Nem os dias enevoados, quando esperas pelos esplendorosos raios de sol, tiram a mordaça da luzente maneira de viver. Não hão-de ser sombrios os dias que nascem a toldar a luz que irradia de bem fundo de ti. Nem sequer a tacanhez de um mundo que é pequeno demais para a tua existência tão grande.
Não, os dias enevoados em ti têm o brilho dos longos dias de verão aclarados por uma luz branca. És como um livro aberto onde apetece repousar em todas as linhas, uma após outra, saciado na experiência irrecusável de ler todas as palavras singelas ali inscritas. Como se desse livro se soltassem palavras nunca outrora ditas. As palavras de que são feitos os silêncios que são o mar chão de uma cumplicidade. Ou então uma melodia gizada a violinos, acordes deslizando com a languidez dos afectos que vão e vêm com as palavras que vamos trocando.
Ao longe, os campos verdes onde hão-de brotar as flores silvestres. Elas serão o nutriente necessário para as poesias guardadas na memória dos dias que hão-de vir, a sementeira das palavras que volteiam, selvagens, com os golpes de vento que batem na cara. Desse vento que veio diluir a névoa que deixa gritar o desencanto, mas que depressa vem dobrada pelo encantamento da luz sombria que tomou conta do céu que demora em cima das cabeças.
Os campos verdes que se estendem na planície até se perderem no rio. Nas margens, as águas límpidas batem com as suas pálpebras que resgatam os olhos marejados de um rio que foge rumo à perdição da sua foz. É aí, nos campos extasiados com a relva frondosa aspergida pelos ares primaveris, no espelho de água debruado a prata pelos raios de sol que vivificam o leito do rio, é aí que a afeição nidifica. Aí, onde há lugar ao desassombro da frontalidade, onde a discordância tem o seu lugar, e por ela se engrandecem os laços nem que seja tanta a distância. Podem ser muitos os rios a atravessar, altas as montanhas a dobrar, espinhoso o caminho a percorrer, com penhascos inclinados e desfiladeiros assustadores. Pode a distância estar às léguas infinitas dos oceanos. Nada derruba laços feitos fortalezas, como se fossem ameias fortificadas de castelos enegrecidos pelo tempo impiedoso.
Pela noite, quando os corpos descansam do repasto avantajado, a conversa escorre com o odor da maresia que bate nos olhos. As fragrâncias frescas misturam-se com os vapores da bebida que aplanam as ideias. Sabemos que temos um refúgio para os segredos que nos assaltam. Confiamos as dúvidas que se desfazem com as palavras sábias que são escutadas. E se acaso há dias atormentados pelas represas da hesitação, uma palavra só basta para aclarar os caminhos a seguir.
Aprendi a amadurecer com as divergências saudáveis que ecoavam das nossas conversas. E se hoje a distância é obstáculo à presença mais assídua, reconforta-me saber que os laços são indeléveis, podem mais que todos os rios e serranias que estejam à distância que nos separam. Um paradoxo: laços que se sedimentam mesmo na aporia da distância, e outros que enfraquecem apesar da proximidade. O tempo ensina a cultivar a qualidade dos laços. E se a vida se transforma numa sucessão de dias tantas vezes estúpidos, com a absorção do tempo pelo trabalho que remete estes laços para um canto que parece esquecido, a veia estulta dos tempos modernos e da nossa maioridade (de que nos orgulhamos) revive o que de mais intenso há nos laços perenes edificados. Que são edificados a cada dia que passa, mesmo naqueles dias em que parece que se debilitam pelos longos dias em que não nos falamos, pelos longos dias em que não estamos juntos.
Nem os dias enevoados o são quando temos a força para ver além da neblina que emudece a luz. Gritamos mais alto que os dias enevoados que emudecem a luz. Conseguimos ser a luz maior que remete os dias enevoados para os arrumos da memória.
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