18.9.07

As chinesices da Zezinha


Vale a pena andar acordado, e de olhos bem atentos ao rodar do mundo, para dar de caras com o insólito que nos cerca sem capitular. Não falo pelas surpresas boas da vida, aquelas que vêm adocicar a existência. Um livro, um disco, um filme, uma atitude de um anónimo na rua, um encontro inesperado com alguém que julgávamos desaparecido do horizonte, uma palavra singela. São estes instantes não programados que trazem aqueles dias absolutos, em que tudo parece perfeito, até os defeitos que espreitam à superfície. Instantes que dão alento para aguentar os pataratas que insistem em borrar a pintura, triunfantes no campeonato de imbecilidade. E, no entanto, há cada vez mais o impulso de rir, e a bandeiras despregadas, da idiotice alheia. Que é património genético da boa disposição semeada pelo paradoxal efeito de rir com o que só faria apetecer chorar.

Neste diagnóstico cabe o protótipo daquelas figuras públicas, muito enamoradas com a posse do poder, e que não hesitam em dar piruetas que fariam garbo ao mais exercitado dos ginastas com predicados olímpicos. Há-os em todos os quadrantes, em todos os lugares, sempre prontos a afinar a bússola para onde farejarem a possibilidade de deitar a unha ao poder. Em Lisboa tem-se destacado uma ilustre dignitária da direita conservadora e de sacristia que se enamorou pelo “projecto” do Costa que saiu do governo para fazer tirocínio à frente do município, etapa transitória para voos mais altos (o timoneiro que se acautele…). Consta que a beata está na calha para liderar um gabinete municipal para revitalizar a baixa pombalina.

Ainda antes de tomar posse, a comissária já começou a opinar. Eu diria, a asneirar. Perorou em defesa do “comércio tradicional”, dirigindo a artilharia contra um dos esteios que ameaçam o sector – as lojas chinesas que se multiplicam que nem cogumelos. Ter-se-á esquecido da outra lança apontada contra o comércio tradicional: os hipermercados. Falta saber se mais tarde fará investida contra as grandes superfícies comerciais em nome do tradicionalismo do comércio, ou se foi apenas um esquecimento oportuno, pois ao menos os hipermercados são capital português. Laivos de nacionalismo económico, reforçados pelo chauvinismo da medida: os malditos chineses, que proliferam por todo o lado e seduzem os incautos comerciantes com preços módicos e má qualidade do produto vendido.

A futura comissária para a baixa pombalina tirou da cartola uma mágica solução: fazer uma China Town no Martim Moniz, onde as lojas chinesas estariam obrigatoriamente acantonadas (juro que esta palavra não tem conotação geográfica, lembrando a origem de muitos dos comerciantes chineses). Assim, por decreto, obrigando ao êxodo das lojas chinesas para um recanto da cidade. Nos outros lugares, elas seriam proibidas. Eis um magnífico exemplo de engenharia social. É destas mentes iluminadas que tanto carecemos para o prometido progresso que tarda em chegar. Assim como assim, noutras metrópoles, de países “civilizados”, também há uma China Town. Com o sucesso conhecido e o perfume de atracção turística, e curiosidade etnográfica, tão reconhecidos. A be(a)ta senhora comete um pecado analítico: nesses lugares, as China Town não foram edificadas por decreto. Nada de novo numa lídima representante da direita conservadora e de sacristia que não hesita em defender a intervenção mágica dos poderes públicos – afinal, tão perto dos socialistas com quem anda agora de braço dado.

Pelo meio, uma perplexidade muito pessoal: até passo por cima das cambalhotas das cores partidárias, que uma pessoa tem sempre o direito a chamar a si o conveniente pragmatismo que cauciona a mudança de camisola. Falo apenas de estranhas alianças que irmanam personalidades de quadrantes tão distantes como os dois Zés Pereiras que andam de braço dado neste arremedo de “união nacional” que o predestinado Costa conseguiu arquitectar em Lisboa. Falta saber se o Zé da extrema-esquerda autoriza a medida chauvinista da Zezinha da direita bafienta. O Costa que tutela esta incrível “união nacional” – à qual os outros deviam aderir, tão inadiável ela é para os desígnios lisbonenses e, quem sabe, a prazo, para os desígnios do chão pátrio – terá um problema para resolver? É que o Zé da extrema-esquerda, mais dado aos amores do multiculturalismo, não se deixará seduzir pela trauliteira e chauvinista “guetização” dos comerciantes chineses. Ou estarei enganado?

Assim fermentará o tão conhecido “zangam-se as comadres”?

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