27.2.09

A senhora da DREN, ou “no melhor pano cai a nódoa”


Que se há-de fazer, se a senhora directora da DREN se põe a jeito do escarnecimento? Já não é a primeira vez que dá a conhecer a sua prosa de fina água – se a água fosse fina pelos sucessivos atropelos às regras da gramática, à sintaxe, até à ortografia. Os ofícios que vêm redigidos pelo punho autoritário da senhora já pertencem ao património genético do mau escrever português. Desta vez, porventura por estar abespinhada pela rebeldia de uma escola lá para os confins do Alto Minho, soltou-se-lhe mais um naco de prosa que é exemplar na reinvenção das regras gramaticais e de sintaxe. Ou exemplar de quem tudo dá a mais não é obrigado.


É que ela põe-se mesmo a jeito. Como se põem a jeito da chacota todas as criaturas que passeiam a pesporrência que se confunde com a interior embriaguez de quem ostenta poder. Ai, o poder, como inebria! O poder, confundido como autoritarismo. Esta senhora é daquelas a quem a palavra democracia não passa de uma doce ilusão que se dilui na atmosfera assim que se solta da sua boca. A senhora já prestou provas públicas, e abundantes, de não saber o significado de tolerância quando lhe surgem pela frente adversários ou gente que tem a ousadia de discordar dela. Criaturas assim merecem a humilhação quando são apanhadas em contramão.


O pior é esta ser uma terra onde os poderosos jazem no solo da mediocridade baixia, da mediocridade de onde não se conseguem erguer. São estes os que mandam. Talvez à imagem do povo que tem os votos na mão. Sem surpresa, portanto.


O pior de tudo é esta ser uma terra onde os que adoram possuir o poder não são responsabilizados pelos actos que cometem. Os poderosos – significando os que detêm o poder – não têm que dar o exemplo. Persistem no mau exemplo sem serem penalizados. Erram, flagrantemente, e nada lhes acontece. Na inversão de tudo o que aprendemos a ser normalidade: pois se a mediocridade e a incompetência não são sancionadas, logo esses "atributos" acabam por ser premiados. Um dia destes, isto terá passado a ter a têmpera de normalidade.


Vem isto a propósito do seguinte: então a senhora directora da DREN não tutela os professores da região norte? E, aos professores, não se exige excelência na hora de fazerem aquilo que deles de espera, que é ensinar? Aceitar-se-ia que um professor, mesmo que não seja de português, escorregasse para o chinelo ao maltratar a língua nativa sempre que escrevesse um texto destinado aos alunos? Ficava bem um texto do professor ser corrigido por um aluno, fosse por um aluno acima da média capacitado para denunciar os erros de sintaxe e de ortografia, fosse por um aluno a isso instruído pelos progenitores? Vamos dar a volta à hierarquia: se aos professores não se desculpam as escorregadelas no uso da língua, serão elas de aceitar na senhora que dirige os professores?


Se esta terra fosse normal, se já estivesse na maioridade democrática e ainda não definhasse nos vestígios salazarentos, alguém acima da senhora directora da DREN já a tinha aconselhado a pedir a demissão. É que, usando o adágio popular, se é certo que "no melhor pano cai a nódoa", aqui mais parece que o pano é de fraco jaez e a nódoa é a senhora directora da DREN. Contudo, o que prossegue é a normalidade dos brandos costumes que convivem tão bem com a mediocridade e as exibições de ineptidão. Especula-se por aí que esta senhora está na calha para suceder à actual ministra da educação. Pensando bem, não haveria nisso qualquer laivo de surpresa.


Se, por acaso, a senhora que tanto se atrapalha com a língua fosse a ministra, o timoneiro da pátria devia-lhe atribuir um assessor linguista, a tempo inteiro. Para que a prosa magnífica da então senhora ministra, a prosa que saísse em forma de ofício determinando as ordens aos subalternos, passasse pelo crivo do linguista para expurgar os crimes à língua portuguesa que a senhora está habituada a cometer. Já que a nódoa teria o prémio maior pela sua incompetência, ao menos que não andasse a passear a sua mediocridade através dos textos selados pelo seu autoritário punho. O pano, esse, pelo menos aparentava decência.


E, daí, talvez fosse má ideia: tiravam-nos o prazer de quem se delicia com os acidentes de percurso com a língua portuguesa.

26.2.09

A tralha dos barões assinalados


Barões, duques e viscondes. Ufanos, passeiam a sua estirpe. Lá de cima, onde a altivez os deixa a olhar os que vegetam cá por baixo, a ralé indiferenciada. Os barões, duques e viscondes de agora ainda respiram o ar ancestral dos seus antepassados. É como se o mundo nunca tivesse mudado. Os barões, duques e viscondes cristalizam as coisas na sua inércia. Emblemas maiores do que é anacrónico.


Há-os por todo o lado. O garbo, ostentam-no nos sítios onde a monarquia persiste. É aí o seu habitat natural. Onde conseguem arregimentar um numeroso exército de seguidores, mesmo entre o povo anónimo que não percebe a vassalagem que é convidado a prestar. Como se ainda fosse obrigatório ajoelhar-se à passagem das excelências que os vergam à sua insignificância perante os nobiliárquicos títulos que envergam. O baronato de farpela chique desliza num cenário com pós de perlimpimpim que anestesiam a turba, enfeitiçada pelo vago odor de conto de fadas em que barões e baronesas, duques e duquesas, viscondes e viscondessas tremeluzem. Dir-se-ia, um microcosmo muito particular, um mundo faz-de-conta, pontuado pela presença de barões, duques e viscondes que possuem sempre um "je ne sais quoi pas" que os distingue da turba restante.


Como é bela a nobreza. E como é execrável a nobreza. Aos vê-los, onde teima a monarquia e nas repúblicas onde uns vagabundos que se fazem passar por nobres aspiram ao sonho de depor a república e habilitar o regresso à monarquia, ao vê-los na prosápia da presumida superioridade herdada pelos imbeliscáveis pergaminhos, uma indomável pulsão de alistamento numa esquerda qualquer. Não é que seja devoto da falaz igualdade pregada por pitonisas de esquerdas, ainda tributárias do derreado ideal da revolução francesa quando deificam a igualdade e deixam para segundas núpcias a liberdade. Não somos iguais. Pior é a entorse contemporânea do princípio, que faz de uns mais iguais que os outros. Os barões, duques e viscondes insistem em ser mais iguais do que os demais. Invocam um qualquer preceito divino, ou agarram-se à tábua de salvação do direito natural – o espantoso argumento do "porque sim" –, para afirmarem os privilégios de casta que chamam a si.


Pois é de uma casta que se fala quando a nobreza vaidosa desfila lá do alto do pedestal onde os demais têm acesso vedado. Há quem condescenda, arreigadas as convicções do tradicionalismo. São os que admitem a existência de barões, duques e viscondes porque reproduzem um costume antigo, e os costumes antigos não devem ser aniquilados. É este conservadorismo que nos condena ao ostracismo da mediocridade. Não passamos da cepa torta enquanto formos coniventes com esta forma de pensar. Todavia, não há a sugestão de proibir, à força de decreto, barões, duques e viscondes de o serem. É terapêutico vê-los passar no palco das vaidades inanes. Provoca um efeito circense.


Mudança de melodia. Ontem, pela primeira vez, pomposo anúncio televisivo das comemorações do centenário da república. Pela memória desfilam os vultos, eminentes vultos, que emprestam distinta presença aos festejos dos cem anos de república. Descontando a parafernália de usos e vocabulário, custa distinguir nobres que ostentam a linhagem das famílias brasonadas destes senadores que caucionam o bom nome da república. São, à sua maneira, barões, duques e viscondes. Talvez ainda de pior estirpe: na sua boca e no seu pensamento, o valor da igualdade é um esteio e, no entanto, não evitam uma pesporrência que os coloca num altar a que só pertencem os que se julgam mais iguais que os demais.


Longa vida aos barões, duques e viscondes – os adoradores de monarquias que já deviam ter perdido o rasto ao tempo, e dos outros que transformaram as cansativas repúblicas numa deificada coisa, afinal tão próxima das monarquias e das linhagens superiores que diziam combater. Longa vida, que barões, duques e viscondes destas igualhas fazem falta para o hábito da sátira não cair em desuso.

25.2.09

Estes dias de puritanismo


Em vésperas de carnaval, um boneco do corso de Torres Vedras esteve para ser censurado pela justiça por alegações de pornografia. Parodiava o computador portátil Magalhães, reproduzindo imagens de mulheres nuas. Há um par de dias, a PSP de Braga apreendeu um livro. A capa retratava o famoso quadro "A origem do mundo" de Gustave Courbet – um grande plano de uma vagina. A polícia decidiu actuar preventivamente. Disse o porta-voz de serviço, para evitar a perturbação da ordem pública.


Há males que vêm por bem. Logo a seguir levantou-se tamanho pé-de-vento contra a actividade censória que depressa os censores recuaram nas suas intenções. É lamentável que haja quem se ofenda com tão pouco, os bons costumes embrulhados numa moralidade que exala uma dor pestilenta quando um corpo aparece despido. O pé-de-vento teve o condão de mostrar que afinal há um activismo cívico provando que esta não é uma sociedade adormecida. Ao menos isso.


