17.9.07

O alistamento dos mancebos, versão século XXI


Passo ao lado do edifício onde estão os serviços administrativos da tropa. Cá fora, a fachada efusivamente decorada com um cartaz de grandes dimensões e cores garridas. Retrata a excitação de ser militar, com as façanhas dos mancebos em pleno treino. A encabeçar o mural, a mensagem grita um lancinante apelo: “jovem, junta-te ao exército”.

Malditos políticos que baniram o alistamento obrigatório dos jovens varonis na tropa. Maldita evolução da sociedade que desprestigia o exército, ao roubar ao tirocínio militar jovens sem deficiência física ou mental. É o que hão-de pensar os militares de carreira, que viram fugir por entre os dedos um precioso filão – o dos recrutas que faziam estágio obrigatório debaixo da sua alçada, o abocanhamento da tropa sobre alguns meses (ou mais de um ano, no passado) da vida dos mancebos que não tinham fuga possível. Os tempos mudaram, os hábitos também, as percepções dominantes ajuizaram que deixara de fazer sentido roubar tempo aos jovens com uma preparação militar cuja utilidade passou a ser incógnita. Até porque as convenções perderam o rasto ao absurdo ditado que considerava que um homem só se fazia homem depois do estágio castrense.

A falta de mão-de-obra obriga a repensar estratégias. Os militares consideram-se os mestres superiores da estratégia, como é sabido. Não interessa que muitos erros de avaliação tenham engrossado o rol dos desastres em tempo de guerra, porque os generais confortavelmente depostos longe do terreno de batalha sabiam que se a estratégia desse para o torto não eram eles a pagar com a vida. Hoje só idealizam guerras – ou cenários, mil e um cenários em que dão azo à sua veia imaginativa, ou para se entreterem com algo que lhes possibilite dizer que têm tarefas para cumprir. E se hoje os jovens preferem em abundante maioria passar ao lado da carreira militar, como preferem nem ouvir falar dos quatro meses de serviço militar voluntário, os tropas profissionais tiveram que equacionar métodos modernos para atrair alguns ao serviço que outrora, nos “tempos decentes”, foi obrigatório. A tropa recondicionada aos tempos do marketing sublime.

Daí o amplo mural que chama a atenção pelas cores vistosas e fotografias ampliadas que exibem jovens mancebos na actividade que faz deles projectos de ninjas excitados. Há-de sempre haver um punhado de jovens destravados que transportam a ambição de serem sucedâneos dos heróis de pancadaria que passam em filmes de acção. Não sei se saberão a diferença entre a acção que passa nos filmes e aquilo que vão encontrar na recruta. Porventura contentar-se-ão em imaginar fantásticas acções bélicas enquanto fazem o treinamento que lhes é dado na recruta. Aposto que desconhecem o tratamento embrutecido que lhes é dedicado pelos acéfalos sargentos que exibem constantes abusos de autoridade, exigindo um respeito sepulcral – que nisto do exército a interiorização das hierarquias é pedra de toque.

E, de súbito, percebo as pontes que se tecem entre o exército e a igreja. Pela hierarquia bem oleada, que não se questiona. Pela entrega e dedicação dos crentes de ambas as fés, que se fazem carne para canhão de causas de que se julgam soldados acríticos. Pela existência de sacerdotes (chamem-se sargentos, alferes, ou padres, bispos) que ordenam e são respeitosamente obedecidos pelos soldados. Pelo desapossamento do indivíduo, que se despe de padrões mínimos de dignidade para aceitar as imposições da hierarquia, castrense o eclesiástica. E há dogmas, numa fé como noutra.

O mural colorido seduz os jovens excitados com a ideia de serem recrutas, de virem experimentar as delícias da vida militar. O que a mensagem esconde é muito mais. Esconde a ideia de se esfregarem em esterco, pisados por colegas em sucedâneos de refregas, maltratados por sargentos abrutalhados, sempre com o atractivo de carregarem ao ombro as vetustas G3 dos tempos da guerra colonial. Para muitos desmiolados há-de ser o supra-sumo da pós-adolescência que ainda goteja acne tardia. Vai mal o exército: há sinais que são o sintoma da crise. A vinda da tropa para o altar do marketing cheio de néons é o sinal do afastamento dos jovens, hoje mais dedicados a hábitos mundanos e entregues à perfídia do hedonismo. O mesmo mal atormenta as missões religiosas.

Daqui, uma sugestão: que espalhem – tropa e igreja – representantes pelas discotecas, tentando seduzir jovens sem perspectivas para a vida atractiva de uma missão – castrense ou eclesiástica. Seria o complemento aos murais que trouxeram nova política de comunicação à tropa. Haverá a igreja de replicar a estratégia?


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