Da ordem e do silêncio nas ruas e no metro vienenses. Para o bulício, o ruído ensurdecedor no metro, o trânsito caótico mas ao mesmo tempo organizado dos romanos. Vinha de quase duas semanas em países que são o contraste da latinidade (Inglaterra, Bélgica, Holanda e Alemanha). A primeira sensação que tive ao pisar Roma, durante os primeiros minutos no metro e nas ruas que me levaram ao hotel, foi uma sensação de identificação com o que estava a viver. Ao mesmo tempo, uma sensação de alívio por ter deixado para trás terras de organização sufocante. Como se estivesse de regresso a casa, apesar de estar tão longe dela.
Sem comentários:
Enviar um comentário