Valha a verdade, em Torres Vedras a história foi mal contada. Houve quem logo tecesse as pontas entre a censura ditada pela zelosa e possivelmente ingénua delegada do ministério público e um governo que se desmultiplica em provas de intolerância quando toca a conviver com a crítica. Houve quem visse no acto uma interferência do poder político no poder judicial. Era o que mais faltava, nestes tempos em que o ministro da propaganda, o ideólogo do regime, se gaba de "malhar na direita" como sua vocação lúdica, estes tempos de ditadura democrática alimentada por gente que confunde maioria absoluta com autoritarismo, vermos como um esteio do Estado de direito (a separação de poderes) estava a ser hipotecado.


Manda a honestidade intelectual que não se façam acusações infundadas. Desta vez, o governo intolerante não exerceu a sua contumaz intolerância. O motejo ao sagrado Magalhães não foi o pretexto para a intromissão do ministro da propaganda na justiça. Tudo partiu da denúncia de um ofendido cidadão, arrepiado ao ver imagens de mulheres nuas no boneco que satirizava o Magalhães. Para compor o ramalhete, uma ingénua delegada do ministério público confundiu imagens do corpo feminino desnudado com pornografia. Fez lembrar, aqui há anos, um bispo de Braga que confessou, tão ingenuamente como a magistrada de Torres Vedras, que tinha aprendido mais com o filme "O império dos sentidos" de Akira Kurosawa do que no resto da sua já então longa vida. Pudera!


(De regresso à denúncia do cidadão de Torres Vedras, sempre se podia especular: seria militante do PS? Estaria o serviço encomendado pelo ministro da propaganda, por certo abespinhado por alguém ousar fazer sátira com essa maravilha do regime, o Magalhães?)


Em Braga (helás!), a polícia de segurança pública (aprece por extenso intencionalmente) foi a uma livraria apreender um livro só porque a capa mostrava uma vagina em grande plano. Soube-se mais tarde, a PSP actuou depois de ter recebido uma queixa de uma associação qualquer de pais. A dita associação receava que os petizes estacionassem na livraria, diante do livro em causa, excitados por verem aquilo que nunca terão visto na vida. Das duas, uma: ou os pressurosos progenitores acreditam que os petizes nunca viram uma vagina nua e temiam que as hormonas em estado febril prendessem os filhinhos à livraria num cortejo de tristes figuras (ainda por cima estavam de férias escolares), ou desconhecem que a criançada tem acesso a coisas muito mais pornográficas na Internet (já ouviram falar, da Internet?). Há a terceira hipótese: que os paizinhos da bendita associação acreditem mesmo que o quadro de Courbel seja pornografia.


Do conservadorismo anacrónico não nos livramos. O conservadorismo que exala uma mesquinhez mental, que faz desta terra uma terra muito pequenina. Os costumes tomados pelo catolicismo empedernido fazem o resto. É gente que tem problemas com corpos nus. Gente que acredita na fábula de Adão e Eva por efeito da maça maldosamente oferecida pela serpente – é uma fábula, não é? Desconfio que quem tem tantos problemas com imagens de corpos nus vive aprisionado numa tara qualquer. O que é preciso, para nos libertarmos do espartilho dos quadros mentais amordaçados pelos costumes vigiados por padres, bispos, arcebispos e acólitos, é de muita pornografia. Pornografia a sério, não inocentes imagens de corpos nus que só trazem "maus pensamentos" (pedindo emprestada a retórica dos padres que patrulham os costumes) a quem está doente da cabeça.

24.2.09

Os esqueletos e o armário


Dizias: todos temos um armário com esqueletos. Os fantasmas que adejam na lúcida memória. Uns, com armários pejados de esqueletos. Outros com sapiência para amealhar um punhado apenas. Insistias, sem revelar os teus pessoais esqueletos – nem disso curava de saber –, em cavar nas profundezas do armário que teimavas em me atribuir. Em vez de matar à nascença a intrusão, dei folga ao exercício. Só para caucionar a ousadia.


Teorizavas com os esqueletos que descobriras nos esconsos armários de outros. Que deixaram de ser esconsos depois da diligente inspecção que fizeras. Era um tonitruante garbo, essa prosápia de detective privado a patinhar nas costas da vida dos outros. Eras detective por lúdica deriva, detective para auto-comprazimento. Ainda por cima, os outros não eram outros quaisquer. Eram-te queridos. A traição maior era quereres açambarcar os outros que foram vítimas às mãos da tua curiosidade doentia.


Ao que dizes, só apanhaste gente fraca. Gente que dava o flanco quando entravas nos seus armários sem pedir licença. Nem sei se era gente fraca, ou apenas gente boquiaberta pela ousadia da invasão, gente sem sequer conseguir esboçar uma reacção que fosse. Enquanto se detinham nessa inércia, colonizavas a sua vontade. Colonizavas a sua vida no trajecto que nunca te poderia pertencer (se é que algum dia uma vida transborda para a posse de outrem). À minha pergunta ("não te incomodava a intrusão em fragmentos da intimidade que não eram teus") retorquias: que só eras capaz de te entregar se conhecesses a outra pessoa e os segredos que o deixariam de ser.


Comecei a discordar do método e fui adiando as respostas ao interrogatório que sondava os meus fantasmas não segredáveis. Foi quando as águas se soltaram do leito. Ao início só espumavam impaciência. Depois galgaram para além da impaciência, numa fúria assustadora. Sentias que queria resguardar os meus fantasmas lá no sítio onde os tinha escondido. Nem quando transpiravas alguma raiva por veres trancadas as portas dos meus armários me sobressaltei. Queria ver até onde levava a sórdida curiosidade.


Consegui domar o palco das interrogações. Terás entendido as minhas perguntas como a oportunidade para descair numa aparente fraqueza. Como se fosse imperativo ir lá a baixo para, sem contar, disparares o golpe certeiro quando menos esperasse, para então as rédeas serem tuas outra vez. Quis saber o que fizeram os outros ao darem conta que os seus fantasmas deixaram de ser coutada individual, quando, de tanto porfiar, conseguiste entrar no armário e violar o dever de reserva. Não percebeste a intenção. Entregaste-te a palavras que só eram uma dilação da resposta que, a ser dada, ia saciar a minha curiosidade. Era como se os papéis se invertessem. Sem querer ser penhor dos esqueletos do teu passado. Não queria saber dos teus armários nem se eles sepultavam esqueletos.


Tudo o que queria era saber da reacção de quem pereceu vítima aos pés da maquinal curiosidade que te guiou até ao escondido local dos seus esqueletos. Tinham ficado enraivecidos com o azedume da traição? Ou ficaram atónitos, perplexos na inerte reacção, como se a revelação dos esqueletos fizesse cair a cortina que resguardava a sua intimidade? Ou inertes por temor, por saberem que os segredos que pertenciam à intimidade eram doravante património comum? Tementes de ti, por se saberem agora teus reféns?


A tua perícia desenganou-me. Nunca o soube, porque nunca quiseste responder às perguntas que te fazia. Perdias-te em rodeios, ladeavas a minha terapêutica bisbilhotice. Porventura a tua imensa inteligência sussurrava ao ouvido: se me desses as respostas que queria, soçobravas na armadilha que tinha colocado só para ti. Foram as perguntas que nunca tiveram resposta.


O mais que me disseste? Ao tomares conhecimento dos esqueletos dos outros, deixaram de ser-te queridos. De mim nunca terias esse desgosto.

23.2.09

Diz o fundamentalista do ambiente: deviam proibir o carnaval


É o restolho da folia carnavalesca. Pelo chão, um montão de serpentinas e confettis em estado cadavérico. À espera da decomposição que tarda, ou que venham os homens do lixo, em horas extraordinárias, recolher as sobras da folgança. Nem é a sujidade espalhada pelas ruas que aflige o exército de vigilantes do ambiente. É pensar nas resmas de papel gastas para produzir as serpentinas e confettis, é pensar nas árvores abatidas para a populaça engatilhar na galhofa carnavalesca.


É inquietante que a seita que zela pela protecção do meio ambiente ainda não tenha protestado contra o carnaval. Não acredito que sejam adoradores dos corsos de carnaval, que a estética por onde militam não costuma sorrir para a estética típica da folia carnavalesca. Será apenas distracção? Será, afinal, que os sacerdotes do meio ambiente não são tão infalíveis, como gostam de se apresentar, na batalha pela preservação do ambiente e deixaram escapar o carnaval como atentado gritante ao ambiente que eles sacralizam?


Neste tempo de proibições fáceis, este podia ser o mote ideal para mais uma. A turba devia inclinar-se perante os imperativos que perfumam os horizontes. O que está na moda, sabemo-lo tão bem, é o ambientalismo. Se o carnaval fosse denunciado como culpado de um crime ambiental hediondo – por decepar a vida de sabe-se lá quantas árvores, pelas tintas tóxicas que vão impregnar de cor os confettis e as serpentinas, pela abundância de lixo a esvoaçar pelas cidades no rescaldo dos corsos e da zoeira das crianças encafuadas nos disfarces de carnaval – a populaça haveria de ser convencida a deixar de festejar o carnaval. Nem que fosse pela força de uma proibição entoada por lei.


