14.7.06

Bondade ambiental

Podia dissertar sobre a abjecta revolução francesa, que hoje comemora o 217º aniversário. Teria que afinar o discurso pelo anti-jacobinismo primário típico de J. C. Espada, nas crónicas semanais do Expresso. Como me custa tecer fios paralelos com o Espadinha, tive que meter o almanaque no bolso e orientar a bússola para outras paragens.

Lembrei-me que hoje fui acometido pelo desejo de praticar um acto de generosidade ambiental. No parque da cidade, bem junto a um dos inúmeros caixotes de lixo espalhados pelos caminhos pedestres, jazia uma folha de jornal. Não sei se foi ali parar empurrada pelo vento, se foi criatura ignara que emporcalhou as imediações do caixote do lixo com a dita folha do jornal.

Podia deixá-la inerte, onde estava, para que os lixeiros que pegam ao trabalho horas mais tarde fizessem a sua função. Como nem vento estava, não havia o risco da folha do jornal bater asas em direcção ao arvoredo, perdendo-se de vista das brigadas que limpam o parque dos estouvados ambientais que o conspurcam. Deixasse funcionar o individualismo metódico que me conduz habitualmente e diria com os meus botões: não fui eu que sujei, porque hei-de ser eu a limpar? Num acesso incontrolável, apeteceu-me fazer as coisas ao contrário. Enquanto recuperava a respiração ofegante da corrida matinal, ia-me debatendo com a consciência – ou com a falta dela. Não demorei muito a fazer as coisas ao contrário: debrucei-me sobre a folha do jornal e amarfanhei-a para dentro do caixote do lixo.

Tenho que ser fiel à verdade: isto era apenas um teste pessoal. Não, não me alistei nas fileiras das carpideiras das desgraças ambientais. Não que seja insensível aos atentados irresponsáveis que o meio ambiente vai sofrendo. Ou que não cause espécie a estupidez humana que olha para o lado dos mínimos de civismo, teimando em deitar todo o tipo de lixo para o chão, como se os caixotes do lixo só existissem para os outros. Agride-me mais o moralismo daqueles que querem educar à viva força os desapiedados do ambiente, investindo-se do alto da sua superioridade intelectual e moral que os coloca num inacessível pedestal. É assim que se fazem os pequenos diabretes que em breve se transformam em tiranetes, se ninguém lhes puser travão. E assim se descobre o fio condutor com a efeméride que o almanaque celebra: também na revolução francesa os libertadores em breve se fizeram tiranetes.

Recuo no raciocínio: o exercício de generosidade ambiental era um teste pessoal. Para perceber até que ponto a bondade exteriorizada se projecta no outro, ou se é apenas um acto de indulgência pessoal. Vale para o ambiente, como para qualquer outro aspecto onde a bondade esteja em acção. Quando acabei de colocar a folha do jornal no caixote do lixo, não me senti o herói do ambientalismo. Ou, sequer, que estava a fazer “a minha obrigação”, como se houvesse um caderno de encargos dos “deveres sociais” que recaem sobre cada cidadão. Debrucei-me sobre a folha do jornal porque me custou vê-la a centímetros do caixote do lixo, a embaciar a beleza do parque da cidade. Agrediu-me a vista.

Aqui está o aspecto crucial: era uma agressão à vista; e como não caíram os parentes à lama e deitei a folha do jornal no recipiente do lixo, deixei de ter a agressão à vista. O ambiente não ganhou aos pontos. Não foi por ter retirado a folha do jornal da sua poluente condição que o meio ambiente ficou agradecido. Pequeno acto apenas com reflexos pessoais. Só para provar que a bondade começa por quem a faz. Ou: ao fazer a bondade, apazigua-se a consciência pessoal do bondoso. E só depois, nem que seja pelos efeitos colaterais do acto generoso, ela afirma a sua condição exterior, a sua alteridade.
Suspeitava que a espaços podia ser um altruísta a merecer o aplauso generalizado. Hoje desenganei-me de vez. Continuo um coração empedernido, incapaz de ver na bondade aquilo que nos ensinam que ela é – bondade, apenas. Como se bondade fosse sinónimo necessário de ajudar o outro. Eu que pensava que estava a ser amigo do ambiente ao colocar no lixo da folha do jornal, dei conta que, afinal, estava só a livrar-me de uma pedra no sapato. Ainda não foi desta que entrei na nobre galeria dos generosos.

1 comentário:

Anónimo disse...

É óbvio que com esse gesto não entraste para a galeria dos generosos... Simplesmente não gostas que o teu espaço esteje sujo, tal como deduso que prefiras ter a tua casa limpa a viver no meio lixo.
Talvez a tua sensibilidade ambiental e respeito por aqueles que fazem algo pelos outros (mesmo que pareça que "querem educar à viva força (...) investindo-se do alto da sua superioridade intelectual e moral que os coloca num inacessível pedestal") fosse diferente, se em vez de teres um bonito parque perto de casa para correr, vivesses junto a uma lixeira. Infelizmente, hoje em dia, é cada vez mais necessário precisarmos de generosidade para lhe darmos valor.
Só não te esqueças que dentro do ambiente também estás tu... na verdade não precisas de querer ajudar ninguém para seres ambientalmente bem educado... basta quereres ajudar-te a ti próprio. Os outros agradecem de qualquer forma... mesmo que isso não te diga nada!