6.9.07

Portugalidade desconstruída via Saramago


Aprende-se muito quando à mesa se juntam pessoas de vários países. Entre a conversa patética que flui amiúde, tão própria de um grupo que arremete pelo conhecimento recíproco enquanto pela mesa vão passando garrafas de vinho e iguarias diversas, há por vezes momentos sublimes, palavras inesperadas que tracejam pensamentos doravante. Um dia destes um italiano, sentado à minha frente, lançou a provocação: “e ainda não falámos da proposta de Saramago”. Sem mais, a não ser um sorriso cínico que adicionou às palavras lançadas em jeito de desafio. O italiano errara no alvo.


Os restantes mostraram conhecer Saramago. O prémio Nobel traz reconhecimento mundial. Só não sabiam do que o italiano falava. Atalhei a resposta: “não me importava.” E depois expliquei aos demais onde queria o italiano chegar, pela palavras de Saramago: a defesa de um país só a abraçar o território da península ibérica, pela incorporação de Portugal em Espanha. Quando respondi “não me importava”, não havia concordância com Saramago. Não tenho aspirações a transportar bilhete de identidade espanhol. Ou de vibrar ao lado de cidadãos orgulhosos da sua hispânica condição, fermentando o chauvinismo que ensimesma o país do lado. É-me indiferente ser português, ou nortenho – houvesse o milagre da desagregação nacional e nascesse um Estado confinado ao norte – ou espanhol, ou hispânico, ou ibérico, qualquer que seja a fórmula. Não era isso que me tirava o sono.


A ideia mexeu com os esqueletos escondidos no armário mental da portugalidade. Vozes indignadas protestaram o ensandecimento do escritor laureado. Outras desvalorizaram, alegando que Saramago habita no limiar da senilidade. Outros ainda desdobraram-se em paninhos quentes, convocando a azia de espírito que se apoderou do escritor nos últimos anos como contexto para palavras que seriam apenas provocação para espicaçar a reflexão. Eu digo: o que interessa? Assuntos mais importantes teriam o condão de me atormentar. Se, por assomo do impossível, um dia acordássemos todos ibéricos – ou, heresia ainda maior, hispânicos – não seria insubordinação e revolta a fervilhar nas minhas veias. Não posso lamentar que o gérmen do nacionalismo não habite em mim.


Perante o pasmo de alguns convivas, adicionei detalhes da rivalidade histórica e de como ela só faz sentido nos calhamaços que contam a história. Revisitar o ar bafiento do passado só revolve os esqueletos onde se deposita uma densa camada de poeira. Mexer neles é espevitar a poeira que intoxica os afectos que confundem identidade com nacionalismo. E se tudo isto não bastasse, restava o laivo anacrónico, o mergulho nos dizeres que formatavam quadros mentais e que ensinavam que “de Espanha nem bom vento nem bom casamento”.


Fossem insuficientes estes argumentos, sobravam os dois mais persuasivos. Primeiro, Saramago não levara em consideração se os espanhóis nos queriam anexar. Para problema já lhes basta as bombásticas erupções de nacionalidade (basca, catalã, galega, e agora até andaluza). Para quê herdar nos braços uma portugalidade que é um problema estrutural? Segundo, o mundo moderno desmente Saramago. Por aí fora, o que se assiste é a desagregação de países pela vaga imparável de autodeterminação que faz nascer novos Estados soberanos. Os países não se estão a agigantar. Ao contrário, pulverizam-se. Aumentam de número e tornam-se anãos. O cantinho ibérico não pode ser excepção à regra.


O erro está em confundirmos identidade com nacionalismo – ou, na sua versão refinada, e de calibre pior, patriotismo. E placidamente continuarmos a prescindir da individualidade, que sucumbe perante uma coisa abstracta que é ser nacional de um país qualquer, quase como se essa pertença fosse a graça maior de qualquer pessoa. É aqui que irrompe um lirismo que se confunde com utopismo, um romantismo porventura inconsequente. Mas um lirismo espontâneo, genuíno, que me desprende das algemas da nacionalidade imponente que pesa sobre as costas de todos nós. Há quem lhe chame a utopia multiculturalista, com desdém à mistura. Não me importo que chovam acusações. Ao percorrer Oxford Street, em Londres, o contraste em toda a sua nitidez. É o ninho da multiculturalidade, onde todas as raças do mundo se misturam entre as paredes altas que simbolizam o consumismo e o capitalismo e a globalização e todos os ícones blasfemados com perseverante convicção por descontentes do outro lado da barricada. Ali não há gavetas herméticas que arrumem as pessoas por nacionalidade. A convivência multicultural salta as grilhetas das fronteiras nacionais.


Os passos em Oxford Stress reforçam a interrogação: o que interessa que Saramago tenha proposto o que propôs?


(Em Londres)


1 comentário:

Anónimo disse...

Se há cerca de 20 anos te tivessem mostrado este texto como sendo teu, davas uma gargalhada pelo absurdo!
Desculpa lá, mas como teu amigo aprecio-te não apenas pelo que és hoje mas também pela tua evolução.
Só um comentário em relação ao assunto: a nossa identidade é composta pelo que vem de "dentro de nós", mas também pelo que vem "de fora" (família, sociedade, país, etc.). Neste sentido, a nacionalidade também "pesa" na nossa identidade individual. Talvez por isso te estejas marimbando para a nacionalidade... porque não te identificas com esta.
Mas reconhece lá que foi importante numa determindade fase tua vida. Foi e continua a ser uma referência - hoje, para ti, com um significado bem diferente de há 20 anos.
Ponte Vasco da Gama