Podia haver quem protestasse contra a proibição. Atentado às tradições estabelecidas, diriam. Outros, menos sensíveis à problemática ambiental, gritariam contra o atropelo do que devia ser o constitucional direito do povo foliar. A luz acende-se: a militância do fundamentalismo ecológico faz-se muito à esquerda, mesmo à extrema-esquerda. Ora, destas franjas espera-se doutrina amigável do povo. O mesmo povo que por estes dias de crise tão funda anda carente de entretenimento, mais ainda do que em tempos de acalmia. Eis o dilema dos sacerdotes do ambiente: entre a causa ambientalista que os levaria a aconselhar a proibição do carnaval e outra militância sagrada, nem que seja por oportunismo, a aliança com o povo.


Tenho que admitir a admiração por estas esquerdas radicais. Como eles prescindem das preferências individuais, levados à resignação diante dos imperativos das causas que dizem defender. No conflito entre causas, sufocam a que gostariam de fazer vingar (o ambiente) porque a outra traduz o oportunista clamor que é a voz que se faz ouvir (não ofender os interesses do povo). Pela estética carnavalesca (ou, dir-se-ia melhor, pela sua anti-estética), a gente que frequenta a paisagem da extrema-esquerda teria mais um motivo para se atiçar contra o carnaval. Entre os dois imperativos que chocam de frente, à extrema-esquerda sobra o dever irrecusável de ser porta-voz dos interesses da populaça oprimida pelo grande capital. A populaça encontra nos desfiles de carnaval uma válvula de escape contra as opressões diárias da sociedade do consumo. Abra-se uma excepção que admite um atentado ao meio ambiente. O ambientalismo sabe ter um rosto humano.


Estas esquerdas chiques e menos chiques que se julgam activistas únicas do ambientalismo são acometidas por um mal esquizofrénico. Aos dias ímpares são mentoras do ambientalismo que ninguém (imperativo categórico tão típico delas) pode recusar. Aos dias pares esquecem-se da adoração ambiental para se investirem na condição de supremas defensoras dos interesses do povo. Mesmo que nessa condição tenham que fazer tábua rasa da veia ecológica, pois aos dias pares essa veia é estancada pelo garrote do oportunismo.


Os ingénuos que abram os olhos. Os sacerdotes do ambientalismo são um embuste. Não deviam estar na linha da frente contra a poluição e os atentados cometidos contra a natureza? Como explicam o seu comprometedor silêncio ao fazerem de conta que não existe carnaval? Não contam as muitas árvores abatidas para que as fábricas de celulose produzam a matéria-prima para os confettis e serpentinas que vão encharcar as ruas de poluição? Aquela gente, sempre tão senhora das suas certezas estéticas, não se pronuncia sobre a poluição visual que desfila a rodos nos corsos carnavalescos?

20.2.09

O beijo proibido


Não são os afectos o derradeiro vestígio a impedir a mecanização das pessoas? Não há, num beijo, num singelo beijo que seja, um sentimento transmitido numa fracção de segundos, que palavra alguma conseguiria sintetizar no mesmo lapso de tempo?


Numa muito movimentada estação de comboios, Warrington Bank Quay, em Cheshire (Inglaterra), os viajantes estão proibidos de se demorarem em lânguidas despedidas com troca de beijos. O burocrata de serviço que selou a medida que congela os afectos tratou de arranjar um pretexto. Os utentes habituados a vagarosas despedidas, aqueles que trocam um e mais outro beijo como se estivessem a adivinhar que jamais o fariam, incomodavam o funcionamento da estação ferroviária. Ficavam ali, inertes até ao penúltimo segundo antes de o comboio iniciar a marcha, agarrados um ao outro, na consumição antecipada das saudades que os iriam moer até às entranhas, alheios ao bulício da estação. Perturbando os outros passageiros, os que não estavam ali para inúteis despedidas. A agitada estação não se compadece com as angústias dos que vão ficar apartados da pessoa amada.


Altura para o pessoal preconceito contra a insidiosa internacional socialista que se insinua a cada dia que passa, estendendo o cobertor das proibições até à ridicularia. Para que todos percebamos que a figura tutelar do Estado por eles comandada não perde de vista a regulação até do ar que respiramos, caso seja necessário. Gabam-se, os socialistas do mundo inteiro, de serem os penhores maiores dos valores sociais, de serem zelosos guardiães da ideologia com o rosto mais humano de todas as ideologias. A presunção só qualifica quem dela exagera. Que interessa rebater, com ideias, a auto-reivindicação vaidosa da internacional socialista? Os factos estão aí, gritam bem alto a negação do catecismo que os ilusionistas do socialismo tentam vender aos incautos.


Esta é a sublime incoerência: o que dizer do "socialismo de rosto humano", do socialismo campeão das políticas humanizadas, quando um pequenino beleguim da internacional socialista tirou da cartola da mesquinhez a proibição de um acto tão singelo e tão significativo como um ósculo de despedida? Onde está o rosto humano de quem decreta a proibição dos afectos? O poder inebria. Fazendo vingar um tecnocrático argumento: vale mais a fluidez das plataformas da estação ferroviária do que os beijos dos amantes em pungente despedida. Um burocrata sem freio a matar qualquer esboço de beijo de despedida é gente desqualificada. Imagino a criatura a passear-se pelo espaço da estação, altiva, toda contente ao ver como as pessoas circulam sem o estorvo dos que se demoravam em beijos de adeus.


Dirão alguns que são os sinais de um tempo novo. Que temos que nos acostumar às novas melodias compostas pelos engenheiros sociais que transformam, com a sua mágica batuta, o percurso do tempo. Estes gratuitos exercícios de poder, que em nada se distinguem do abominável autoritarismo, espalham o cansaço do mundo. Depois, há remendos que só pioram o estado comatoso de tudo isto: num acesso de lucidez, o burocrata lembrou-se de criar uma área fora da estação onde os viajantes já em plena consumição das saudades podem trocar os beijos que quiserem, o tempo que quiserem, até perderem os comboios que não esperam pela consumação dos beijos. Faz lembrar os espaços para fumadores. Jaulas onde se envenenam de nicotina, para gáudio da turba que os observa do exterior, tal como se estivessem a ver feras enjauladas num jardim zoológico. Teremos, em Warrington Bank Quay, um cortejo de voyeurs a saciar-se com os beijos dos viajantes acantonados na área destinada aos beijos?


Ainda por cima, tudo isto se passa numa terra que cultiva a frieza do trato. Parece que as pessoas têm peçonha. No dia-a-dia, os cumprimentos restringem-se ao modo verbal. Sem apertos de mão, muito menos beijos em senhoras, que isso é uma ultrajante invasão da intimidade. Não era suficiente o gélido trato a que estão habituados, aparece agora um diligente socialista a colocar mais gelo no que já atravessava negativas temperaturas.


Que novas proibições doravante, só para os sacerdotes da nova moralidade rangerem os dentes de prazer? Quando chegará o dia em que regulamentos ou leis entram nas nossas casas a vasculhar os hábitos mais íntimos, a domá-los, a dizer o que se pode e não pode fazer? Nem que deixe o metódico pessimismo em temporário descanso, só consigo pressagiar que se trata de uma questão de tempo. Os tratantes socialistas terão o prazer de inventar essas, e quantas mais se imaginem, proibições.

19.2.09

O resgate do nacionalismo económico


Sabem o que são baratas tontas – e por que são tontas quando são usadas como metáfora? São as frouxas lideranças pelo mundo fora, depois do choque frontal com a impiedosa crise. Políticos desnorteados, afogueados pela espiral de acontecimentos que amplifica a crise e afunda a economia num poço a que já se não vê o fundo. Ao início, acreditaram quase em uníssono que iam buscar a receita milagrosa às catacumbas da memória. História económica a debitar lições. Ontem como hoje, na depressão da década de trinta como agora, para o grande mal a presciência das soluções ensinadas por Keynes.


Agora começam a ficar desesperados. E nem os outrora "neo-liberais" (o que quer que o chavão signifique) convertidos ao credo keynesiano, que entretanto selaram propostas impensáveis (nacionalização temporária de bancos e todo um receituário que andaram anos a fio a negar – muito défice orçamental, o milagre para retirar a economia da crise), nem eles se salvam da perturbação geral. Uns poucos escapam ao embaraço da perda de referências, diga-se: os "economistas heterodoxos", de tanto tempo a remar contra a maré agora embuçados na sua apoplexia, convencidos que os acontecimentos vieram entronizar a sua razão.


O sinal de bússola sem conserto é o regresso ao nacionalismo económico. Os amadores chamam-lhe "proteccionismo", sem saberem o que dizem ao empregarem a palavra. Através do proteccionismo os países redobram os obstáculos às trocas comerciais, aumentam a fasquia à entrada das importações. Encerram-se numa torre de marfim que se acantona em cada mercado nacional. Ora, na Europa unida os países perderam as rédeas do proteccionismo desde que para lá entraram. O que certos países europeus estão a fazer (a reboque dos Estados Unidos obamizados), é, como as baratas tontas, uma assarapantada fuga para lugar algum. Distribuem ajudas às empresas nacionais para poderem suportar a concorrência que vem de fora. Adoptam uma dogmática campanha de convencimento dos consumidores a comprarem o que é fabricado no país, um arremedo de solidariedade baseada no "sangue comum" como paliativo para a crise hedionda.


