Como se nada mais importante houvesse a tratar, andámos entretidos com a demissão de um treinador de futebol que fazia furor em Inglaterra, tantas as vitórias e troféus arrebatados. A comunicação social elegeu a causa do momento e fê-lo com a parcialidade em que se especializou. O treinador, esse, foi glorificado, endeusado, quase como só se faz aos mortos que entram no panteão dos perfeitos porque já não estão vivos.
Para que conste, um registo de interesses: antipatizo com a personagem que saltou para a ribalta por ter sido “injustamente” despedida do clube londrino. Mas como não venho aos feitos desportivos e ao ter ou não nascido para ser predestinado, deixa-me à vontade para olhar para o circo mediático com um sentimento de agonia. Bem sei que o sujeito já ganhou foros de herói pela contemplação de milhares e milhares de nativos. Os seus feitos são uma exaltação da pertença nacional. Afinal, ele é um “dos nossos”, que anda lá fora a espalhar a boa têmpera de que a gesta lusitana é feita. A versão moderna das conquistas, que traz o arrebatamento nacional à flor da pele. Convinha que explicassem às massas que os sucessos dele só a ele pertencem. É abusiva a apropriação colectiva das glórias desportivas de que é feitor. Aposto que o treinador sentirá desconforto ao perceber que a sintonia de um povo com os seus êxitos, logo expropriados como caução da excelência nacional, tem o condão de colocar esse povo como parasita que adjaz a quem trabalha e festeja os feitos como se fossem seus também.
(E, já agora, era conveniente explicar à turba que ele, sozinho, não consegue ganhar jogos; que o desporto em causa tem muito de aleatório; e que há onze peças no tabuleiro – é certo, colocadas por ele, seguindo a estratégia que ele congeminou – mas que essas peças são cruciais para a vitória que é sempre, mas sempre, do colectivo.)
A imprensa desajuda. Foi patética a cobertura mediática, um jogo infantil entre os bons e os maus – entre o treinador “injustamente” despedido e o milionário russo que o despediu. Subitamente, não percebi se éramos convidados pelos militantes plumitivos a mostrar piedade pelo treinador despedido, ou pelo clube que iria decerto ficar órfão de tão salvífica personagem. É que se foi a primeira hipótese, a comiseração terminou no exacto momento em que se tomou conhecimento da indemnização astronómica que o demitido embolsou. Resta a segunda hipótese: afinal o “clube de todos nós” não será o popular Benfica, mas o Chelsea. Todos os dias aprendemos coisas novas.
O rosário de disparates continuou pelos dias que se seguiram. Reforçou-se a imagem do injustiçado, porque é intolerável demitir quem tantas vitórias depositou no regaço do clube. A personagem, esperta como sempre, prestou-se ao papel. A imprensa doméstica continuou de olhos postos no desempenho do clube que teve a ousadia de demitir tão infalível personagem. Todos à espera do jogo seguinte, todos os corações palpitando pela derrota – e de preferência contundente – para provar o tremendo erro de desaproveitar tão insigne figura. O Chelsea perdeu. Uma nação aplaudiu de pé. A vingança amesendada a frio. Afinal o Chelsea não destronou o Benfica do pedestal.
De permeio com a deificação, uma insalubre querela luso-britânica. Nós contra eles, como se ainda estivessem pendentes assuntos mal resolvidos da História conjunta. De que serve a retórica oficial de que o Reino Unido é o nosso mais ancestral aliado? Chegam ao conhecimento estes problemas e logo ganham natureza de incidente diplomático. A dicotomia “bom/mau” passa para a dimensão dos países, deixa de pertencer às relações profissionais entre demitido e quem o demitiu. Entramos no nacionalismo pacóvio. Para atirar mais lume para a fogueira, a imprensa serve-se de um acólito de ocasião: o fantasma dos nefandos capitalistas que são demónios à solta, apenas preocupados em apascentar os caprichos que a opulência autoriza. É o multi-milionário desmiolado que prescindiu do ilustre treinador, até se dispondo a pagar uma indemnização com mais números que muitas fortunas cá do burgo.
O outro, despedido e vítima da tenebrosa ingratidão do capitalista mafioso (que só agora a imprensa lusa foi vasculhar as origens da sua fortuna; antes, quando era patrão do predestinado, a fortuna era limpa como a cal. Agora tingiu-se com um breu implacável), sai do episódio voando com as suas asinhas de querubim. Irá a voar para a celestial dimensão onde só moram os deuses, infalíveis como nos são apresentados. Suspeito que este deus será o primeiro a habitar entre os terrenos, a crer no embevecimento com que a comunicação social contou a novela e no imparável umbiguismo da personagem.
Para que conste, um registo de interesses: antipatizo com a personagem que saltou para a ribalta por ter sido “injustamente” despedida do clube londrino. Mas como não venho aos feitos desportivos e ao ter ou não nascido para ser predestinado, deixa-me à vontade para olhar para o circo mediático com um sentimento de agonia. Bem sei que o sujeito já ganhou foros de herói pela contemplação de milhares e milhares de nativos. Os seus feitos são uma exaltação da pertença nacional. Afinal, ele é um “dos nossos”, que anda lá fora a espalhar a boa têmpera de que a gesta lusitana é feita. A versão moderna das conquistas, que traz o arrebatamento nacional à flor da pele. Convinha que explicassem às massas que os sucessos dele só a ele pertencem. É abusiva a apropriação colectiva das glórias desportivas de que é feitor. Aposto que o treinador sentirá desconforto ao perceber que a sintonia de um povo com os seus êxitos, logo expropriados como caução da excelência nacional, tem o condão de colocar esse povo como parasita que adjaz a quem trabalha e festeja os feitos como se fossem seus também.
(E, já agora, era conveniente explicar à turba que ele, sozinho, não consegue ganhar jogos; que o desporto em causa tem muito de aleatório; e que há onze peças no tabuleiro – é certo, colocadas por ele, seguindo a estratégia que ele congeminou – mas que essas peças são cruciais para a vitória que é sempre, mas sempre, do colectivo.)
A imprensa desajuda. Foi patética a cobertura mediática, um jogo infantil entre os bons e os maus – entre o treinador “injustamente” despedido e o milionário russo que o despediu. Subitamente, não percebi se éramos convidados pelos militantes plumitivos a mostrar piedade pelo treinador despedido, ou pelo clube que iria decerto ficar órfão de tão salvífica personagem. É que se foi a primeira hipótese, a comiseração terminou no exacto momento em que se tomou conhecimento da indemnização astronómica que o demitido embolsou. Resta a segunda hipótese: afinal o “clube de todos nós” não será o popular Benfica, mas o Chelsea. Todos os dias aprendemos coisas novas.
O rosário de disparates continuou pelos dias que se seguiram. Reforçou-se a imagem do injustiçado, porque é intolerável demitir quem tantas vitórias depositou no regaço do clube. A personagem, esperta como sempre, prestou-se ao papel. A imprensa doméstica continuou de olhos postos no desempenho do clube que teve a ousadia de demitir tão infalível personagem. Todos à espera do jogo seguinte, todos os corações palpitando pela derrota – e de preferência contundente – para provar o tremendo erro de desaproveitar tão insigne figura. O Chelsea perdeu. Uma nação aplaudiu de pé. A vingança amesendada a frio. Afinal o Chelsea não destronou o Benfica do pedestal.
De permeio com a deificação, uma insalubre querela luso-britânica. Nós contra eles, como se ainda estivessem pendentes assuntos mal resolvidos da História conjunta. De que serve a retórica oficial de que o Reino Unido é o nosso mais ancestral aliado? Chegam ao conhecimento estes problemas e logo ganham natureza de incidente diplomático. A dicotomia “bom/mau” passa para a dimensão dos países, deixa de pertencer às relações profissionais entre demitido e quem o demitiu. Entramos no nacionalismo pacóvio. Para atirar mais lume para a fogueira, a imprensa serve-se de um acólito de ocasião: o fantasma dos nefandos capitalistas que são demónios à solta, apenas preocupados em apascentar os caprichos que a opulência autoriza. É o multi-milionário desmiolado que prescindiu do ilustre treinador, até se dispondo a pagar uma indemnização com mais números que muitas fortunas cá do burgo.
O outro, despedido e vítima da tenebrosa ingratidão do capitalista mafioso (que só agora a imprensa lusa foi vasculhar as origens da sua fortuna; antes, quando era patrão do predestinado, a fortuna era limpa como a cal. Agora tingiu-se com um breu implacável), sai do episódio voando com as suas asinhas de querubim. Irá a voar para a celestial dimensão onde só moram os deuses, infalíveis como nos são apresentados. Suspeito que este deus será o primeiro a habitar entre os terrenos, a crer no embevecimento com que a comunicação social contou a novela e no imparável umbiguismo da personagem.
2 comentários:
Não se te apercebeste, mas acabaste de te tornar "mais um a dar para o mesmo peditório."
Ponte Vasco da Gama
De uma certa forma, tens razão!
Ao menos, por pudor, não escrevi o nome da criatura. E, se contribui para o peditório, não foi para dar esmola – foi para retirar dele dinheiro (leia-se, encómios à personagem).
PVM
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