19.9.07

Contra factos…



Passada a primeira metade do actual mandato governamental, não se pode contestar, em jeito de balanço, a determinação e, em geral, o sucesso com que foram definidas e desenvolvidas as principais apostas do Governo do PS (…)”, Vital Moreira, Público de 18.09.07

Todos os governos têm o seu Luís Delgado de estimação. Este (governo) muniu-se de uma correia de transmissão que tem o condão de perfumar as doutas opiniões com a sapiência que os lentes de Coimbra costumam ostentar. Vem da tradição: o lente perora e os comuns dos mortais, reduzidos à insignificância intelectual, agacham-se perante as deslumbrantes exibições de erudição, que a cátedra coimbrã não autoriza voz discordante.

Talvez assim se compreenda a entrada de rompante deste artigo doutrinário. Doutrinário, porque é um balanço encomiástico do governo, em jeito de verdade que fica registada nos anais. Doutrinário, ainda, na medida em que é asseverada a impossibilidade de contestar o sucesso do governo. É importante reter aquela fórmula, antes que ela passe como uma simples distracção semântica: “não se pode contestar”. E ponto final. Assim se celebra a liberdade de opinião, desde que ela reme para o lado do doutrinador que espalha a boa nova socialista. Porventura há hábitos que vêm do passado, formatações intelectuais de que é difícil o desprendimento. Quem usa aquela fórmula, ainda que o faça com o pretexto de que é uma força de expressão, encerra um labiríntico raciocinar pouco dado à tolerância em relação aos dissidentes.

É que, por acaso, até acho que o rol de façanhas desfiado pelo Avó Cantigas do PS merece contestação. É-mo permitido? Ou arrisco o desdém do professor coimbrão, à laia de reiterada arrogância, mesmo que queira rebater, uma por uma, as façanhas que este governo messiânico terá alcançado? Advirto, para começar, que não mo apetece fazer neste texto – e, repito, não é por falta de assunto, que atirar com provas da discordância da excelência deste governo, negando o panegírico do Prof. Vital, daria pano para mangas.

O que me intriga é aquela fórmula, a conjugação assassina de palavras que é a pior maneira de começar uma discussão (desiderato que, imagino, não é pretendido pelo artigo do opinador) ou de apresentar um ponto de vista. O jurista Vital, se algum dia pleiteasse em tribunal, decerto entraria de mansinho. A arrogância cai mal, mesmo aos senadores intelectuais que se encavalitam no capitel da (sua) razão. O diagnóstico piora quando a doutrinação é servida por alguém apresentado como independente e consagrado professor universitário (e de Coimbra, ó fama de antanho que perdura, perdura). É que há independentes que são mais propagandistas que devotos militantes em demanda de sinecura. Debaixo do manto da independência, há um servilismo escondido pela estatura intelectual do universitário reputado. Se fosse um Zé-ninguém a escrever “passada a primeira metade do actual mandato governamental, não se pode contestar, em jeito de balanço, a bazófia, o culto de imagem e, em geral, a vacuidade do Governo do PS”, logo tombava o Carmo e a Trindade pela inconsequência da opinião emoldurada pela verdade incontestável que a frase encerra.

A urgência em compor os dois primeiros anos deste governo com uma máscara esbelta levanta suspeições. O Avó Cantigas tem direito à sua opinião – tem até direito a ventilá-la como se vivesse num paradisíaco país que só ele consegue discernir. É mais duvidoso servir-se do seu estatuto senatorial para disseminar a palavra inabalável, a verdade que todos temos que tomar sob pena de arrostarmos acusação de desonestidade intelectual ou erro de apreciação. O artigo doutrinário enumera muitos feitos ocultando o contexto que facilitou o sucesso (ainda assim, sempre discutível), ou ignorando “reformas” anunciadas à exaustão, publicitadas mais que uma vez em pomposas celebrações, mas que são terra árida quando se indaga a sua concretização. Isto só para começo de discussão; provando que, afinal, o Avó Cantigas está errado quando afirma que “não se pode contestar”. Pode, pode, senhor professor. Sobretudo quando alguém, para mais do seu estalão, anuncia aos quatro ventos o contrário, qual sentença inamovível que os pobres de espírito devem acatar, embrulhados na sua humilde estatura intelectual.

Em vez de só retratar o lado bonançoso da empreitada Sócrates, devia olhar para a outra banda, perder o viés que faz dele um “juiz” parcial. E se tanto se indignou – e com razão – do vergonhoso financiamento ilegal da Somague ao PSD, até hoje não se leu uma palavra, por singela que fosse, sobre o lodaçal em que os socialistas estão metidos, com financiamentos duvidosos obtidos no Brasil.

Há mitos que se esboroam ao passar a primeira brisa.

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