É curiosa a incoerência de método destes políticos em pele de baratas tontas. Quando retomam a sapiência do keynesianismo, mergulham no passado para se convencerem que é na crise de outrora que encontram as soluções para derrotar a crise de agora. Como se as crises não fossem diferentes – nas origens, nos efeitos e, sobretudo, nas circunstâncias da economia da década de trinta e da economia em 2009.


Por um momento, seja: vou acreditar que o milagre está ali ao folhear os calhamaços que historiam a crise da década de trinta. Só que depois o método é desaproveitado quando encetam a fuga para o nacionalismo económico. Por um momento ainda, o proteccionismo de então é reconfigurado no nacionalismo económico de agora. Já que estes oráculos do passado se entusiasmaram com o devaneio histórico, convinha que levassem o exercício mais longe. Convinha que se recordassem da relação causal entre proteccionismo e retrocesso económico. Está nos mesmos livros que vasculham a poeira da história (económica): uma ligação estreita entre crises e proteccionismo. Uma dupla temível. Como se fossem um tandem, a força de um (crise) a alimentar a passada vigorosa do outro (proteccionismo), que impulsiona uma pedalada ainda mais forte do primeiro.


Talvez por estarem no papel de baratas tontas, os frouxos líderes entregam-se à sua anamnese. Na Europa que já não deixa os países serem fortalezas comerciais por sua conta e risco, o nacionalismo económico é o instrumento sobrante. A derradeira opção para os países europeus negarem um esteio daquilo que os uniu desde a década de cinquenta – a extinção das fronteiras nas trocas de produtos e serviços. A desorientação é tanta que até os fundamentos são espezinhados, como se a inversão de tudo o que era fosse capaz de varrer os ventos tempestuosos da crise que anda por aí, teimosa e miasmática.


Lamentavelmente, o mau exemplo vem de grandes países europeus, a França à cabeça na restauração do nacionalismo económico. Os pequenos países, comprimidos na sua irrelevância, esboçam tímidos protestos. Sabem que o reverso do nacionalismo económico dos grandes é um sucedâneo de proteccionismo: menos espaço para as exportações e mais arrefecimento da economia.


Oxalá as lideranças, mesmo que frouxas, ao menos soubessem ler a história. Saberiam que o monástico nacionalismo económico só consegue agravar a crise. Perceberiam que é uma doença que se contagia. Assim que todos estiverem na sua torre de marfim, com altas cercas à volta, lá baixo medra uma economia entregue ao seu pântano.

18.2.09

O ministro ébrio que já não é (ministro; ébrio continuará)


O Japão ficou sem ministro das finanças. Há dias, foi apanhado em Roma com uma bebedeira descomunal. O pior é que estava em missão oficial, a participar numa reunião do G7. Não é admissível que, após a reunião dos sete países mais ricos do mundo, um dos ministros tivesse dado uma conferência de imprensa a cambalear das ideias, mostrando a embriaguez que se tinha apoderado dele. O Japão cobriu-se de vergonha, temendo a chacota dos outros. É que nestas coisas é fácil soltar a graçola para o vizinho do lado quando é o vizinho do lado que escorrega para actos indecorosos. Mesmo que os que se riem tenham telhados de vidro.


Quando o ministro adulador de Baco voou de regresso ao Japão, esperava-o a vergastada colectiva. Pelo enxovalho do Japão – e logo num tão importante areópago internacional. É preciso conhecer a mentalidade nipónica. O valor da honra tem um significado que desconhecemos no ocidente. Se há mal maior que podem fazer aos japoneses é ter o mundo inteiro a rir-se de um deslize de um dos seus. Se ele tiver as responsabilidades de um ministro, o pecadilho é intolerável por cobrir um povo com ultraje.


Não quero ferir a sensibilidade dos que recusam etnocêntricas análises. Junto-me a eles na condenação do etnocentrismo – que fique claro. Todavia, não consigo perceber a lógica retorcida de exigir aos "responsáveis" pelo que quer que seja um comportamento cuidadoso. Dizem que eles têm que dar o exemplo. Logo, não devem escorregar para comportamentos condenáveis. Até aqui o raciocínio é linear. Deixa de o ser a partir do momento em que comportamentos iguais não merecem tanta "censura social" se partirem de anónimos. Quem se importaria de ver um anónimo japonês a fazer figuras tristes numa avenida romana depois de um jantar bem regado? Nem sequer seria notícia.


Eu acho injusto os famosos e os que açambarcam a tormenta das responsabilidades políticas terem que arrostar mil e uma cautelas para não serem apanhados em contramão. Ainda por cima, há por aí uma imprensa sensacionalista de lupa em riste à espera de apanhar os famosos e os importantes no terreno interdito das proibições. Só para darem à estampa fotografias retumbantes de famosos em tristes figuras, depois de uma bebedeira, depois de um encontro furtivo com uma amante. É quando se descobre que as personagens mediáticas são vítimas de um tratamento desigual, pois é-lhes vedado o direito ao disparate. Do outro lado, um público ávido de voyeurismo é o abutre desta infâmia. Até parece que esta "indústria" existe só para apaziguar a consciência da anónima gente que se entrega aos mesmos deslizes.


O ministro das finanças do Japão, que entretanto já deixou de o ser, era – consta – alcoólatra compulsivo. Não li nenhures se era competente no cargo. Já sei, os moralistas de serviço contrapõem, neste momento, que um bêbedo incorrigível não tem condições um cargo daquela responsabilidade. Esquecem-se que muitos escritores e pintores criaram conceituadas obras de arte sob a influência do álcool. Esquecem-se que só conseguiam criar depois de terem tragado uns copos de qualquer bebida encharcada em álcool. As notícias só relatam a imagem turva de um ministro das finanças numa conferência de imprensa em Roma, a balbuciar umas palavras ininteligíveis, a cambalear de um lado para o outro ainda que estivesse sentado, quase a adormecer enquanto um jornalista lhe dirigia uma pergunta. O que as notícias não falam é da competência do ministro. E não, não venham com o desempenho da economia japonesa, paupérrimo e estarrecedor, com uma quebra do crescimento superior a três pontos percentuais, como prova do mau ministro das finanças. É que o argumento da crise como pretexto para o desastre da economia e como face salvífica da inoperância do governo de cá não vale só para cá; vale para todos, ou não vale para ninguém, estejam invariavelmente ébrios ou não.


Por falar em comparações: também consta que temos um ministro, famoso pela incontinência verbal e por ver as suas palavras proféticas serem rapidamente desmentidas pela realidade, um ministro que é muito amigo da bebida que resulta da destilação da uva. Consta que as tiradas mais patéticas deste ministro (o tal do "jamais") foram conseguidas sob a inspiração de Baco. O japonês foi demitido. O de cá, vai até ao fim do mandato, deixando um rasto de lapsus linguae.


Desorientado, já nem sei qual dos dois casos deve servir de exemplo.

17.2.09

Os lambe botas


A quintessência da mediocridade. Lambem botas porque se as não lambessem da cepa torta não saíam. Vasculham as catedrais por onde os figurões se fazem notar, cheios de poder. Farejam os lugares onde posam suas excelências, só para lhes lamber as botas, lamber o chão onde essas botas hão-de pisar, se necessário for. A certa altura, desaprendem a dignidade.


São os meirinhos de uma fastidiosa maneira de ser, desmultiplicando-se em genuflexões que apascentam a estatura dos elogiados. São os engenheiros do culto de personalidade dos figurões, dos que adoram ver-se embrulhados nos tratos de polé dispensados pelo numeroso séquito que lhe lambe as botas. Eles agora levitam numa sublime padiola onde não lhes é dado a saborear o amargo travo do cansaço, reservado aos lacaios que os reverenciam. Os agora poderosos entregues ao seu próprio culto de personalidade. Foram, em tempos, soldados de exército numeroso que lambera as botas a um qualquer general. Agora chegara a sua vez de ver lambidas as botas.


A suprema hipocrisia é todos saberem, lambe botas e personalidades cultivadas, que vivem imersos num tremendo oportunismo. Os figurões precisam de uma turba que varre o caminho por onde hão-de seguir, o caminho imaculado, despejado de inconvenientes adversários que possam contestar a sua grandeza. O culto da personalidade, ingrediente indeclinável da ostentação de poder. Só para obnubilar o banho de mediocridade que é seu leito irremissível. Os outros, a ralé que aspira a deixar de o ser, abraçados ao imperativo da procissão onde os esboços divinos são adorados. Sabem que é o percurso inevitável para irromperem na hierarquia, subirem os escalões todos, a pulso, até ser a sua vez de conquistarem um séquito que os vanglorie. Nas botas lambidas, apenas um esgar de oportunismo.


Infaustos os que se entregam ao banho dos lambe botas. Convencidos a confundir humildade com a ausente dignidade de quem se enche de contentamento, ou finge que o faz, a cada bota lambida dos poderosos. Que, por sua vez, se extasiam com o séquito a esgadanhar-se para polir zelosamente as suas botifarras. Coitados, os lambe botas: nem sabem que a qualquer momento as mesmas botas que lambem são as botas que não hesitam em pontapeá-los no rabo. Acontece a quem tanto se rebaixa, a jeito para o pontapé no rabo. Às vezes, sinal de que já nem sequer serem lambe botas os safa da demissão da função. Lambe botas em vão. Outras vezes, a distribuição de pontapés é a paga pelo zeloso polimento das botas. Dir-se-ia que as botas são lambidas para a distribuição dos pontapés. Ao menos, dos pontapés que são dados por botas zelosamente lambidas.


