25.7.06

Paga o justo pelo pecador


Que me perdoem a insistência, mas hei-de continuar a destilar toda a ingenuidade que me corrompe enquanto vir a bestialidade humana a arrastar-se entre a destruição causada pelas guerras. Hei-de insistir em não perceber a autofagia da espécie humana.

Não quero ser uma pomba branca do pacifismo, porque essas – pelo menos as que vegetam para consumo doméstico – são pombas falsas disfarçadas de aguerridos falcões mobilizados por uma causa nítida: um anti-americanismo primário que entra no domínio do irracional. Reivindico algum conhecimento de causa, devido à pessoal antipatia pelos Estados Unidos (mas não pelo antagonismo primário). Do outro lado há alguns falcões da guerra, sempre prontos a condescender com a gritaria das armas, insensíveis às vidas humanas que se perdem. Eles também mergulhados em irracionalidade: justificam e legitimam guerras e respondem ao anti-americanismo primário com um alinhamento também ele primário com tudo o que é decidido pelos governos dos Estados Unidos.

Nesta inquietante deriva pelo irracional, ouvi um general de Israel confessar que os bombardeamentos têm causado vítimas entre a população civil. Tardou mas chegou, a confissão que mancha as mãos do exército israelita com sangue de inocentes (como acontece com os pérfidos terroristas do Hezbollah). O senhor general tentava justificar o carácter indiscriminado das bombas que vão ceifando a vida a quem é apanhado como vítima colateral de um conflito estúpido. O senhor general informava as hostes que os terroristas do Hezbollah se misturam com a população civil. É entre ela que escondem armamento. Chegou ao ponto de afirmar que os fundamentalistas se servem dos civis como escudos humanos.

(E os aliados dos judeus não questionam, nunca questionam, a retórica das autoridades israelitas. Mesmo que se saiba que numa guerra ambos os beligerantes só contam a verdade que é conveniente. Não me confundam como apoiante do Hezbollah, que não consigo estar ao lado de quem comete actos terroristas. Mas convinha não pecar pelo enviesamento da análise: como se a verdade repousasse sempre do lado judaico e nunca do lado dos fundamentalistas árabes, como se estes fossem compulsivos mentirosos.)

Na lógica febril do senhor general o que interessa é perseguir os terroristas, mesmo que pelo caminho civis inocentes sejam levados na enxurrada do fogo disparado pela artilharia. Que interessa se os civis são obrigados a conviver com os terroristas que se acobertam entre eles? É mais cómodo denunciar a covardia dos terroristas do Hezbollah. É um facto, esta covardia. Mas também é um facto que o exército de Israel cai na armadilha dos terroristas. E mancha a sua imagem a partir do momento em que destrói a eito culpados e inocentes. Será um pormenor para as autoridades de Israel: a sua prioridade é o bem-estar da respectiva população, também ela causticada pelo insidioso terrorismo dos kamikazes islâmicos a quem são prometidas setenta virgens depois da barbárie que leva uns quantos inocentes judeus do mundo dos vivos. Ao ser um pormenor sem importância, confirma-se que há vidas humanas que contam mais e outras que têm o valor de uma ninharia. É por isso que não acredito na existência de uma comunidade internacional, nem em proclamações solenes como a declaração universal dos direitos do Homem. Apenas retórica ineficaz.

Os pragmáticos deste mundo olham com naturalidade para o teatro de guerra. Com a mesma naturalidade recebem as afirmações do general israelita. Não importa que estejam a confundir a árvore com a floresta: como se todas as pessoas confrontadas com a inevitabilidade de serem misturadas com membros do Hezbollah sejam imediatamente apoiantes do Hezbollah. A estes digo: espero que nunca na vida tenham que passar pelo crivo do justo que paga pelo pecador. Talvez então percebem o drama que atinge aquela gente que, não bastasse ser obrigada a levar com a má companhia que a covardia do Hezbollah determina, arca com o pesado fardo de ver casas destruídas e vidas que se esfumam entre as cinzas de mais uma bomba despejada.
Revejo mentalmente as afirmações do senhor general israelita, decerto imerso no seu gabinete confortável enquanto manda a carne para canhão para a frente da batalha. Uma conclusão: os fins justificam os meios, por mais que a imbecilidade humana ande à solta. Não consigo, por mais que tente, deixar de alimentar um pessimismo antropológico.

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Bem, lá venho eu fazer o papel ingrato dos "especialistas de relações internacionais, que nunca se surpreendem e estão habituados às cruezas da guerra”.

Nunca houve guerra sem baixas civis. O notável é que hoje já se consiga guerrear limitando drasticamente as ditas baixas. Agora, são coisas diferentes ter os civis por alvo deliberado, outra coisa é atingi-los involutariamente; daqui nasce a expressão (que já sei que detestas) dos "danos colaterais".

A utilização de civis como escudos humanos (prática a que Saddam Husssein também recorria) é vil e cobarde, equivalente, para pior, à dos sequestradores. No entanto, por muito que isso custe, ceder a essa chantagem, significa premiar o vilão cobarde e convidar à repetição infindável da cena.

Quanto ao Maquiavelismo, ele está presente em várias áreas da existência humana e não só na guerra. É natural que, quando a sobrevivência está em causa, haja quem deixe cair o filtro dos meios. Eu acredito que, mesmo aí, deve haver limites, mas eu sou um simples indivíduo em 6 biliões...