Não é pelos aniversários que vão ficando para trás. Nem pelos cabelos brancos que vão ganhando camada nas laterais. Não será pelas pessoas mais velhas que partem, elas sim definhadas pelo envelhecimento que se instalou, impossível de derrotar. Até acontece haver amigos de infância que vão sendo enterrados, exangues pela droga que os carcomeu até ao esqueleto. Os poucos da minha idade e que comigo conviveram, que entretanto voaram da vida, semeiam uma angústia condoída. É então que sinto, talvez pela primeira vez, como o tempo também se encaminha para o meu envelhecimento. A dura realidade instalada a cada instante, sedimentando o moroso envelhecimento.
Hoje, não é essa fonte de velhice que me traz ao tema. É a morte de um programa icónico da música alternativa, que já levava quase trinta anos de existência, com rebaptismos mas sempre com o mesmo traço inconfundível do divulgador: António Sérgio. Ainda sou do tempo – do já longínquo tempo – em que o “Som da frente” passava a meio da tarde na Rádio Comercial. Não consigo reprimir a nostalgia desses tempos. Do febril consumo da música independente que António Sérgio trazia até nós, com a sua lupa meticulosa, o dedo selectivo que sabia separar o trigo do joio na muita música que (adivinho) chegava até aos seus ouvidos.
Até me recordo de quando o programa sofreu o primeiro rebaptismo e mudou de horário. Passou a ser “A hora do lobo” e migrou para um horário bem entrado nas profundezas da madrugada. E de como alterei horários, adiando a hora do sono para continuar a educação musical de que António Sérgio era pedagogo maior. Lembro-me: estava no último ano da licenciatura. Havia dois dias da semana com aulas às oito da manhã e não adormecia antes de o programa terminar, já os ponteiros batiam nas três da madrugada. No dia seguinte, não sentia falta do sono. Diria que havia alimento para o espírito nas duas horas “do lobo” que davam alento para as aborrecidas aulas de um direito-de-qualquer-coisa que vinham cedo pela manhã.
Depois perdi o rasto aos programas sempre madrugada dentro de António Sérgio. Só esporadicamente, uma vez em viagem noite fora, outra vez em demanda noctívaga com os amigos, ia ao encontro do programa. Há algum tempo soube que António Sérgio foi convidado por uma editora a organizar uma colectânea que condensasse todos estes anos de divulgação de música independente. A colectânea herdou o nome mais emblemático de todos estes anos: “Som da frente”. Recentemente a sua voz inconfundível ecoava pela casa quando a cara-metade sintonizava a SIC. É a voz que anuncia, nos intervalos entre um programa e a publicidade, o genérico de mais uma telenovela brasileira. Ao início, estranhei a voz cavernosa de Sérgio a disparar pormenores de mais uma xaroposa trama que se embrulha em maldades e amores que só no fim se reconciliam com a bondade. Depois fui notando como a voz descrevia as tramas, deslizando num tapete de ironia que só os conhecedores da personalidade de Sérgio conseguiam discernir. Ou, pelo menos, assim me soava; talvez como pretexto para aceitar que Sérgio emprestava a voz para divulgar aquelas telenovelas embrulhadas num delicodoce papel de mediocridade.
Este texto não é um obituário de António Sérgio, que continua bem vivo. Talvez demasiado vivo, sem se entregar ao cansaço próprio da idade que se acumula em todos nós. Não me interessa que a sua voz seja o termómetro de uma das estações televisivas mais absurdas. Quem pode acusá-lo do que quer que seja? Perante os serviços inestimáveis que prestou no éter, tudo se lhe desculpa. Aliás, nem é isso que está em causa. É do obituário do seu programa que se trata, assassinado a sangue frio pelo juvenil director da Rádio Comercial. Sim, o rapazote terá sido apenas testa-de-ferro dos espanhóis socialistas que controlam a Rádio Comercial. A música independente é um subproduto para uma rádio que cada vez mais faz jus ao adjectivo que coroa o seu nome. Ao que consta, sobrava um escasso reduto de incondicionais a sintonizar nas altas horas da madrugada o programa de António Sérgio. Numa rádio tão comercial, não há lugar ao direito à diferença – que, se bem recordo, era slogan distintivo do “Som da frente”.
Que interessam as lágrimas de crocodilo do rapazote que dirige aquela estação? Soubemos que se diz “amigo” de António Sérgio. Honra lhe seja feita: amizade não confunde com profissionalismo. Só que escusava de se desdobrar em escusas frívolas para justificar o assassinato do programa. Há alturas em que as palavras, mesmo as que soam a esforçadas desculpas, são ensurdecedoras deambulações pela indigência. Até isso nem interessa, que os livros da história não albergam sequer um rodapé para os medíocres. As figuras gigantes que souberam tecer, discretamente, o seu caminho, essas têm lugar garantido. António Sérgio até pode concluir que cumpriu a sua missão. E recusar a migração do programa para outra estação. Será um direito que lhe temos que reconhecer. Pelos serviços prestados em todos estes anos. E porque a ingratidão, a pesporrência, a ignorância deixam marcas indeléveis. Sérgio deixou a sua, construtiva. E isso não se apaga, nem que mil directores de rádios comerciais a soldo da incultura o queiram.
