15.4.11

Silhueta

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Que vulto estonteante, curvilínea, se passeava todos os dias na penumbra matinal que embaciava o jardim? Às mesmas horas, o mesmo corpo adelgaçado num vestido aprumado – até parecia que passava em desfile de moda. A penumbra matinal ofuscava-lhe o rosto. O chapéu, diferente todos os dias, adensava a figura misteriosa que deslizava entre as buganvílias com a suavidade de um cisme.
Habituara-se a olhar para o relógio àquela hora para ele tão madrugadora. Travara conhecimento com a silhueta enigmática por acidente. Um dia o despertar fora extemporâneo, sem saber se a embriaguez da noite anterior já se confundia com a ressaca. Vomitara com o dolo dos foliões. Não lhe apetecera retomar as horas que devia ao sono. Pegou na garrafa de água mineral que prometia sarar as feridas da azia, arrastando os pés até à janela por onde entravam à força os primeiros sinais de sol. Cambaleante, cegou-se com a primeira luz clara da manhã. Deu de caras com o vulto que trajava um extravagante vestido carmim. Jurara que estava no meio de um sonho. Daqueles sonhos em que há pessoas a jeito de um afago e, todavia, uma qualquer algema mental aprisiona a mão.
Encarcerado no torpor matinal, demorou a perceber: não estava mergulhado em sonho nenhum. A mulher escorregava pé ante pé. O olhar parecia fixado no firmamento, desinteressado da vegetação e dos lagos onde os patos ecoavam, em contido alvoroço, a sua alvorada. Os olhos seguiram o percurso da elegante mulher que ao longe mais enigmática silhueta se tornava. No dia seguinte, o corpo acordou por espontânea vontade. Irritou-se. Àquela hora tão matinal não havia serventia alguma na alvorada. Depois do inicial torpor, um flash mental electrizou-o: tomara que o vulto misterioso estivesse outra vez na deambulação que no dia anterior incendiara o desejo.
Saltou da cama, de rompante. Atropelou a roupa desarrumada no chão. Antes, para chegar à embocadura do quarto, atropelou a que fora companhia naquela noite. Olhou para o relógio da sala. A hora era quase a mesma da véspera: dez minutos mais cedo. Precipitou-se para a mesma janela onde o sol não rompia (a aurora antevia a chegada da chuva). O jardim era só o chilrear dos pássaros madrugadores e o coaxar das rãs. Não havia vivalma. Mas não eram as vivalmas que lhe serviam a excitação. Quase desistia, derrotado pelo sono que ainda estava para dobrar, quando notou o vulto ao longe. Desta vez trazia um vestido azul marinho, mais curto, deixando entrever a curvatura dos joelhos. E mais cintado: uma cintura adelgaçada, parecia que meio braço conseguia açambarcar aquela cintura. Seguiu-lhe os movimentos mortiços, até terminar a ronda pelo perímetro do jardim. Depois, como na véspera, evaporou-se.
O resto do dia foi de cabeça aérea. Aquelas imagens fermentavam os olhos em brilho. Nessa noite sonhou com a mulher insondável. Os dias seguintes começavam com uma alvorada prematura, uma rotina que se instalara: a procissão dos pés arrastando-se até à janela, onde os olhos se deliciavam com o vulto que velava os vestígios do rosto. Nem sequer da cor do cabelo havia uma transparência.
Ao décimo primeiro dia, um frémito tomou conta dele. Calçou os primeiros sapatos que encontrou no caminho e desceu atrapalhadamente as escadas. Nem o ar frio desencorajou de atirar o corpo pouco agasalhado para o meio do jardim. Foi de encontro à silhueta. Mal se aproximou, ela soergueu o rosto e, apavorada, inverteu a viagem. Estugou o passo em manifesta fuga do intruso. Que era ele. Na voragem do instante, reparou numa melena de cabelo negro e hirsuto. E na máscara que escondia o rosto.
Voltou à janela nos dias seguintes, sempre à mesma hora. E mais cedo, ora mais tarde, prolongando a vigia. Mas nunca mais os olhos se puseram naquela silhueta enigmática. 

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