Ciência política, economia, direito, sociologia, relações internacionais, Europa. E agora história, que faltava coleccionar o cromo no álbum dos congressos que, por imperativo de profissão, tenho que frequentar a espaços. Os especialistas determinaram o cruzamento de disciplinas, o reino da “interdisciplinaridade”. Às vezes falam da “transdisciplinaridade”. O advento da pós-modernidade pôs fim aos especialistas de um domínio só. Esses passaram a ser comparados com os animais que precisam de palas que os encaminham para o caminho estreito que a sua visão alcança. Nesta pós-modernidade, são especialistas de nada.
Ao provar os sabores diferentes dos vários ramos da ciência, estilos que variam. Pessoas com tiques diferentes, semânticas nunca iguais, métodos que fogem da convergência e negam expressão ao acalmado, pelos teorizadores da conspiração “neoliberal”, “pensamento único”. Sobre os fragmentos de diferença, um traço comum a todos estes saberes: a bizarria que acompanha de perto a fauna que frequenta congressos internacionais. Diria que ser bizarro é, nos dias que correm, sinal de identificação de um professor universitário, ou de um investigador. O protótipo do cientista maluco corresponde ao participante médio nos congressos. Quem aparentar uma discreta normalidade sente-se peixe fora do aquário. Entre as exuberantes aparições de fauna saudosa do Maio de 68, estilo com crescente furor entre as camadas mais jovens, o pêndulo aponta para a anormalidade dos que destoarem do registo.
O congresso dos historiadores trouxe o inesperado: um número considerável de intervenções a teorizar o passado à volta de comunismo, das influências da União Soviética no partido trabalhista britânico na década de trinta, de como o neoliberalismo suplantou o movimento socialista a partir da década de setenta. Muitas pestanas queimadas, muitas leituras feitas, muitos arquivos vasculhados em demanda do socialismo, do comunismo, dos bolcheviques, com carradas de romantismo que perpassam desencanto pelo estado do mundo. Uma orfandade ideológica. Nunca pensava que fossem tão numerosas as comunicações remoendo o passado mal resolvido do comunismo – ou do “socialismo científico”, como eufemisticamente alguns insistem em usar.
O zénite estava reservado para o último dia, com a palestra, ao jeito de lição magistral, de um catedrático com ar de poeta louco. Dissertou longamente sobre Emma Goldman e a revolução bolchevique. Antes desta lição, sabia muito pouco de Emma Goldman. Naquela hora de prédica militante, fiquei-a a conhecer por fora e por dentro. O catedrático narrou as peripécias revolucionárias da senhora, como ela foi uma andarilha em missão de evangelização revolucionária – Lituânia, França, Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra, os locais que hospedaram Emma Goldman e o seu frémito de inocular o gérmen da revolução bolchevique no ocidente. Havia emoção sentida nas palavras do palestrante. Por vezes, a voz escorria lânguida, ecoando um romantismo que fazia do catedrático alma sedenta por viagem ao passado, até aos anos em que Emma Goldman espalhou o seu activismo e educou as massas.
Sim, a história é penhora de abundante investigação científica. Haverá muito tempo passado ainda ausente das páginas lavradas pelo punho de historiadores. E, pela amostra, é grande a sedução pela revisitação das páginas marcadas por activistas bolcheviques. Só não percebi se o viés do tempo e da análise cegam o investigador, não o deixando olhar mais além, para além do lirismo com que encara os activismos revolucionários que depois tiveram catastróficas consequências. Estará entre os que se colocam na linha da frente contra os fantasmas consignados – globalização, capitalismo, “neoliberalismo”, atentados ao ambiente, consumismo, etc. Da sua retórica vêm gastas “liberdade” e “direitos humanos”. Esquece-se que o ícone de que fala com um embevecimento patético cultivou uma acção que negava liberdades e direitos humanos sempre que eles se punham à frente do objectivo da “revolução”.
Um pouco mais tarde, o necrófilo de Emma Goldman sentou-se num lugar próximo de mim. E enquanto escutávamos uma intervenção aborrecida sobre história dos Estados Unidos, o catedrático descalçou o sapato direito e começou a coçar o dedo grande do pé que espreitava por um buraco de generosas dimensões na ponta da meia azul. E assim ficou, a baloiçar o pé de um lado para o outro, mostrando o respiradouro do dedo maior que, com precisão cirúrgica, ostentava uma linha negra que debruava a extremidade da unha que já carecia de tesoura.
