27.9.07

O comodismo da desconstrução


Tenho um ficheiro onde arquivo os assuntos que ficam em fila de espera para serem transformados em texto diário. Olho para o ficheiro e vejo os temas à espera de tratamento: as figas para que o D. Sebastião que nos governa fracasse na conclusão do tratado que virá substituir a abortada Constituição da União Europeia; uma digressão sobre o bafio que cobre os burocratas da praça, com o seu raciocínio tacanho e as cautelas cansativas que adiam decisões. Opto por não escolher nenhum dos assuntos. A eles hei-de voltar um dia destes.

A alternativa é perceber a simbologia daqueles temas. O que conduz à escolha de assuntos que jorram a crítica fácil, as palavras destrutivas sucedendo-se a um ritmo alucinante. Confesso que há um gosto perverso em alinhavar um raciocínio que desmonta, pedra por pedra, o que alguém disse ou fez, uma ideia, o que quer que seja. É natural que do outro lado a reacção não seja agradável (a não ser que fermente, activo, um fel que liberta a corrosiva crítica): a crítica pela crítica traz o cansaço. A certo ponto, a crítica reiterada, mesmo que venha aliada a um raciocínio límpido que tenta demonstrar a validade da desconstrução, esgota-se na sua própria insistência.

E, no entanto, não é só o gosto pela desconstrução que me coloca na rota dos textos críticos. Admito: é que escrever como alicerce da decomposição do que está de pé é a alternativa mais fácil. Eis-me rendido ao comodismo. Sucumbo perante a tarefa facilitada de esgrimir argumentos que destroem o que aparece pela frente e causa alergia, ou apenas alimenta a perplexidade, ou mesmo uma inquietação que toca os limiares do incompreensível. De braço dado anda uma insatisfação perene com o estado das coisas que me cercam.

Mas o pior vem no fim: o restolho da desconstrução. É quando chego ao fim do texto crítico e revejo os argumentos que tecem a antítese que mais noto a insatisfação interior. Nessa altura, parece-me que as palavras transpiram um moralismo insuportável. Eu, que odeio moralismos de qualquer jaez, sem dar conta vou tecendo uma crítica que no final vem debruada com um moralismo às avessas. Não tenho por hábito regressar a textos antigos (o tempo escasso é adversário da função). Nas raras vezes que o faço, descubro nessas palavras a lança moralista por antinomia. É que na crítica de gente, palavras dos outros, ideias, decisões, usos e costumes estabelecidos, solto o seu contrário. Haveria ao menos de se identificar algum mérito: prova-se que a crítica não é gratuita, como se intuísse a implosão de tudo sem haver a preocupação de levantar algo de novo.

Todavia, é isso que me desgosta, pelo travo de moralidade de sinal contrário que se ergue na linha do horizonte. Por paradoxal que pareça, descobrir que a desconstrução que se ensaia nestas palavras esconde um programa moral insinua em mim um inexplicável desejo de radicalizar a metodologia crítica – a pura desconstrução, sem cuidar de alternativa que substitua a devastação semeada pelas palavras tão críticas. Ao reparar na agenda moral escondida que sobra da demolição dos outros, das suas palavras ou ideias, dos usos e costumes, escorrego para aquilo que mais me perturba nos outros – quando se arvoram em sacerdotes da moralidade alheia, ditando regras que os outros devem respeitar em obediência ao “bom funcionamento da sociedade”.

É então que descubro que a crítica é sempre inacabada. Porque deixa vir ao de cima o contrário do que é criticado, o modelo diferente de moralidade – mas sempre uma moralidade que se devia cingir ao mais profundo do ser, sem gotejar cá para fora como manifestação de algo que o exterior de mim deva obedecer. A opção pela desconstrução é sucumbir perante o comodismo. Mas é, ao mesmo tempo, um suicídio do roteiro interior que rejeita a moralidade aspergida pelos outros. É uma contradição de que não me consigo desfazer. E tudo isto se volta contra mim, entregue nos braços dúcteis da incoerência.

Porventura, em vez de ceder perante o travo doce do que é aparentemente fácil (a crítica metódica), a libertação da paradoxal e insidiosa moralidade escondida na desconstrução exige mudança de planos: o sextante afinado para a arte tão difícil de elogiar, tecendo textos contemplativos, encomiásticos, singelos textos que destacam a beleza de pequenos nadas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Parabéns por te expores!
Já te tinha dito isto antes. É um exercício de humildade notável.
Talvez um dia leia textos teus defendendo pessoas, políticas, desenvolvendo as tuas próprias ideias no sentido construtivo, expostas a outros "felinos".
Os elogios à beleza dos pequenos nadas são, na minha óptica, poemas. Lindos, sentidos... mas poemas apenas.
Gostava de ver textos teus a apoiar políticas, ou a defender políticas próprias que criem algo.
Tendo em conta quem tu eras aos 18 anos e quem tu és agora, acho legítima esta esperança de nova mudança radical.
Ponte Vasco da Gama