Carnes quase limpas de gordura. O perfil não é esquálido, mas está longe de empurrar o ar com a pança que rivaliza com grávidas de sete meses. E, no entanto, os olhos comem. E muito. Delicia-se com um manjar opíparo deitado à sua mesa. A gastronomia é arte que cultiva, em homenagem aos sabores, às cores e aos aromas que se misturam em poções mágicas inventadas pelos gourmets afamados.
Não se entusiasma com lautos manjares. Quando diz “manjares opíparos” é para marcar a diferença entre a refeição farta e a gastronomia que se distingue pela qualidade. Nem oito nem oitenta. Nem jantares que enfartam e semeiam a azia tardia, nem frugais refeições que enfeitam um canto do prato, com requintes visuais que emprestam à iguaria uma feição de obra de arte, para desgraça do estômago que fica a roncar. O equilíbrio, algures entre a cozinha abundante, típica, gordurosa, popular e a nouvelle cuisine imaginativa, fértil, feita para agradar à vista, não tanto para deleite do palato.
O gordo virtual faz a síntese entre as duas gastronomias. Usa os ingredientes que distinguiram a cozinha tradicional e junta um toque exótico, marcando a diferença. A experimentação é a pedra de toque. Por vezes com resultados desastrosos. (Uma versão de um pudim italiano feito com queijo ricota e emproado com frutos silvestres: uma decepção, com os comensais e terem a amabilidade de terminarem a sua dose sem quererem repetir – e quando a segunda dose é rejeitada, sinal que o produto final foi um fracasso.) Outras vezes com resultados surpreendentes. (Uns filetes de pescada regados com um molho que acamou alguns figos esmagados na manteiga dourada, refogando num copo de vinho verde branco.)
Quando se ensaia o acto da criação culinária, há um festim de ingredientes, ervas aromáticas, cores, aromas que enfeitam a cozinha. É um bailado criativo que ajuda a descomprimir, sobretudo quando os músculos andam tensos pelas desavenças com a vida quotidiana. Sabe bem mergulhar nos tachos, desarrumar os utensílios da cozinha. É um ponto de honra que pertence ao imaginário da criação gastronómica: aumentar a pilha de louça por lavar, uma cozinha caoticamente desarrumada. E deixar que o tempo flua como quer, enquanto os cheiros passeiam pela cozinha, subindo dos tachos ou do forno, na primeira aproximação ao que vai resultar do acto de criação culinária.
É durante o processo da confecção das iguarias que o gordo virtual se revela. Prova daqui e dali, apercebe-se das mutações gustativas que um prato sofre durante a sua elaboração. Quando chega a hora de amesendar, o apetite do maître é coisa de circunstância. Passa levemente pelo manjar, saciado que está na degustação repetida durante o processo. Que é essencial para afinar a iguaria de cada vez que a experimenta, na tentativa – tantas vezes adiada – de encontrar o ponto de equilíbrio, a perfeição do repasto. Empirismo puro. Não há ciência em funcionamento, até porque os conhecimentos da química são nulos. Apenas o senso comum em exercício, misturado com elevadas doses de experimentação que se alimenta nos vapores instantâneos que sobem à cabeça e para tomar decisões insólitas quando chega o momento de adicionar um ingrediente inesperado.
Convencido que na arte da culinária deve imperar o sentido do sabor, não se perde em rodriguinhos visuais. Pretexto para esconder a ausente apetência para embelezar visualmente os pratos, afirma que o produto final deve agradar ao palato e não tanto aos olhos dos comensais. Não que a apresentação seja descuidada. Mas sem os requintes visuais, como se fosse uma palete de cores que rivaliza com um quadro de pintor famoso, que estão presentes na cozinha sofisticada.
E se ao gordo visual fazem um bloqueio temporário no acesso à cozinha, sente-se como alguém a quem esteja a ser negado oxigénio. Há um risco adicional: se muito tempo passa afastado das lides de criação gastronómica, perde o jeito, esgota-se a inspiração, a argúcia para deitar a gastronomia nos braços da imaginação. Embrutece. O acto de comer passa a ser uma coisa mecânica. Aproxima-se do limite do anti-gastronómico: comer para viver, apenas. Quando o culto da gastronomia ensina que vivemos (também) para comer, fazendo da refeição um festim dos sentidos.
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