“Se há cerca de 20 anos te tivessem mostrado este texto como sendo teu, davas uma gargalhada pelo absurdo!”, comentário do PVG ao texto escrito na quinta-feira.
Cambalhota ideológicas, quem as não tem? Foi com esta reacção, e com um largo sorriso nos lábios, porventura revelador de quem não se leva muito a sério, que li o comentário. E pôs-me a pensar. Todos evoluímos, uns mais e outros a passo de caracol. Os primeiros, na ânsia de experimentar outras ideias, rejeitando o hermetismo das ideias imóveis, no afã de se desprenderem do colete-de-forças que os detém no tempo e no espaço das ideias. Os segundos, inertes por natureza, olham de soslaio para ideias diferentes das que cimentaram o ser, teimando no imobilismo, fiéis aos imperativos de consciência ou apenas recusando a mudança por receio da revoada interior que a mudança signifique.
O meu amigo PVG tem razão. Há vinte anos não teria escrito aquele texto. Tê-lo-ia criticado com alguma ferocidade nacionalista. Falta confessar o que não foi dito, mas apenas entendido nas entrelinhas: nessa altura andava nas franjas da extrema-direita. Sem militâncias, que nunca fui de militância de coisa alguma. Apenas no bujão das ideias, sem vergonha de defender algo que hoje renego com a vitalidade de todas as minhas energias. Mais que interrogar como era possível vogar nos lençóis da extrema-direita nacionalista (pela surpresa que a confissão cause em alguns espíritos desprevenidos: “como é possível”, interrogar-se-ão), talvez a pergunta interessante seja como mudar a agulha e passar a defender o contrário dos dogmas ideológicos de há vinte anos.
Não quero, com a mudança de interrogação, afastar o estigma que pesará sobre mim. Há, nesta confissão que recupera o passado adolescente e pós-adolescente, esse risco, suicida revisitação das ideias outrora defendidas. O passado nas margens da extrema-direita fica registado, para todos os efeitos. Não o esqueço, porque ele aconteceu. Para que conste, não o renego: porque passado algum pode ser renegado. Que renegue as ideias que dominaram uma parcela desse tempo, é uma outra dimensão. As figuras públicas conhecidas por (ainda maiores) cambalhotas ideológicas passam com incomodidade pelas catacumbas onde selaram a identidade ideológica que tanto os envergonha. Fogem desse passado como se ele não tivesse acontecido. Vivem amordaçados pelos fantasmas que adejam sobre si mesmos, de tanto quererem fazer tabu do que foram então. O meu amigo PVG, talvez por pudor, não o quis dizer com as palavras todas: que já tive uma simpatia pela extrema-direita, que mostrava uma repulsa por comunistas, que achava o nacionalismo a missão maior de qualquer cidadão, e que a democracia é um embuste.
Hoje execro todas as palavras e vírgulas do catecismo da extrema-direita (como tantas vezes sublinhei noutros textos a propósito do simplismo do conceito de “esquerda” e “direita”, o rigor obrigaria a usar o plural: há extremas-direitas, por causa das variações ideológicas que as diferenciam). E, no entanto, não tenho qualquer fantasma a povoar as entranhas pelos tempos que vagueei pelos terrenos da extrema-direita. Posso não ter orgulho em tê-lo sido, mas não o hei-de abjurar senão estaria a passar uma esponja por alguns anos da minha vida. Um exercício estalinista de reconstrução do passado que me recuso a fazer.
Os sedimentos ideológicos de antanho têm um mérito: não as ideias, hoje repudiadas em toda a sua extensão; mas a convicção de que somos sempre produto do relativismo do tempo e do espaço. Diga o que disser hoje, por mais arreigadas que sejam as convicções ideológicas de hoje, jamais saberei se daqui a dez ou vinte anos elas não foram ultrapassadas pela madurez dos anos acumulados. Fica à mostra a limitação de tudo a que nos agarramos como convicções pessoais. A alguns perturba saber que as “verdades”, mais ou menos insofismáveis, que cultivaram em tempos idos são apenas uma imagem distorcida perante o novo quadro mental que vinga num determinado momento. E que o mesmo pode acontecer quando, dez ou vinte anos depois, chegar o momento de fazer uma retrospectiva. E assim reforço a convicção de que não nos devemos levar a sério.
O comentário terminava com este desafio: “mas reconhece lá que foi importante numa determinada fase da tua vida. Foi e continua a ser uma referência – hoje, para ti, com um significado bem diferente de há 20 anos”. Admito que o foi. Porventura por – então como agora – defender as minhas ideias com veemência, o que cada vez mais acho que está errado (não o termos ideias, mas defendê-las com veemência, pelo risco de resvalarmos facilmente para a inconsequência dos dogmas). Sem querer soar a justificação pela improvável confissão que aqui fica, mas ela existe: o niilismo empedernido, outrora como agora, domina a arquitectura das ideias. Elas sedimentam-se por reacção a algo que me incomoda. Nessa altura, era a alergia às esquerdas, a percepção das muitas insuficiências da democracia. Introspecção agora: continuo a ter alergia às esquerdas e a considerar que a democracia atravessa uma profunda crise. O crescimento filosófico divorciou-me da extrema-direita, contudo: o individualismo metódico, a profissão de fé na tolerância como vector da maturidade intelectual, o programa libertário, a imbecilidade das nações – eis as matrizes que fermentaram a negação da extrema-direita.
Cambalhota ideológicas, quem as não tem? Foi com esta reacção, e com um largo sorriso nos lábios, porventura revelador de quem não se leva muito a sério, que li o comentário. E pôs-me a pensar. Todos evoluímos, uns mais e outros a passo de caracol. Os primeiros, na ânsia de experimentar outras ideias, rejeitando o hermetismo das ideias imóveis, no afã de se desprenderem do colete-de-forças que os detém no tempo e no espaço das ideias. Os segundos, inertes por natureza, olham de soslaio para ideias diferentes das que cimentaram o ser, teimando no imobilismo, fiéis aos imperativos de consciência ou apenas recusando a mudança por receio da revoada interior que a mudança signifique.
O meu amigo PVG tem razão. Há vinte anos não teria escrito aquele texto. Tê-lo-ia criticado com alguma ferocidade nacionalista. Falta confessar o que não foi dito, mas apenas entendido nas entrelinhas: nessa altura andava nas franjas da extrema-direita. Sem militâncias, que nunca fui de militância de coisa alguma. Apenas no bujão das ideias, sem vergonha de defender algo que hoje renego com a vitalidade de todas as minhas energias. Mais que interrogar como era possível vogar nos lençóis da extrema-direita nacionalista (pela surpresa que a confissão cause em alguns espíritos desprevenidos: “como é possível”, interrogar-se-ão), talvez a pergunta interessante seja como mudar a agulha e passar a defender o contrário dos dogmas ideológicos de há vinte anos.
Não quero, com a mudança de interrogação, afastar o estigma que pesará sobre mim. Há, nesta confissão que recupera o passado adolescente e pós-adolescente, esse risco, suicida revisitação das ideias outrora defendidas. O passado nas margens da extrema-direita fica registado, para todos os efeitos. Não o esqueço, porque ele aconteceu. Para que conste, não o renego: porque passado algum pode ser renegado. Que renegue as ideias que dominaram uma parcela desse tempo, é uma outra dimensão. As figuras públicas conhecidas por (ainda maiores) cambalhotas ideológicas passam com incomodidade pelas catacumbas onde selaram a identidade ideológica que tanto os envergonha. Fogem desse passado como se ele não tivesse acontecido. Vivem amordaçados pelos fantasmas que adejam sobre si mesmos, de tanto quererem fazer tabu do que foram então. O meu amigo PVG, talvez por pudor, não o quis dizer com as palavras todas: que já tive uma simpatia pela extrema-direita, que mostrava uma repulsa por comunistas, que achava o nacionalismo a missão maior de qualquer cidadão, e que a democracia é um embuste.
Hoje execro todas as palavras e vírgulas do catecismo da extrema-direita (como tantas vezes sublinhei noutros textos a propósito do simplismo do conceito de “esquerda” e “direita”, o rigor obrigaria a usar o plural: há extremas-direitas, por causa das variações ideológicas que as diferenciam). E, no entanto, não tenho qualquer fantasma a povoar as entranhas pelos tempos que vagueei pelos terrenos da extrema-direita. Posso não ter orgulho em tê-lo sido, mas não o hei-de abjurar senão estaria a passar uma esponja por alguns anos da minha vida. Um exercício estalinista de reconstrução do passado que me recuso a fazer.
Os sedimentos ideológicos de antanho têm um mérito: não as ideias, hoje repudiadas em toda a sua extensão; mas a convicção de que somos sempre produto do relativismo do tempo e do espaço. Diga o que disser hoje, por mais arreigadas que sejam as convicções ideológicas de hoje, jamais saberei se daqui a dez ou vinte anos elas não foram ultrapassadas pela madurez dos anos acumulados. Fica à mostra a limitação de tudo a que nos agarramos como convicções pessoais. A alguns perturba saber que as “verdades”, mais ou menos insofismáveis, que cultivaram em tempos idos são apenas uma imagem distorcida perante o novo quadro mental que vinga num determinado momento. E que o mesmo pode acontecer quando, dez ou vinte anos depois, chegar o momento de fazer uma retrospectiva. E assim reforço a convicção de que não nos devemos levar a sério.
O comentário terminava com este desafio: “mas reconhece lá que foi importante numa determinada fase da tua vida. Foi e continua a ser uma referência – hoje, para ti, com um significado bem diferente de há 20 anos”. Admito que o foi. Porventura por – então como agora – defender as minhas ideias com veemência, o que cada vez mais acho que está errado (não o termos ideias, mas defendê-las com veemência, pelo risco de resvalarmos facilmente para a inconsequência dos dogmas). Sem querer soar a justificação pela improvável confissão que aqui fica, mas ela existe: o niilismo empedernido, outrora como agora, domina a arquitectura das ideias. Elas sedimentam-se por reacção a algo que me incomoda. Nessa altura, era a alergia às esquerdas, a percepção das muitas insuficiências da democracia. Introspecção agora: continuo a ter alergia às esquerdas e a considerar que a democracia atravessa uma profunda crise. O crescimento filosófico divorciou-me da extrema-direita, contudo: o individualismo metódico, a profissão de fé na tolerância como vector da maturidade intelectual, o programa libertário, a imbecilidade das nações – eis as matrizes que fermentaram a negação da extrema-direita.
1 comentário:
De facto hoje continuas a defender as tuas ideias com veemência, ainda bem que o reconheces, só não acho que isso seja errado.
De facto, não nos devemos levar a sério... mas é tão bom fazê-lo!
PVG
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