Há prebendas para repartir, haverá botas por lamber. Poucas botas, muitas línguas ávidas da função. Em tudo isto, o zénite da suprema mediocridade. Vingam os que se esmeram no melhor polimento das botas dos figurões deleitados na poltrona à espera de avaliarem o melhor lambe botas. Por sinal, os figurões trazem sempre as botas em exemplar polimento. Só disso se podem gabar, do garbo das botas em perene lustro. Que o resto é um mostruário da mesquinhez que é sua têmpera, o insuportável odor onde medram os tacanhos. Assim como assim, os agora poderosos tiveram o seu pessoal tirocínio de lambe botas. Interrogam-se: se outrora lhes fora dado lamber botas a quem o deviam fazer, agora que guardam em suas mãos uma apreciável fatia do poder perpetuam o costume.


O mal é esse: lamber as botas entrou para o património genético. Quem não vinga, os que ficam irremediavelmente perdidos no meio do deserto, são os que recusam lamber bota alguma. Sobra-lhes dignidade, um bem intangível. Nestes tempos em que os fins se sobrepõem aos meios, essa intangibilidade é o freio das oportunidades que se perdem, ou das oportunidades que, por decência, nunca chegam a sê-lo.


Mas quem triunfa no campeonato da mediocridade e da indecência são os que adoram apascentar um rebanho de lambe botas. A execrável imagem de os ver embevecidos com o pessoal séquito sempre disposto a lamber as botas e o chão que elas vão pisar. Pior que um lambe botas, só um figurão que se envaidece ao ver as botas polidas, sabendo que são sempre os outros que tratam de as lamber.

16.2.09

Duas notícias em diálogo que pintam um paradoxo


O que têm em comum esta notícia:


"São as mulheres que, cada vez mais, tendem a "perder vergonhas" e a enfrentar as disfunções sexuais que afectam 500 mil homens portugueses, levando-os a consultas médicas e seguindo-os nos tratamentos. Paralelamente, são igualmente elas que procuram soluções nas "sex shops"" com esta?


"Quinze jovens do movimento juvenil da oposição "Nós" manifestaram-se ontem no centro de Moscovo contra a política dos actuais dirigentes russos, apelando às restantes jovens e mulheres russas que recusem fazer sexo com namorados e maridos que apoiem Vladimir Putin e Dmitri Medvedev."


Além da espuma das aparências, onde não se percebe o fio à meada, as duas notícias são um oráculo de contradições. Pode ser bizarro pô-las em diálogo se parecem falar sobre coisas tão diferentes e de locais tão distantes. Com a atenção fervida, a argúcia chega ao ponto de caramelo. Duas notícias afinal sobre o mesmo assunto, mas tingidas de cores tão díspares.


Primeira anotação: os burocratas que marcaram na agenda o dia europeu da disfunção eréctil ou andam distraídos ou fizeram de propósito, só para contrariarem o zelo empenhadamente comercial do dia dos namorados. É que as duas "efemérides" coincidiram no mesmo dia. Uma coincidência – como dizer? – carregada de cinismo. Logo quando se convencionou inflamar a chama da paixão das pessoas enamoradas, os cinzentos burocratas escorregaram para o deslize de lembrar que nesse dia também se "celebra" a disfunção eréctil.


Imagino que a disfunção não careça de "celebração" alguma. Mesmo que se aceite a "efeméride" na banal lógica da criação do dia europeu de tudo e mais alguma coisa, mesmo que se admita que as piores enfermidades merecem um dia para lembrar a sua lamentável existência, fazer coincidir o dia dos namorados e o dia em que a Europa se lembra da impotência masculina é bizarro. Logo no dia dos namorados, o dia que se consegue desprender do espartilho comercial, o dia que convoca o sublime romantismo que, parafraseando um famoso comandante náutico algarvio a condenar indecorosas massagens em plena praia, "sabemos como acaba". Lembrar da disfunção eréctil no dia de S. Valentim é como despenhar um balde de gelo sobre a intumescência que fora convocada para consumar a celebração dos namorados.


Tenho duas teorias para esta improvável coincidência de "efemérides". Os burocratas que inventaram o dia da disfunção eréctil são agentes infiltrados da Opus Dei. Como aconselham o sexo apenas para efeitos de procriação da espécie, perturba-os que as pessoas se entretenham em devassidões como as que são patrocinadas por S. Valentim. Maldade em estado puro: quando meio mundo abraça o romantismo de jantares à luz da vela e juras de amor que são eternas até se esvair a chama, e quando essa metade do mundo está quase a perder-se na volúpia, adeja um desmancha-prazeres vestido de sotaina a aspergir o dia catorze de Fevereiro com a recordação da disfunção eréctil. Esta coincidência de "celebrações" tem outra explicação possível: quem marcou a lembrança da disfunção eréctil no dia dos namorados foram umas funcionárias superiores que cederam ao poderoso lobby das lésbicas.


A notícia sobre os "festejos" da impotência masculina revela que são as mulheres (de maridos ou companheiros afectados pelo flagelo, supõe-se) que tomam a iniciativa de procurar cura para um mal que não é directamente seu. É aqui que esta notícia é contrariada pela notícia da insólita greve convocada por um grupo de mulheres que não gosta da dupla Putin-Medvedev. Na outra notícia, lê-se que são as mulheres que "(…) começam já a ser mais participativas e puxam o seu parceiro para estas consultas" (de tratamento da disfunção eréctil). As peças do puzzle encaixam-se: elas são, afinal, vítimas indirectas da perda de aptidões dos parceiros. Em linguagem terra a terra: é porque gostam da coisa. Mas depois lê-se que um grupo de opositoras de Putin e Medvedev sugere uma greve de sexo com orientações ideológicas (só contra os homens que apoiarem quem manda no Kremlin). Fica no ar a insinuação de que elas fazem um frete quando se entregam a lascivas práticas. O catecismo grevista ensina que, numa greve, os sacrificados não são os grevistas, mas quem é afectado pela paralisação de funções. Se as senhoras recusam os prazeres carnais, é porque esses prazeres o são apenas para as vítimas da greve.


Eis como a notícia vinda da gélida Rússia contraria a notícia sobre a disfunção eréctil. Outra teoria, para acabar: desconfio que o grupo de mulheres que anda de candeias às avessas com a dupla Putin-Medvedev coincide noutro pergaminho – a frigidez.

13.2.09

Salazar, fosse vivo, ainda o apanhávamos no Salão Erótico do Porto


Anda por aí um banzé por causa de uma série televisiva que retoma a biografia do ditador Salazar (um filão). Muita gente assarapantada por Salazar ser retratado como um mulherengo, contrariando a iconografia oficial e as biografias dos detractores que, ao menos, coincidem na visão casta do homem.


Os críticos não se conseguem desligar da biografia oficial do homem, insurgindo-se contra o suave revisionismo que mostra a suposta faceta escondida de galanteador. Percebe-se a apoplexia. Para os penhores da historiografia oficial do Estado Novo (que só pode ter o selo do Professor Rosas, numa coutada intelectual reveladora de má convivência com a alternatividade de ideias), calha mal saber-se que o ditador se entregava aos prazeres carnais. Convém reter, nos manuais que encerram a definitividade da história do Estado Novo, que o ditador albergava os piores defeitos que podem convergir num ser humano. Uma peça de ficção a retratar um Salazar doido por um rabo de saias contraria a misoginia que era a sua imagem de marca. Pânico entre os pastores do "anti-fascismo": um estouvado por mulheres tem uma faceta humana, é gente de carne e osso como todos os que se dão às coisas lascivas. O que vem em desabono da imagem cultivada de homem diabólico e desapiedado.


(Não o admiro, ao ditador de Santa Comba Dão, mas intriga-me a perpetuação da imagem dantesca de um homem que marcou um período sombrio da história. Andamos a denunciar o enfeudamento a salazarentas maneiras de ser e temos que apanhar com a retórica dos "anti-fascistas" e dos historiadores que selam a versão oficial da história daquele período. O que tem o condão de prolongar o estigma de Salazar para o tempo corrente. Quando já devíamos ter amadurecido ao ponto de o encerrar no mausoléu dos esquecidos.)


Do lado contrário, saudosistas (declarados e os que o são por portas travessas) ofendidos pela ousadia dos argumentistas da série. A honra do estadista vilipendiada, no pior dos vilipêndios – o que acomete sobre pessoas já sepultadas. É indecoroso sugerir que os santos têm deslizes lúbricos.


De ambos os lados, a excitação refina a convicção de como Salazar ainda atormenta o que somos, e fá-lo das profundezas do túmulo. É a dor maior: sentir que Salazar é ainda figura tutelar (no pior dos sentidos). O que interessa saber se a série televisiva é um retrato fidedigno de Salazar? Não terá passado pelas cabeças dos críticos que aquilo pertence à ficção? E que, na ficção, a regra número um é a criatividade, sem peias com a realidade? Quem assegura que a castidade do ditador corresponde ao que ele foi em vida?