Percebi então: a ciência é terreno proibido aos metrossexuais da modernidade. A dedicação à ciência não se compadece com o culto do corpo nem com a desoneração da higiene. E vi ali ao meu lado um asceta da ciência. O necrófilo historiador que teria, como plano maior da vida, deitar-se ao lado da glorificada, mas morta, Emma Goldman.
Ao provar os sabores diferentes dos vários ramos da ciência, estilos que variam. Pessoas com tiques diferentes, semânticas nunca iguais, métodos que fogem da convergência e negam expressão ao acalmado, pelos teorizadores da conspiração “neoliberal”, “pensamento único”. Sobre os fragmentos de diferença, um traço comum a todos estes saberes: a bizarria que acompanha de perto a fauna que frequenta congressos internacionais. Diria que ser bizarro é, nos dias que correm, sinal de identificação de um professor universitário, ou de um investigador. O protótipo do cientista maluco corresponde ao participante médio nos congressos. Quem aparentar uma discreta normalidade sente-se peixe fora do aquário. Entre as exuberantes aparições de fauna saudosa do Maio de 68, estilo com crescente furor entre as camadas mais jovens, o pêndulo aponta para a anormalidade dos que destoarem do registo.
O congresso dos historiadores trouxe o inesperado: um número considerável de intervenções a teorizar o passado à volta de comunismo, das influências da União Soviética no partido trabalhista britânico na década de trinta, de como o neoliberalismo suplantou o movimento socialista a partir da década de setenta. Muitas pestanas queimadas, muitas leituras feitas, muitos arquivos vasculhados em demanda do socialismo, do comunismo, dos bolcheviques, com carradas de romantismo que perpassam desencanto pelo estado do mundo. Uma orfandade ideológica. Nunca pensava que fossem tão numerosas as comunicações remoendo o passado mal resolvido do comunismo – ou do “socialismo científico”, como eufemisticamente alguns insistem em usar.
O zénite estava reservado para o último dia, com a palestra, ao jeito de lição magistral, de um catedrático com ar de poeta louco. Dissertou longamente sobre Emma Goldman e a revolução bolchevique. Antes desta lição, sabia muito pouco de Emma Goldman. Naquela hora de prédica militante, fiquei-a a conhecer por fora e por dentro. O catedrático narrou as peripécias revolucionárias da senhora, como ela foi uma andarilha em missão de evangelização revolucionária – Lituânia, França, Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra, os locais que hospedaram Emma Goldman e o seu frémito de inocular o gérmen da revolução bolchevique no ocidente. Havia emoção sentida nas palavras do palestrante. Por vezes, a voz escorria lânguida, ecoando um romantismo que fazia do catedrático alma sedenta por viagem ao passado, até aos anos em que Emma Goldman espalhou o seu activismo e educou as massas.
Sim, a história é penhora de abundante investigação científica. Haverá muito tempo passado ainda ausente das páginas lavradas pelo punho de historiadores. E, pela amostra, é grande a sedução pela revisitação das páginas marcadas por activistas bolcheviques. Só não percebi se o viés do tempo e da análise cegam o investigador, não o deixando olhar mais além, para além do lirismo com que encara os activismos revolucionários que depois tiveram catastróficas consequências. Estará entre os que se colocam na linha da frente contra os fantasmas consignados – globalização, capitalismo, “neoliberalismo”, atentados ao ambiente, consumismo, etc. Da sua retórica vêm gastas “liberdade” e “direitos humanos”. Esquece-se que o ícone de que fala com um embevecimento patético cultivou uma acção que negava liberdades e direitos humanos sempre que eles se punham à frente do objectivo da “revolução”.
Um pouco mais tarde, o necrófilo de Emma Goldman sentou-se num lugar próximo de mim. E enquanto escutávamos uma intervenção aborrecida sobre história dos Estados Unidos, o catedrático descalçou o sapato direito e começou a coçar o dedo grande do pé que espreitava por um buraco de generosas dimensões na ponta da meia azul. E assim ficou, a baloiçar o pé de um lado para o outro, mostrando o respiradouro do dedo maior que, com precisão cirúrgica, ostentava uma linha negra que debruava a extremidade da unha que já carecia de tesoura.
Percebi então: a ciência é terreno proibido aos metrossexuais da modernidade. A dedicação à ciência não se compadece com o culto do corpo nem com a desoneração da higiene. E vi ali ao meu lado um asceta da ciência. O necrófilo historiador que teria, como plano maior da vida, deitar-se ao lado da glorificada, mas morta, Emma Goldman.
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