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Queria ser guru. De uma causa qualquer, mas guru. Queria ter seguidores. E ser adulado. Queria saber que o seu nome não se dissipava ao vento das inumeráveis vezes que escorria pela escrita dos outros, pelas palavras soltas das suas bocas. Queria ter a paternidade de uma teoria, ao início promissora. Depois testada e discutida, com os seus párias e todo um exército de discípulos a crescer todos os dias.
Queria que a teoria fosse um farol inspirador. Da ciência, da cultura, da literatura – não importava do que fosse, desde que fosse uma teoria retumbante, o oratório onde iria buscar reconhecimento planetário. Queria ser requisitado pela imprensa, convidado para palestras, exortado para emprestar o nome como patrocinador intelectual de iniciativas diversas. Queria ter uma agenda tão completa que deixaria de a domar sozinho. Queria viajar à conta da teoria da sua lavra. Queria que as pessoas se acercassem do seu púlpito, com reverência, rogando dois minutos de conversa. Queria conhecer pessoas (umas interessantes, outras não) à custa da ousadia da teoria. Queria aparecer no mapa, ver as luzes dos holofotes apontadas sobre si, ser um radar sintonizado por uma multidão.
Queria tudo isso. Só com um propósito: deixar a poeira tomar conta do chão, deixar cair os tentáculos da autoridade intelectual sobre a teoria (os dissidentes sovados para um canto onde sobrasse a sua irrelevância). Para a renegar com as palavras da renegação soletradas sílaba a sílaba em coloquial evento cheio de personalidades respeitosas, com a voz pausada para que não sobrassem dúvidas. A seguir faria por sua vontade um teste à alcoolemia, só para provar a sobriedade tão solene quanto a ocasião o exigia.
Queria edificar uma teoria que trepasse quase aos píncaros do incontestável. Só para ter o sublime prazer de a abjurar quando já tivesse chegado ao estatuto de suprema autoridade. Para ver os rostos admirados do séquito incondicional. Para os notar, azamboados como se fossem baratas tontas debaixo do fogo inimigo de Sheltox. E depois ter o sublime prazer de se sentir escorraçado pelos outrora discípulos, como se houvesse lugar a uma lapidação por pecado herético (o desvio da teoria da sua lavra).
Queria tratar do tempo a desmontar, um a um, os argumentos que tornavam a teoria numa consistência. Queria provar que os anos dedicados à sua fundamentação foram anos desperdiçados num tremendo equívoco. O maior desafio de todos: mostrar os anos perdidos em convicções a que, enfim, se emprestava a espessura da falsidade. Queria ver o dia da acusação por embuste intelectual. Para ser reduzido a escombros, o prestígio esculhambado às cinzas da insignificância.
E quando já fosse um zé ninguém entre os pares, retomar a criação de outra teoria. Outra qualquer. Desde que estivesse na contraposição da teoria repelida. Só para sentir o prazer de remover as coriáceas barreiras erguidas mal o seu nome fosse entoado como perpetrador de um raciocínio. Queria sentir as dolorosas cicatrizes que se pespegam num apóstata. E queria, outra vez, pegar nas cartas tão harmoniosamente amontoadas para, num safanão seco, as depor a entulho. E escutar as vozes condoídas do séquito, berrando a incompreensão do acto.
Queria. Só para deixar de ser guru.
2 comentários:
O verdadeiro guru terá de passar todas as provas para subir a tal cátedra. É precisamente a queda que o torna supremo e capaz do reerguer pretencioso...
E o cheiro volátil dos ftalatos nas coisas novas é verdadeiramente viciante!
Um séquito já tens
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