Aos críticos e aos adoradores de Salazar, outra interrogação: vem algum mal ao mundo se o ditador era afinal um pinga-amor? Um piegas romântico, escrevendo arrevesadas cartas de amor que deixavam as donzelas sem pingo de sangue, afogueadas pelo êxtase na leitura das cartas escritas pelo punho de ferro de Salazar? Porventura o grande amigo do ditador, o cardeal Cerejeira, não haveria de gostar desta faceta libertina, pois vingou a imagem de Salazar como um padre sem paramentos, um padre a quem só faltou a ordenação. E, daí, talvez tudo ao contrário: não era Cerejeira o confessor do presidente do conselho de ministros? Sabe-se lá se as fantasias de Cerejeira não eram povoadas pelas confissões de Salazar…


Salazar gostava de mulheres – e muito, a crer na série que passa na televisão. Critica-se o homem por isso? A narração teatral serve-se dos predicados da criatividade, como sabemos. Eis um ensaio de criatividade: supor que o ditador ainda era vivo e que estava na posse das capacidades outorgadas pelas hormonas masculinas. Descrever um dia na vida de Salazar, o dia em que apanhava o Alfa até ao Porto e se fazia deslocar de táxi até Gondomar. Não seria uma visita de cortesia ao edil local o que o trazia até Gondomar. Tinha marcado na agenda, e com sinalética "urgente", a visita ao Salão Erótico do Porto. De onde não sairia sem mais uma conquista de ocasião. Fica ao critério do leitor imaginar a identidade da moça engatada: estrela recrutada para o certame, ou uma ninfa de visita ao local? Com direito a reportagem numa das revistas cor-de-rosa que por aí pululam.

12.2.09

Second best


A ideia do desassossego. Diziam-lhe constantemente que a perfeição pertence aos deuses. Entidades invisíveis, mas adoradas porventura por serem invisíveis, aspirações ideais do que a humanidade nunca chegaria a ser. Aos homens, a humilde resignação da sua abundante imperfeição.


Interrogava-se, a meio do alvoroço: por que se flagela o homem com o rosário de imperfeições que o persegue? Erra por convicção? Ou só para se reencontrar com o humilde arrependimento, ali ajoelhado na sua infinita pequenez para obter o perdão de uma das entidades divinas a quem se presta culto? Incomodavam-no as teorias correntes da imperfeição humana. Não via nelas a grandiosidade eloquente dos actos humildes. Era todo um manifesto de aviltamento das pessoas, condenadas a inclinar-se diante da suma perfeição divina.


Olhava em redor à procura de fragmentos em negação da teoria dominante. Obras-primas, nas artes, na arquitectura, onde quer que povoassem a magnífica têmpera humana: as obras-primas, monumentos à grandiosidade do homem, nesses projectos a edificação de uma gesta a levitar acima da insignificante pequenez das gentes perseguidas pelos escolhos dos passos trocados. Era tudo ao contrário: houvera pessoas ungidas com as cores da perfeição, pessoas capazes de compor músicas perfeitas, de pintar quadros retumbantes, de compor poemas devastadores pela melodiosa coreografia de palavras magicamente sucessivas. Homens a esboçarem-se arquitectos divinos mercê das obras que domavam a natureza que se julgava fora da mão humana. A todos estes intérpretes da perfeição, dir-se-ia que beijavam os pés dos deuses por terem sancionado a perfeição das suas obras. Outra maneira de desmerecer a intervenção humana, apenas.


Era isso que o deixava sem entendimento: sempre pretextos para amesquinhar a acção dos homens. Tudo o que fizessem, por mais aplausos que recebesse, ia desaguar à etérea influência dos agentes desconhecidos. Em tudo havia mão de deus, os homens remetidos à irrecusável pequenez. Era como se todos os actos, todos os pensamentos, todos os gestos, omissões, hesitações, avanços e recuos, tudo fosse determinado por uma mão que ninguém via mas todos deviam sentir. Uma fracção de segundo antes, os actos, os pensamentos, gestos, omissões, hesitações, avanços e recuos fermentados na esmagadora presença divina. E nós, mortais ao contrário dos adorados deuses, compensados pelo dom da humilde resignação da pequenez a que nos víamos remetidos.


Uma lei, invisível por não escrita, uma lei fora de todos os códigos, mandava o obediente rebanho não perturbar com inúteis interrogações a ordem estabelecida e a harmonia. Nem quando as coisas, na sua ociosidade, começavam a perder sentido e a ganhar uma absurda espessura. A fé, a inamovível fé, fornecia a resposta acertada no tempo certo. Ao homem restava saber que não se podia libertar da sua infinita imperfeição. Uma condição que era superior a toda a vontade que o homem conseguisse arrebanhar. Nem mil gritos, nem um oceano tumultuoso de lágrimas remoendo a sua revolta, ou as obras mais encantadoras à superfície do planeta, chegariam para desmentir a harmonia fixada no dogmático saber. A inquietação dos dissidentes era o pasto da sua consumição. As ondas tempestuosas onde todas as ideias esbarravam na sua breve finitude. A impaciência fermentava o desassossego, mas um estéril desassossego. Era como se pairasse sempre uma afiada espada à espera da desatenção dos sentidos. Só para provar a esmagadora imperfeição dos que soçobrassem ao golpe seco do algoz. Nem que o algoz fosse um qualquer bondoso deus, ali com a maldade a transfigurar-se em indulgência.


Todavia, nem a avassaladora força de todos os deuses lhe torcia a vontade. Ou os deuses estavam escondidos, na covardia da sua invisibilidade, ou eram fantasmagóricas entidades inventadas para convencimento da finita aspereza dos homens, mergulhados no poço da sua infinita imperfeição. Quando lhe diziam que só podíamos aspirar ao segundo óptimo, desconfiava da diligente encenação da semântica. Um óptimo nunca é segundo de coisa alguma. É óptimo – primeiro, por definição das convenções linguísticas. A menos que por aí houvesse divinas entidades a reinventar a língua. Tal como foram habilitadas a convencer um numeroso exército de seguidores da rasa campa por onde vegetam as suas insignificantes existências.


Tudo ao contrário: havia perfeição ungida pelas mãos dos mortais. Todos os dias. Cedesse às convenções úteis, dir-se-ia que é quando os mortais levitam para o altar onde só os deuses têm lugar. Fazê-lo seria rejeitar a indivisa natureza dos homens: só homens, visíveis e existentes, e nunca deuses de coisa alguma.

11.2.09

Em defesa dos ricos


Um naco de heresia, o de quem se apresta a defender os ricos. Logo agora que vozes agoirentas que desdenham do capitalismo passeiam o papo inchado, seguras que o capitalismo tem os dias contados. Logo agora que até um governo que sempre foi pasto para os interesses do "grande capital" faz de conta que vai atacar "os ricos" através dos impostos, querendo que acreditemos que isso não é eleitoralismo inconsequente.


Sigo em frente com a defesa dos ricos. Estou à vontade: não sou avençado de rico algum, nem o património e finanças pessoais me deixam sequer nos arrabaldes da abastança. É herético, mercê da maré caudalosa que acusa os ricos de ganância, a ganância que fermentou a crise. Herético, pois românticos são os nacos de prosa, a respirarem neo-realismo por todos os poros, que mostram com pungência as provações dos pobres. Faz parte de um imaginário vulgarizado: num mundo dicotómico, os pobres são os bons e os ricos são os malévolos que exploram e oprimem os pobres. Marx e discípulos nunca perderam pujança.


Não ignoro que os pobres (metemos lá a classe média?) passam por dificuldades. Como há tantos advogados de defesa dos pobres e quase nenhum em defesa da honra dos ricos, e como não fui feito para engrossar coros vociferantes, eis um manifesto em defesa dos ricos.


Fica mal, aos que são mestres em desancar nos ricos, tomarem todos os abastados pela mesma medida. Esbarra contra o relativismo de que se acham sacerdotes supremos. Longe de mim desviar-me do relativismo – e não há aqui o menor laivo de ironia. Só que as generalizações em que as aves agoirentas do capitalismo laboram são a negação do relativismo que tanto adoram. Sem contar que generalizar é um método muito falível. Se esta generalização estivesse certa, não havia um único capitalista a escapar ao libelo acusador dos que por aí andam, ufanos, convencidos que o funeral do capitalismo já tem data marcada.


A retórica do costume soa a desonestidade intelectual. Os ricos, gente sem escrúpulos, só conseguem endeusar o vil dinheiro que ambicionam acumular de forma obscena. A acumulação material, em si, é uma obscenidade. Lucro, uma palavra diabolizada. Só querem oprimir quem para eles trabalha, sugá-los até ao tutano para desse tutano fazerem o milagre do lucro. Cometem pecados de consumismo que deviam ser objecto de lapidação pública, antes de um método sumamente democrático (a democrática tirania da vontade iluminada dos sacerdotes anti-capitalistas) proibir a produção e venda de objectos que por serem de luxo são supérfluos. A riqueza deveria ser socializada. O ideal, o ideal mesmo, seria a extinção dos ricos. Se fosse a bem tanto melhor, por fim os ricos convencidos de quão abjecto foi terem perfilhado um capitalismo carregado de iniquidades. Caso contrário, seria pela força da baioneta, esse método sumamente democrático.