Hoje, não é essa fonte de velhice que me traz ao tema. É a morte de um programa icónico da música alternativa, que já levava quase trinta anos de existência, com rebaptismos mas sempre com o mesmo traço inconfundível do divulgador: António Sérgio. Ainda sou do tempo – do já longínquo tempo – em que o “Som da frente” passava a meio da tarde na Rádio Comercial. Não consigo reprimir a nostalgia desses tempos. Do febril consumo da música independente que António Sérgio trazia até nós, com a sua lupa meticulosa, o dedo selectivo que sabia separar o trigo do joio na muita música que (adivinho) chegava até aos seus ouvidos.
Até me recordo de quando o programa sofreu o primeiro rebaptismo e mudou de horário. Passou a ser “A hora do lobo” e migrou para um horário bem entrado nas profundezas da madrugada. E de como alterei horários, adiando a hora do sono para continuar a educação musical de que António Sérgio era pedagogo maior. Lembro-me: estava no último ano da licenciatura. Havia dois dias da semana com aulas às oito da manhã e não adormecia antes de o programa terminar, já os ponteiros batiam nas três da madrugada. No dia seguinte, não sentia falta do sono. Diria que havia alimento para o espírito nas duas horas “do lobo” que davam alento para as aborrecidas aulas de um direito-de-qualquer-coisa que vinham cedo pela manhã.
Depois perdi o rasto aos programas sempre madrugada dentro de António Sérgio. Só esporadicamente, uma vez em viagem noite fora, outra vez em demanda noctívaga com os amigos, ia ao encontro do programa. Há algum tempo soube que António Sérgio foi convidado por uma editora a organizar uma colectânea que condensasse todos estes anos de divulgação de música independente. A colectânea herdou o nome mais emblemático de todos estes anos: “Som da frente”. Recentemente a sua voz inconfundível ecoava pela casa quando a cara-metade sintonizava a SIC. É a voz que anuncia, nos intervalos entre um programa e a publicidade, o genérico de mais uma telenovela brasileira. Ao início, estranhei a voz cavernosa de Sérgio a disparar pormenores de mais uma xaroposa trama que se embrulha em maldades e amores que só no fim se reconciliam com a bondade. Depois fui notando como a voz descrevia as tramas, deslizando num tapete de ironia que só os conhecedores da personalidade de Sérgio conseguiam discernir. Ou, pelo menos, assim me soava; talvez como pretexto para aceitar que Sérgio emprestava a voz para divulgar aquelas telenovelas embrulhadas num delicodoce papel de mediocridade.
Este texto não é um obituário de António Sérgio, que continua bem vivo. Talvez demasiado vivo, sem se entregar ao cansaço próprio da idade que se acumula em todos nós. Não me interessa que a sua voz seja o termómetro de uma das estações televisivas mais absurdas. Quem pode acusá-lo do que quer que seja? Perante os serviços inestimáveis que prestou no éter, tudo se lhe desculpa. Aliás, nem é isso que está em causa. É do obituário do seu programa que se trata, assassinado a sangue frio pelo juvenil director da Rádio Comercial. Sim, o rapazote terá sido apenas testa-de-ferro dos espanhóis socialistas que controlam a Rádio Comercial. A música independente é um subproduto para uma rádio que cada vez mais faz jus ao adjectivo que coroa o seu nome. Ao que consta, sobrava um escasso reduto de incondicionais a sintonizar nas altas horas da madrugada o programa de António Sérgio. Numa rádio tão comercial, não há lugar ao direito à diferença – que, se bem recordo, era slogan distintivo do “Som da frente”.
Que interessam as lágrimas de crocodilo do rapazote que dirige aquela estação? Soubemos que se diz “amigo” de António Sérgio. Honra lhe seja feita: amizade não confunde com profissionalismo. Só que escusava de se desdobrar em escusas frívolas para justificar o assassinato do programa. Há alturas em que as palavras, mesmo as que soam a esforçadas desculpas, são ensurdecedoras deambulações pela indigência. Até isso nem interessa, que os livros da história não albergam sequer um rodapé para os medíocres. As figuras gigantes que souberam tecer, discretamente, o seu caminho, essas têm lugar garantido. António Sérgio até pode concluir que cumpriu a sua missão. E recusar a migração do programa para outra estação. Será um direito que lhe temos que reconhecer. Pelos serviços prestados em todos estes anos. E porque a ingratidão, a pesporrência, a ignorância deixam marcas indeléveis. Sérgio deixou a sua, construtiva. E isso não se apaga, nem que mil directores de rádios comerciais a soldo da incultura o queiram.
2 comentários:
No contexto actual de rádio em Portugal, julgo que o GRANDE António Sérgio deveria ter lugar cativo em duas estações: a Antena3 num espaço do éter que hoje é semelhante entre as 21.00h e 22.00h e também na minha rádio favorita quando estou na Mourolândia, a Radar (97,8 FM).
Experimenta a Oxigénio, 102,6
ABS
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