6.7.06

A dádiva

Há em cada dia que nasce uma dádiva. Até os mais infelizes terão decerto uma razão, mais pequena que seja ela, para celebrar a dádiva com que foram agraciados. Um gesto, um afecto, ou apenas uma paisagem que faz sonhar, dúcteis palavras lidas num livro secreto. É quando andamos desavindos com o que somos que faz sentido interrogar tudo. Para perceber que a ambição é ultrajante do que fomos amealhando ao longo da existência. Mais importante que dar atenção às cruzadas falhadas é resguardar bem junto do peito as tantas coisas boas que foram acontecendo.

Gosto da palavra “dádiva”. Não no seu sentido divino, por desalinhamento ateísta. Gosto da palavra pelo que ela supõe de doação que anima o ser. Nem divina, nem esotérica. O sinédrio onde se juntam as peças que uma vida soube conquistar, com esforço ou apenas com a sorte da audácia. Na dádiva reflecte-se um sentido positivo do património da vida. É a imagem da eterna esperança agendada para os dias vindouros: como houve dádivas já arquivadas no tempo lá atrás, dádivas haverá que registar quando chegarem os dias do amanhã.

Algumas dádivas são fruto da perseverança de quem as saboreia. Um esforço bem sucedido. Por vezes, em vez do sabor adocicado contemplado numa dádiva, o seu contrário: sentir o travo amargo da decepção, quando a perseverança por fim esgotou o seu tempo e a oferenda foi um desalentador nada. Pode o travo amargo repetir-se no tempo, que não há-de teimar em vingar tempo infindável. Aí a dádiva, quando descerrar o seu pano, virá com um sabor ainda mais doce. Mesmo pequenas dádivas sentem-se como grandes feitos, ou o sinal paradoxal de tantas agruras por fim dobradas com o travo magnífico de um momento que orienta a bússola para um outro norte, aquietador, pleno.

Perante as vicissitudes semeadas no percurso que vamos fazendo, o comportamento é imperial. Dependemos da interiorização dos passos e das suas consequências. Tudo depende do balanço que se faz. Para uns, o prato da balança das dádivas inclina-se mais que o prato onde se acolhem as decepções mal carpidas. Tarefa facilitada: é só dar valor às coisas mais belas que ultrapassam o peso das coisas que entraram no rol das decepções. Para outros, os que não foram agraciados com dádivas recorrentes, saber sugar até ao tutano os ventos bonançosos que batem na janela. Abrir a janela. Para esses ventos entrarem, tão escassos que merecem ser enclausurados até ao último sopro.

Carpir as mágoas pelas desventuras acumuladas chama a atenção dos que cultivam comiserações. Há quem goste de exibir as feridas mal saradas para sentir a comiseração alheia. Mesmo que escondam a faceta mais agradável das dádivas que marcaram encontro com a sua existência. Só um incompreensível sentido da vida explica a tentação para tanta atenção dedicarem aos maus momentos que insistem em emoldurar numa permanente fotografia da vida passada. E ainda que esses momentos sejam repetições cansativas, que trazem as suas vítimas macambúzias almas, é intrigante como desviam o olhar quando à sua frente aparecem as dádivas mais singelas e mais recompensadoras que uma vida pode sentir.
As dádivas são a purificação dos sentidos. Candeias que iluminam o caminho. Sem as dádivas, escassas que sejam, o caminho escurece-se. Pelo meio do breu as armadilhas escondem-se à espera de trazer para o fundo os teimosos que arrepiam caminho na negação dos felizes momentos, do bom que há-de ter os seus dias. O mais certo é darem de caras com um alçapão, e só dão conta quando estiverem em queda livre, depois de terem pisado o terreno falso que escondia o alçapão.
Quando a aspereza da queda traz a dor intensa aos ossos amarfanhados, já não há tempo para arrependimento. Nem lugar ao apetecido recuar no tempo, desejando que a teimosia não tivesse vingado por entre o sufoco das dádivas menosprezadas. Porque se há estupidez maior é a suicidária queda para menosprezar as dádivas e só olhar para as curvas falhadas no trajecto de uma vida.

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