Eu que não sou rico (muito, mesmo muito longe disso) e, confesso, nada faço na vida para aspirar sequer vir a sê-lo, mete-me confusão este ódio aos ricos. São eles que criam riqueza e, através dela, distribuem riqueza por quem teria que dizer adeus a algum bem-estar caso essa riqueza fosse obnubilada. Há ricos que especulam, como há ricos dados a coisas supérfluas enquanto um exército numeroso de gente passa por dificuldades. O que podemos fazer: invadir a consciência dos ricos que têm pouca "sensibilidade social"? Há um sucedâneo: já que muitos não se voluntariam para o imperativo da solidariedade social, vai à lei do imposto – "sensibilidade social" à força. É a adorável "redistribuição de rendimentos".


Este é o derradeiro modismo do feiticeiro que está à frente do governo. Quer tirar aos ricos para dar aos pobres. Vejam-no, a piscar o olho à esquerda radical, tão sequiosa de mais impostos Robin dos Bosques. Agora o que convém é deixar de amesendar com os ricos, quando lá para trás tanto o gostava de fazer. Faz bem em cavalgar neste populismo enamorado pela demagogia barata. Um dia destes, os ricos decidem fazer a trouxa e ir abalar para outras paragens. Quem fica cá para criar empregos? Quem fica cá para pagar elevados impostos sem os quais a sacrossanta redistribuição em favor dos necessitados é só uma miragem?


Há ricos e ricos. Como há trabalhadores esforçados e outros negligentes. Deviam aprender que as generalizações são um perigoso alçapão. Há capitalistas que envergonham o capitalismo? Pois há – daqueles que, de tão ignaros, alimentam a sobrevivência de marxismos e herdeiros. Também os há honestos, generosos, preocupados com os trabalhadores que estão o seu serviço. Gente que tem conseguido multiplicar dinheiro. Que é investido em novas empresas, novos empregos que se inventam, mais bem-estar por quem dele estava arredio.


Como os ricos são o saco de pancada preferido da turba, achei ser o momento certo para lhes prestar a minha homenagem.

10.2.09

Custa assim tanto a entender que a vida é um acto de liberdade?


Uma rapariga italiana em estado vegetativo há dezassete anos. Sem esperança de recuperar para uma vida decente. A família já tinha sido desenganada pelos médicos. O pai queria desligá-la da vida artificial em que era mantida. "Eutanásia", protestaram os do costume, muito ofendidos pela aleivosia que choca os seus quadros mentais. À frente dos protestos, a igreja católica empunhando as bandeiras gastas com o tempo. "Assassínio", sentenciaram do alto das certezas de quem teima em ser intruso em vida alheia. Montou-se uma campanha para impedir que a rapariga fosse desligada da máquina que a mantinha teimosamente ligada a uma vida absurda, uma vida indigna.


Nisto de causas, não é só a extrema-esquerda que as tem e nelas apascenta como devota militância. A direita conservadora, a direita parola de Berlusconi, a direita que tresanda ao bafio das sacristias, quis ser capataz das ordenações do Vaticano. O inenarrável Berlusconi tirou da cartola uma absurda invenção: uma lei feita à medida para impedir que a rapariga fosse desligada da máquina. Logo ali, em Roma, onde nasceu o direito moderno, um primeiro-ministro desorientado a invectivar um alicerce do Estado de direito: a lei é geral e abstracta, ou não é verdade que Themis, a deusa da justiça, é cega?


O que há-de pensar alguém de direita acerca desta direita conservadoramente católica até aos ossos, a tresandar ao bafio das sacristias sombrias onde se repisam os dogmas bíblicos que ensinam a intrometer na vida alheia? Não fosse a repugnância congénita a tudo que ressoe a esquerdas e diria, nestas alturas, que me apetecia alugar espaço numa esquerda qualquer. Esta direita labrega e iliberal cede perante os dogmas da igreja católica, como se a igreja fosse a eminência parda que lhe manipula os gestos e a vontade. Não respeita a vontade individual, que se inclina diante dos imperativos da metafísica. Olhando à lupa, que diferença existe entre esta direita amordaçada pelo conservadorismo católico e a ortodoxia comunista? Num caso como noutro, sufocação da vontade individual. Só diferem os altares onde se ajoelham respeitosamente.


A certa altura, o pai lembrava a filha como uma amante da liberdade. E ensinava aos que se empenharam em perpetuar a indigna vida da rapariga que a vida é um acto de liberdade. Nem vem ao caso indagar se o homem estava a ser instrumentalizado pelos opositores da igreja, pois a uma militância contrapunha-se militância de sinal contrário. O que mais lamento é as duas militâncias terem aproveitado o sofrimento de uma família para fazerem política. A abjecta política a emergir nestas alturas. Nem interessa saber se o pai contava a verdade quando evocava a filha como amante da vida como acto de liberdade. O que aqui conta é que a vida é mesmo um acto de liberdade. E viver daquela maneira é tudo menos ser livre. É estar preso a uma máquina, a vida mantida por cordelinhos na artificialidade da parafernália de mecanismos que suportavam o estado comatoso em que a rapariga era mantida há dezassete anos.


Já o disse por mais que uma vez: isto não é viver com dignidade. Se a igreja, teimosa, insiste que só deus é que pode tirar a vida às pessoas, faço as seguintes perguntas: não dizem que deus é imensamente bondoso? Como conciliam essa bondade com a crueldade que é manter uma vida vegetativa? Talvez tenham dificuldade em responder à interrogação. Aprenderam, na catequese, a respeitar todas as decisões divinas sem interrogar a sua justeza. Nem que isso exija declinar a individual liberdade que nos foi outorgada.


Tenho uma imensa dificuldade em perceber como pode alguém, em desespero de causa, levar às últimas consequências a tentativa de proibição de um acto de eutanásia. Ao menos respeite-se a vontade da família, o seu prolongado sofrimento. Aos que não o conseguem fazer, uma advertência: a qualquer altura, os outros, os que são da mesma igualha, podem dar palpites sobre a sua própria vida. O que não será agradável.


Eluana, enfim, partiu. Enfim, consumou-se a sua suprema liberdade. Desligada da máquina, desligada das algemas que a mantinham presa a uma vida artificial que contrariava a vida como acto de liberdade.


9.2.09

Aos emigrantes, respeito


Como é fácil flagelar os emigrantes quando passeiam a pesporrência de uma certa abundância material, quando entoam hinos à anti-estética, quando armadilham a língua que aprenderam mal com as granadas detonadas pela habituação à língua que tiveram que aprender. Ainda que se ponham a jeito para a chacota indígena, há uma homenagem que se impõe pela coragem de ir para uma terra desconhecida, muitas vezes tão distante, para sonegar as provações que foi tudo o que a terra-mãe lhes deu a conhecer. Uma coragem ao alcance de poucos.


Os que se enamoram pelo género epopeico encontram na safra dos emigrantes analogia com a veia aventureira dos descobridores quinhentistas. Que descabida comparação. As circunstâncias que empurram pessoas para tratar da vida no estrangeiro são tão diferentes do que levou uma gesta de navegadores a sulcar águas desconhecidas, que a analogia morre à nascença. A emigração vem fermentada por um estado de necessidade. Tirando os que buscam exílio por desamor da pátria, a procura de oportunidades no estrangeiro tem um lastro de carências vividas na terra que viu nascer os que depois emalaram os parcos pertences para fazerem vida num distante local.


Logo aqui o primeiro sinal de coragem: a insatisfação com a miséria convidava os emigrantes a demandarem o desconhecido bem-estar numa terra que era estranha. A aventura ficou mais fácil para aqueles que não foram às escuras, os que partiram para um destino já arrepiado por patrícios seus. Estes é que são merecedores dos louvores. Gente sem instrução, que amiúde nunca saíra das ameias da perdida terra onde nascera, gente sem saber línguas, gente sem conhecimento da geografia para saber onde se ia instalar. E mesmo assim não hesitaram em partir, embebidos na total incógnita da tarefa. Partiam para serem mão-de-obra à mercê de árduas empresas, duras condições que não aceitariam na terra-mãe. Quando chegavam ao inverno, expostos a uma invernia que nem julgavam ser possível. Sem nunca dobrarem, mais alto o imperativo de amealhar pecúlio que fosse a caução para o outrora apenas mirífico bem-estar.


Éramos terra de emigrantes. Agora já o não somos tanto, ou por termos singrado na ladeira do bem-estar, ou porque as gerações que vieram depois trouxeram têmpera diferente, menos atreitas a avançar às cegas no desconhecido. Até já somos terra escolhida por imigrantes, sinal de que a terapêutica miséria salazarista foi declinada por gente amante de mundanos e menos mundanos prazeres materiais.


Regresso ao tempo lá atrás, o da miséria indigna. Era quando os que andavam pela miséria sentiam ser inevitável perguntar pela sorte noutro local. Esta era uma terra ingrata com os seus. Era como se esta terra deixasse à míngua gente que nunca marcou encontro com um destino de fortuna e a empurrasse para distantes migrações. Uma espécie de purga. Dos proscritos. A ingratidão a gotejar, ainda mais soez, quando a terra que os purgara estendia a mão na ânsia das remessas. Era a doce vingança dos que emigraram. Outrora expulsos pela miséria da terra-mãe, a melhor bofetada na ingratidão era serem financiadores da riqueza nativa.


