5.4.11

The ideal crash


dEUS, "The Ideal Crash"
O penhasco diante dos pés. Já sabia de cor as dores excruciantes das outras vezes em que se despenhara em tresloucada vertigem. Desta vez, tudo se compunha para uma aterragem suave depois dos safanões, como se o corpo fosse centrifugado dentro de uma máquina de lavar. Acreditava. Era um sussurro de um pássaro faz-de-conta, que tomava em devida conta como protector, que pressagiava o passo certo.
De que serviam as cicatrizes que penhoravam equívocos pretéritos? Volta e meia, lançava esta perturbante interrogação e ficava com ela a estalar na boca horas a fio. Atemorizava-se quando recuperava do antigamente as imensas dores das feridas que o corpo ganhara. Na hora H, um impulso arrebatador, vindo da profundidade insondável, arrojava os pés para a frente. Diria, até: um impulso vindo de fora de si, só para ter à mão de semear o pretexto que o desculpasse de outro, mais outro, passo em falso.
Desta vez – convencera-se, enquanto passava as mãos pelo cabelo sedoso dela – não havia tragédias que adestrassem a lucidez dos instintos. Desta vez, os meandros desalinhados não caíam no seu caos. Nem se desassossegavam as palavras subitamente desapossadas do seu sentido. Nos emaranhados anteriores, por entre as paredes viscosas de labirintos escuros, andara ao deus-dará. Desprotegido perante a luminosidade do néon que prometia derrotar as sombras que deixaram de fora, por anos a fio, a sagração das coisas profícuas.
E o precipício mesmo ali à frente, tão convidativo. As pulsões interiores acomodavam o leito da adrenalina que despenteava a racional sensatez. Um frémito intenso percorreu a coluna vertebral e, dois passos depois, estendeu um salto no imenso vazio. Era como se fosse um sonho, um interminável sonho. O peso do corpo reduzira-se a nada. Já nada o arqueava. Tudo era leveza. Uma leveza que convocava a liberdade em estado puro. Uma embriaguez de liberdade com dois toques de exuberância de que não havia saber. Durante o interminável sonho, parecia planar sobre as paisagens todas. Ora belas, ora as sombrias – que também lhes era reservada serventia como caução das paisagens bucólicas que passavam debaixo do corpo estendido durante o voo planado.
Às vezes, sobressaltava-se o corpo em torpor. Uns anjos negros teimavam em espetar-lhe garfos afiados só para embotar o sonho encantador. Mas soubera-se vacinar. Descobrira que sucumbir à pungência dos atritos da racionalidade era o engodo fatal. Descobrira. Que as atamancadas vielas que outrora conduziram a precipícios dolorosos eram uma cilada da racionalidade apessoada. Agora levantava as âncoras para deixar passar as águas caudalosas dos sentidos. O corpo haveria de se embrulhar nos contrafortes do precipício. Seria um precipício fundo mas com um declive ameno, atapetado com musgo que escorava os trambolhões em que se debatesse.
Despenhava-se no profundo, medonho precipício de que não se conseguia ver os fundilhos. Mas era o despenhamento perfeito. Aquele em que as vozes assertivas, entoando os pregões da razão, eram apenas um aflito vociferar mudo. Agora, a tirania – a tão doce e aceitada tirania – era do momento que se consumia.

Sem comentários: