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Caminho pela rua enquanto o sol primaveril resfolega temperatura estival. Ao cimo da rua, a passo de caracol, desce um carro velho, a pintura desbotada pelas muitas horas de sol e correspondente falta de garagem. Transporta um casal de velhinhos (diria septuagenários) que gesticulam com abundância. Como o estio antecipado convidava às janelas desembaraçadas para receberem o frescor, notei que os velhinhos iam numa refrega acalorada. Deu para entender o chorrilho de impropérios que ela disparava, ao que ele ripostava com vozearia e esbracejar que perigava a segurança da condução.
Hoje o mundo amanhece com uma excitação colectiva por o herdeiro da coroa britânica esposar uma plebeia. Gostava de compreender o que leva tanta boa gente a deitar os olhos a um casamento que não seja o próprio. Descontando as fantasias febris de umas adolescentes com rosto embebido em acne e as fantasias inofensivas de trintonas, quarentonas e cinquentonas que parecem resgatar os tempos áureos de matrimónios exauridos, ainda estou à espera que me expliquem a algazarra que por aí vai. Ou pondo a interrogação em tom menos coloquial: qual é o contributo desta boda real para o avanço do mundo?
Que os súbditos da coroa britânica (os que ainda ajuramentam fidelidade canina à monarquia) andem extasiados com a boda, é coisa natural. Que os de fora percam minutos e horas e dias inteiros a desenovelar os detalhes mais ínfimos da festança, é algo que transcende o meu entendimento. Qual é a serventia desta boda? As dondocas militantes – as solteironas que não conseguem soltar âncora do celibato e as tias vaporosas que se entretêm com bodas luminescentes dos outros para compensar as decepções do matrimónio próprio – entram numa torre de marfim que é um mundo repleto de ilusões.
Dizem-me que as quatro televisões generalistas vão transmitir a boda. Não há alternativa para os comuns dos mortais sem televisão por cabo. É casamento real, ou casamento real. Ou televisão apagada. Lá pelo meio da função, quando todas e todos estiverem no auge do encantamento com as imagens que fazem lembrar fadas que distribuem regalias pelas desaventuradas, talvez haja muitas cabeças na lua. Muitas cabeças a sonharem acordadas. Não estou a insinuar que os sonhos sejam coisa ruim. Mas tanto sonho em uníssono é falta de imaginação.
As monarquias, essa coisa arcaica, mostram serviço de actualização à contemporaneidade. Dantes, os príncipes e as princesas só podiam casar entre si. Era uma coutada fechada à ralé. Agora as monarquias desembestaram a poeira dos sótãos mentais e admitem que os seus percam aquela apetência para o quase incesto e troquem fluidos com gente plebeia. O povo encanta-se com o modernismo. As regalias sanguíneas (como é sabido, a nobreza distingue-se por trazer nas veias sangue azulado) já não servem para excluir. Os mais jovens membros das realezas também querem experimentar as delícias plebeias. É a inflação das fantasias de muita gente enamorada pela tremenda abertura mental das realezas. As monarquias também se democratizam!
Um salto em frente no tempo, até a um dia daqui a quarenta anos. Só para um mirone, testemunha de uma desavença conjugal entre o casal do momento, vir do futuro até ao dia presente para narrar o episódio. Descontando a grosseria do casal de velhinhos que discutia com fúria dentro do velhinho Renault 5, haverá outras diferenças?
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