Há os paraísos fiscais, locais invejáveis onde se paga uma ninharia de imposto pelos rendimentos e pelo património (ou nem se paga nada). Só para gente abastada, que refugia as suas fortunas nesses paraísos fiscais por se recusar à cleptomaníaca sanha dos governos dos países onde vivem. Ontem foi lançada a primeira pedra para Portugal passar a ser o expoente máximo dos paraísos fiscais. Diria, o verdadeiro nirvana fiscal.
A pretexto de mais uma homenagem aos bravos da bola que andaram na Alemanha a dignificar o brio lusitano, o presidente da federação portuguesa de futebol propôs que os 50.000 euros que cada artista vai receber de prémio fiquem isentos de IRS. Uma espécie de consideração de todos nós pelos bravos do pelotão terem elevado a auto-estima colectiva. Pelo meio, o típico argumento que faz do futebol um mundo à parte: uma profissão de desgaste rápido. Proponho a extensão do argumento: esta rapaziada dificilmente embolsará outro prémio semelhante. Foi o zénite de uma carreira. Mais uma razão para a isenção de IRS. Como se fosse a gorjeta que eles recebem dos milhões de contribuintes. Se bem que o pretexto da gorjeta não colha neste contexto: dá-se gorjeta aos necessitados, não aos que estão habituados a embolsar num mês o que muitas pessoas ganham num ano (e numa perspectiva optimista).
Madail é um bom anarquista. Terá lançado a primeira pedra para que todos os contribuintes sejam isentos de IRS. Lá está o nirvana fiscal. Temos que agradecer penhoradamente ao presidente da federação portuguesa de futebol. Acaso no futuro o hediondo IRS, que rouba parcela significativa do nosso suor de trabalho, vier a ser banido, Madail será merecedor de uma estátua gigantesca bem no centro de Lisboa.
Todos somos heróis. À nossa maneira, todos fazemos um esforço hercúleo que faz avançar o que somos. Nuns casos com mais mediatismo, na esmagadora maioria dos casos apenas o contributo anónimo dos pequenos passos sem os quais seríamos um antro de retrocessos. O que fazemos para mover as rodas dentadas da grande engrenagem, o suor que destilamos, o que produzimos, mesmo as críticas de uns especialistas em devastar tudo o que se mexa à sua volta – tudo e mais o que se puder imaginar, os pequenos passos que impedem o mergulho no imobilismo. Se em alguns casos se trata de um pequeno empurrão, e noutros há baforadas que impulsionam a nau a alta velocidade, a diferença de contributos não interessa. Afinal não fica bem acreditar num dos preceitos consagrados do socialismo, essa coisa tão bela como inatingível, a igualdade?
Cada um à sua maneira, movemos a nau. Não importa se o rumo é acertado; apenas que há um rumo, nem que seja um rumo errante. Fica mal no retrato o ministro das finanças quando anuncia que é impensável isentar os prémios dos futebolistas de IRS. Já estamos habituados a ver nos ministros das finanças a imagem do cobrador de fraque, impiedosamente à caça dos que se esquivam ao pagamento de impostos. Até sabemos que os tempos são difíceis, na tentativa de corrigir os descarrilamentos orçamentais de governos anteriores. Diz o ministro que o momento é de sacrifícios. Em matéria de sacrifícios, ou toca a todos ou a imoralidade vence no braço de ferro.
O ministro deu a resposta que pensa (e os fazedores de imagem também) ser a mais querida aos ouvidos da maioria das pessoas: nem pensar em desculpar a malta da bola do pagamento de impostos, logo a eles que se banqueteiam em réditos principescos, coisa que só no domínio dos sonhos cabe ao cidadão comum. O ministro sabe que aceitar a sugestão de Madail era dar o flanco a que todos deixássemos de pagar IRS – e, de caminho, outros impostos ignominiosos. Faz mal. Os bravos dos relvados alemães merecem a nossa consideração, pelo que fizeram pela auto-estima colectiva. E porque todos nós somos, cada um à sua maneira, heróis da portugalidade contemporânea. O homem do talho, a bailarina, o professor primário, a cabeleireira, o homem da recolha do lixo, o histologista, a dona de casa, o cantor pimba, a funcionária dos impostos, o cozinheiro, a gestora, o camionista, a senhora deputada.
O nirvana fiscal é uma doce utopia. Uma oportunidade perdida pelo cobrador de fraque que nos leva o couro e o cabelo pelo que geramos. Como se o que produzimos, e que origina os rendimentos que auferimos, não fosse já bastante para fazer mover as peças da engrenagem. Parece que não: o roubo institucionalizou-se, na figura do imposto.
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