Sobra a sensível questão da identidade. Há dias, uma emigrante em Londres confessava, com mágoa, que se sente estrangeira em Londres e também quando regressa à terra – ou que, deixou-o nas entrelinhas, não sente que os nativos a tratem como alguém que é tão nativa quanto eles. A crer nos padrões estabelecidos, as raízes devem ser conservadas. A crer nestes padrões, os que invocam a cidadania do mundo estão à frente do seu tempo.


Os emigrantes padecem de uma segunda doença quando lhes ecoam os acordes do moderno cosmopolitismo. É o preço derradeiro da aventura da emigração: desenraizados, sem saberem pertencer a uma terra que seja.



6.2.09

É proibido ser céptico?


Arre, que tanto é muito pouco!

Arre, que tanta besta já é muito pouca gente!

Arre, que o Portugal que se vê é só isto!

Deixem ver o Portugal que não nos deixam ver!

Deixem que se veja, que esse é que é Portugal!

Ponto.


Agora começa o Manifesto:

Arre!

Arre!

Oiçam bem:

ARRRRRE!

Álvaro de Campos, Poesia.


Andam por aí alguns polícias do pensamento a repreender críticos que só o sabem ser, críticos. Revoltam-se contra o muito fel que destilam os que só têm fel para destilar. Desafiam: não fiquem pelas críticas, aventurem-se nas alternativas. Protestam contra a cómoda poltrona onde se sentam os cépticos que só o sabem ser, cépticos. Acusam: nestes críticos não há nada de construtivo. É só um rosário de injúrias que tudo destrói de cima a baixo.


Gosto de ler a argumentação escandalizada dos que navegam por águas optimistas. Nuns, descomprometido optimismo. Cansam-se da monotonia do cepticismo dos que só o sabem ser. É uma posição respeitável. Tão respeitável como a posição dos que são criticados por serem profissionais da crítica, por sinal. Noutros, diligente retórica talhada para enaltecer as aptidões dos que seguram o leme nas mãos. A esses, desconte-se o compromisso da causa para perceber a intolerância com os que se deixam vencer por um derrotismo que avança, assíduo. São advogados em causa própria; não lhes convém, dói-lhes muito, o espesso manto de pessimismo de quem não consegue ser indulgente com os que querem manter o leme entre seus dedos.


Não fosse ultrajante, e seria apenas delicioso assistir à desorientação dos apaniguados do poder perante as milhentas exibições de cepticismo. Custa-lhes admitir que há quem sinta um odor diferente na atmosfera, e que esse direito à diferença tem sido por eles ultimamente ultrajado. Mas é um aprazível quadro vê-los, que nem baratas tontas, tremendamente ofendidos por haver quem não reconhece as acertadas águas que a nau sulca (se é que não navega por estima, ou até à deriva). É quando por mim sobe um irrefreável impulso para cerrar fileiras no pétreo cepticismo, a crítica sempre na ponta da espada dos argumentos. Talvez até faça a vontade destas virgens ofendidas: andam à cata de críticos que o são só por serem, críticos, cépticos sem razão outra que não essa, a de serem cépticos. Estou-me nas tintas para as suas tácticas, nas tintas para a desesperada via-sacra para convencerem a multidão das incontáveis virtudes do timoneiro que não se desapega do leme.


Há a racionalidade e as emoções. Há muitos que se refugiaram no lado contrário da barricada por razões notórias, que se prontificam a identificar caso seja preciso. Era o que faltava proibir-se a crítica só para não incomodar a maravilhosa condução da nau nem irritar o timoneiro que, arrogantemente, mal convive com os que ousam divergir. É aqui que germina um cepticismo emocional: aquele que transcende das suas razões – certas ou erradas, não vem ao caso – e entra no terreno dos princípios. Quando vejo um zeloso pastor da ordem a tentar cercear a liberdade de pensamento, do pensamento incómodo, desligo-me da matéria racional: aí fala a emoção fundeada no imperativo da defesa de princípios e logo figuro do outro lado da barricada.


Este ruído, insuportável ruído, faz parte do momento. Não deixa de ser insuportável só por nascer das manobras em que as vésperas de eleições são férteis. É a insidiosa doença da democracia, daqueles putativos democratas que se engalfinham na lama da partidarite e cegam a democracia com os seus piores vícios. Que paradoxal cenário, este: os que se ofendem com a crítica metódica e o cepticismo irrecusável nem percebem que são os principais nutrientes do cepticismo e da crítica que tanto os incomoda.


Mal dos seus pecados: enquanto esta for uma terra onde, por muito que lhes custe, vinga a tolerância das ideias, limitam-se a apanhar o restolho do desconforto semeado pelos que figuram entre a ralé dos críticos. Nunca me soube tão bem saber que pertenço a uma ralé. Prefiro esta ralé aos actores muito pequeninos que se julgam habitar numa auréola intelectual, a auréola de onde esmagam os que têm a ousadia de ser adversários de ideias. Essa gente mesquinha, carne para canhão dos figurões da mesma igualha, à uma mestres no amadorismo de todas as coisas, a gente que irradia a ominosa intolerância com os que pensam diferente.


A salazarenta forma de ser que atravessa muito mesquinha gente é o ponto de Arquimedes para a indeclinável crítica, para o aprisionamento no doloroso cepticismo.


5.2.09

Nem a todas as perguntas, resposta


As perguntas fervilhavam, fermentando uma veemente tempestade de ideias. No turbilhão de perguntas, acabava por perder o fio à meada. Como se houvesse um desalinhamento de ideias à medida que as interrogações se encavalitavam umas nas outras. Nem havia tempo para respostas. Ou as respostas, quando emergiam entre a espuma torrencial de dúvidas, perdiam o valor que teriam enquanto as perguntas convocavam a sequência lógica. Dir-se-ia que as respostas se fragmentavam no conhecimento que aparentavam abrigar.


Eram inúteis, pois, as respostas. As divagações só eram santuário se trouxessem atrás a enxurrada de interrogações. Demitia-se das certezas. Demitia as certezas. De cada vez que julgava ter encontrado uma resposta, não a dava como assente. Interrogava a resposta, como se fosse um torcionário a querer extrair, com a violência dos algozes, a verdade pretendida. Era por isso que cada resposta correspondia a um momento amargo. Não gostava de pronunciar, mentalmente que fosse, "eureka".


Era o dilema excruciante: afinal de que serviam as perguntas se as respostas traziam um doloroso pesar? Mesmo quando desembainhava a espada contra as soluções imersas no seu típico brio, afinal só queria outra resposta, uma resposta diferente da que só era equacionada depois de mostrada. Ou talvez não. Talvez fosse o maior verdugo das verdades nascidas pela pena das respostas. Incomodava-se, não com o teor das soluções que espreitavam detrás do horizonte das mentais deambulações. Só se incomodava com respostas. Por elas existirem. Temia que a cada solução estivesse a liquidar o potencial das interrogações. Nem a vastidão do desconhecido, com tantas perguntas à espera de formulação, o sossegava.


Tudo era matéria aberta às metódicas interrogações. Às vezes tudo isto lhe parecia uma encenação, apenas uma vazia encenação. Um pretexto para aquecer o descontentamento com o que lhe era exterior, começando a disparar sobre o âmago de si. As negações de respostas eram o prazer sublime. Era aí que se escorava o interminável rosário de interrogações. Impunha-se desfazer de cima a baixo as verdades que eram assim apresentadas, verdades. Nem que fosse para avivar o incómodo dos detentores dessas verdades. Mas o que mais apreciava era esmagar as pessoais convicções. Queria desafiá-las, constantemente. Até a, porventura, pôr em causa a sua identidade.


Era como se fosse um navio que se escondia das águas mansas, da claridade do sol, dos ventos frescos que varriam as nuvens. Era como se esse navio fundeasse sempre nos mares tumultuosos, as ondas a cavalgarem o enjoo das ideias feitas, só o céu tão plúmbeo a alimentar o vórtice de interrogações. Às vezes aportava em demanda de imaginários portos seguros, tecendo-se em seu convidativo leito para a aquietação da tempestade de ideias. Logo a ânsia pelas nuvens amontoadas que carregavam as tempestades tratava de subtrair da letargia. Parecia que vogava sem rota, a não ser a rota que encaminhasse ao istmo de onde brotavam as tempestades. Onde todos os sentidos se alimentavam, vorazmente.


Às vezes, também, refém de um infinito sono que não sabia se era apenas sono ou pesadelo. Havia alturas em que tinha a certeza que era pesadelo. Só não anuía na certeza por a desafiar no seu terreno. Era pesadelo quando sentia que o pensamento navegava em círculos, regressando ao ponto de partida: mais uma interrogação no durável amuo pela resposta que convocara. Era quando notava que o sono não navegava nas águas abertas dos oceanos todos; assemelhava-se a um esquizofrénico labirinto com as paredes sempre iguais apenas a mudarem de cor. A aparência de lugares diferentes, quando depois de andarilhar em círculos aportava ao mesmo lugar.


Sobravam paradoxais sensações. Uma, ingrata, por descobrir que regressava sempre ao lugar de onde partira, declinadas as respostas no pretexto de partir em demanda de renovadas interrogações. Contudo, era essa a sensação que reanimava: os olhos sempre vigilantes num bramido de conhecimento, nem que fosse na meticulosa arte de desafiar o estabelecido. Nem que fosse para descobrir – acaso interessasse – que isto não passa tudo de uma tremenda alucinação.