27.4.11

Com punhos de renda, a boçalidade


In http://barbaranonato.files.wordpress.com/2011/02/garcon1.jpg
(Para ser lido com a entoação que Mário Viegas emprestava às declamações de poemas)
Naquele fim de tarde, um pipi emproado aterrou na mesa do lado. O nariz virado ao alto, as golas da camisa em pose negligente, já sem a gravata vistosa que anelara aquelas golas, a farpela toda ela donairosa. Até trazia botões de punho na camisa de cerimónia. Amesendou. Em estando o estaminé a meia casa, o distinto exemplar de uma elevada casta incomodou-se com a demora no serviço. “Homessa!” – pensou com os seus doirados pergaminhos – “estou aqui sentado há quase dois minutos e nenhum empregado se dignou perguntar pelo serviço que queria encomendar”.
Contrariado, uns sopros de azia soltando-se entrementes, o pipi garboso estendeu a mão ao alto e com um gesto intempestivo chamou o imediatamente acabrunhado garçon enquanto os olhos percorriam os passos de uma loura vaporosa que passeava uma negra e curta minissaia. Interpelado pelo empregado de mesa, o pipi dos punhos de renda disfarçou indiferença. O rapaz ficou inerte, sem esboçar uma reacção, não fosse atraiçoar o segundo mandamento das relações públicas da casa (“não incomodarás o cliente”). O distinto homem de meia idade disparou com voz seca, sem olhar para o servente: “traz-me um fino e tremoços”.
A mãezinha ensinara que os tratos de polé de uma educação refinada, que exigem a expressão “por favor” quando se pede um favor a alguém, só têm serventia quando são destinados a gente da mesma igualha. Os de condição inferior, como decerto o são os que servem à mesa, não merecem tamanha regalia. Os serventuários foram feitos para trazerem os pedidos dos clientes à cozinha e regressarem com as encomendas na sua diligência.
Não passaram três minutos e a personagem toda empertigada, enquanto lambuzava os dedos depois de enfiar no bucho os primeiros tremoços, chamou o empregado de mesa com distinta arrogância. Outro gesto autoritário, a mão farsante a arquear o humilde servente até à mesa. Outra vez a voz afirmativa em tom despótico: “estes tremoços estão insossos. Traz-me sal.” Nem o terceiro fino demoveu a pesporrência. E o empregado de mesa afundando-se na pequenez a que era acantonado pela nobreza resplandecente do ilustre de alpaca.
No fim da função, ergueu a mão com o desdém rotineiro e requisitar a conta. Antes de pegar no dinheiro, inspeccionou a factura com minúcia – como se uma malga de tremoços e três finos equivocassem as contas. Como tinha que terminar a tarde incomodando alguém que estivesse na base da pirâmide da religiosa hierarquia social que tanto prezava, esperou que o rapaz viesse recolher o dinheiro – o dinheiro bem contado, sem um cêntimo para amostra de gorjeta. Só para o altaneiro representante de uma superior casta deixar a derradeira impressão digital, enxovalhando o pobre rapaz que já não sabia onde se meter de cada vez que era chamado à aziaga mesa. Os nós dos impacientes dedos batiam na mesa enquanto o rapaz arrastava, a medo, os sapatos. Para ouvir estas palavras troarem da boca encolerizada da donairosa personagem:
- Diz ao patrão que os tremoços têm que ser salgados. E a cerveja que me serviste estava choca e tépida. Diz ao patrão: que o estabelecimento já teve os seus melhores dias.
No dia seguinte, sensivelmente à mesma hora, lá compareceu o idiota da superior casta para afogar as angústias de um dia de trabalho enfadonho. E as angústias da sua vidinha, da miserável vidinha que levava.

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