12.9.07

Os lobos uivam (o hino)


Por estes dias, anda metade da nação excitada como o arrebatamento dos bravos jogadores da selecção nacional de rugby. Impossibilitadas as façanhas desportivas – que a cabazada com a Escócia até foi um bom resultado, pois não perdemos por mais de sessenta! – sobram outros fragmentos que desfraldam o orgulho de sermos nacionais da pátria lusa. A forma como entoaram o hino nacional foi o exemplo, tem sido dito com abundância. Do lado contrário, algumas esquerdas incomodadas com a exibição de orgulho pátrio dos lobos uivantes. Mais tarde irei a estas esquerdas e ao lamentável preconceito que exalam ao comentarem o episódio.

Não me entusiasmam as imagens de atletas nacionais que chegam ao lugar mais alto do pódio em competições mediáticas. Não fico comovido com a bandeira hasteada e os acordes do hino trinados bem alto, enquanto o olhar do atleta fica perdido no horizonte. Há quem se arrepie só de recordar estas imagens. Quem fique toldado pela emoção quando a turba reunida num estádio de futebol canta a uma só voz o hino do país, sem alguma vez ter interrogado se as estrofes fazem sentido. Bem sei que se trata de um símbolo e que a vida é toda ela muito achacada a simbologias. Que as identidades procuram refúgio em símbolos, falando a sua linguagem através dos ícones escolhidos. Os símbolos – todos os símbolos – andam sobrevalorizados. Não passam de símbolos, imateriais, a vacuidade que enche o imaginário de multidões. E depois há o elucidário oficial: os símbolos cimentam as pertenças. Não se questionam, portanto. Sem que haja percepção disso, entraram no restrito lugar dos dogmas.

Convém lavrar um esclarecimento: o meu respeito total pelos que não conseguiram reprimir o arrepio da pele ao verem os lobos a uivarem o hino nacional. Para além do respeito, o registo pessoal da dissonante reacção. Haverá quem fique ofendido se disser que ao ver o arrebatamento dos jogadores de rugby na entoação do hino pensei com os meus botões: “patético”. Será porventura excessivo dizê-lo. Arrisco até críticas furiosas de nacionalistas empenhados, por desrespeito de um símbolo nacional. A desidentificação que se apoderou de mim faz o resto. E, lá está, a retórica inócua dos símbolos não me mobiliza para causa nenhuma.

Hão-de ficar emolduradas para os anais das exibições de exaltado nacionalismo as imagens dos bravos paquidermes abraçados, cantando o hino aos gritos, expressões faciais de arrebatado sentimento. Não faltou muito para sermos testemunhas de homens de barba rija, exemplares garbosos da marialva espécie que jamais chora, a libertar umas lágrimas de emoção. Alguém haveria de perguntar se muito daquele sentimento não seria antes brio pessoal, porque foram capazes de um feito desportivo nunca alcançado. O que falou mais alto foi a necessidade de colocar a pátria no púlpito, como se esse fosse o caminho exigível para que cada indivíduo não seja um lobo isolado, sem alcateia para conviver. Ou como se todos estivéssemos empenhados à nação – empenhados com o significado de alguém que se ofereceu como penhor.

Se a reacção dos zelosos guardiães dos símbolos nacionais parece despropositada, do outro lado da barricada soltaram-se alguns uivos não menos patéticos. Algumas esquerdas doeram-se da bravura dos lobos e do enternecimento dos que escreveram palavras de admiração. O problema destas esquerdas não está em desvalorizarem o hino cantado com tanta comoção. Nisso coincidimos (e alguma vez haveria de traçar uma tangente com as esquerdas…). Algures a meio da argumentação, lá vem a confissão do que os leva a rejeitar o “feito” dos jogadores de rugby: é que por ali anda muita gente da linha de Cascais, muita gente dada às touradas e a outras coisas “elitistas” que as esquerdas gozam com desplante. Se no rugby não houvesse tantos “Franciscos, Vicentes e Uvas”, e se a rapaziada não tivesse cantado o hino com tanto entusiasmo (e, heresia fatal, um deles levou a mão direita ao coração enquanto o fazia), talvez o preconceito acabasse por não falar tão alto.

É o que tanto me atrai nestas esquerdas matarruanas: encomiasticamente, consideram-se campeãs da tolerância, acham-se imunes ao vírus do preconceito. Acusam a direita trauliteira de serem tudo aquilo que elas acham que não são. Quando o chinelo escorrega e o preconceito e a intolerância vêm ao de cima, sobra a retórica que não casa com a prática. É que ao menos a direita trauliteira, por execranda que seja, não esconde que o é (trauliteira) nem abafa os preconceitos que a conduzem. Estas direitas e estas esquerdas foram feitas umas para as outras. Merecem-se.

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