Algum dia, o anarquista teria que defender a legalidade instituída. Nem que o faça de forma oportunista, para desferir uma estocada numa das actividades que faz parte do património genético do “tradicional” – as touradas. Que importa: nisto das incoerências, é sempre mais cómodo denunciar as incoerências alheias e varrer para debaixo do tapete as nossas próprias…
No último fim-de-semana soube-se que o valente toureiro Pedrito de Portugal estava com um problema bicudo. Não que o bicudo problema estivesse numa haste pontiaguda de um bravio touro, entrada num sítio desconfortável mercê de uma distracção na lide. Nem isso era possível nesta terra de valentões de garganta. Os touros que entram na arena vêm sempre com os cornos protegidos por capas, para as meninas que os toureiam não sofrerem dolorosas cornadas. Já que tanto clamam pelo exemplo espanhol, onde os touros podem ser mortos para gáudio de uma arruaça bestificada e com a aprovação da lei, podiam os intrépidos admiradores da “nobre arte do toureio” (expressão deles) aceitar que os animais exibissem a cornadura tal e qual ela é, expressão da sua maneira de ser selvagem que toureiros e afins tratam de domar num combate desigual.
Não, o problema do abencerragem Pedrito de Portugal era do foro monetário: 250.000 euros de multa por, numa vila algures no Ribatejo, ter desferido estocada mortal num touro. O herói sabe que isso é ilegal e punido com multa. De nada lhe vale apelar à extensão da excepção de Barrancos. Apesar de ser do domínio do absurdo (para condizer com o impensável ministro que a caucionou, que agora anda a ganhar rios de dinheiro na petrolífera nacional), a excepção só vale para esse enclave da bestialidade humana encostado às terras espanholas. Quis matar o touro, para regalo dos espectadores entusiasmados com o acto abominável; resta-lhe suportar as consequências. Pagar a multa. É muito dinheiro? Era o risco que corria por ter feito vista grossa à lei.
Invejo Pedrito de Portugal. Não por andar a ceifar a vida de inocentes animais, numa luta desigual. Invejo-o porque à sua volta se ergueu uma onda de solidariedade. Primeiro na vila onde a lide mortal ocorreu, mas depressa se estendeu à escala nacional, com o beneplácito da RTP. Como o valente toureiro não terá liquidez financeira para pagar a multa, os amantes da tourada quotizaram-se. As operações de solidariedade arrepiam-me. Às vezes não consigo cativar uma lágrima furtiva. Coitado do homem, por ser o tributário de uma tradição popular, lá vem o nefando Estado impor-lhe uma multa exorbitante. Invejo-o: gostaria que a mesma solidariedade nacional se erguesse para me pagar os impostos de que não posso fugir, sobretudo daqueles que tenho que pagar por ter feito coisas que eram do domínio da tradição estabelecida.
O mais belo foi a passadeira estendida pela RTP para servir de “estação oficial” da onda de solidariedade. Tanto que, nas palavras comovidas do toureiro, não se cansou de agradecer o apoio da RTP. Temos uma estação de televisão estatal a caucionar uma ilegalidade. Dando cobertura a uma actuação que pôs em causa a autoridade do Estado. Para tiro no pé não se podia pensar em melhor cenário. Como sou tão sensível às campanhas de solidariedade, por fim pude dormir descansado: os meus impostos, que em parte sustentam esse buraco financeiro chamado RTP, foram usados para caucionar uma ilegalidade, para promover a arrecadação de fundos para o toureiro se eximir das consequências do seu acto ilegal.
Nisto de tiros no pé, somos pródigos. Temos que explicar à Comissão Europeia que ela não tem razão quando exige que a Caixa Geral de Depósitos (o banco de todos nós) seja obrigada a abdicar do privilégio de não pagar IRC. Que interessa se os outros bancos (os privados, que porventura nem deviam existir…) são obrigados a pagar IRC? Que importa se há uma desigualdade entre a CGD e os outros bancos? Façamos de conta que da retórica bem pensante dos políticos e governantes não faz parte o princípio da igualdade de oportunidades. Nada disso interessa. Há que ser pragmático. E interrogar: faz sentido que um banco público (ou uma empresa pública) pague impostos? Se o banco é o do Estado, e se está a pagar impostos que se destinam ao Estado, parece que estamos num círculo fechado, num círculo vicioso. Uma tautologia inconsequente.
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