Três Tristes Tigres, “Zap Canal”, in https://www.youtube.com/watch?v=ryOYr9GWXI8
Agora que o parlamento reprovou a eutanásia, uma pergunta que não vi ninguém fazer: fora do entendimento (admito que maioritário) de que o Estado deve legislar sobre tudo, não sobra espaço para o livre arbítrio? Temos de contaminar a discussão sobre a eutanásia com aspetos exteriores à vontade de quem poderá estar na condição subjetiva de piedosamente clamar por um ato de morte sua (como os médicos e a sua consciência, o prosperar de um mercado da eutanásia – e, ah!, como sabemos que os mercados são sempre vis entidades... –, ou o totalitarismo das crenças religiosas que se abate sobre a vontade individual)?
Não sei se os opositores à eutanásia passaram pela excruciante experiência de verem um ente querido definhar até à morte. Não sei se alguma vez foram testemunhas do ato inumano que é esperar pela falência de um corpo quando a doença é irremediável – e o corpo devolvido a uma sacrificial câmara lenta. Não sei se, mesmo os que têm arreigadas convicções religiosas e, assim, ficam reféns delas, continuam a defender a proibição da eutanásia tendo passado pelo sofrimento de verem o humilhante sofrimento de alguém até ser levado pela morte. Não sei se essas pessoas, elas também, não foram contaminadas por um duplo sofrimento: o de verem o definhar do ente querido no leito de morte, sendo carne própria do sofrimento da pessoa em condenação irremediável, e do sofrimento próprio – pois não é de ânimo leve que se transita pelo tempo enquanto dura o ato soez do prolongamento do penar de quem espera demoradamente que a morte o leve. Não sei se alguma vez passaram por uma experiência que não se recomenda; nem sei se, confrontados com tal provação (própria e de quem se entrega ao padecimento da morte sem dia aprazado), no caso dos tementes a deus e cultores do catecismo católico, continuam a pensar que deus é bondoso e que a dilação do sofrimento é um ato caritativo de deus.
Se este texto puder funcionar como testamento vital (não me interessam as convenções legais, se o permitem ou não), deixo a vontade lavrada para memória futura: caso seja tomado de assalto pelo vulto intempestivo da doença sem remédio, quero ser poupado ao sofrimento. Até hoje não fiquei convencido que o sofrimento seja apanágio do bem-estar da espécie. Admito: ninguém é imune ao sofrimento ao longo da existência; a carestia do bem-estar não se compadece com a ausência de episódios de sofrimento, porque são estatisticamente dotados de uma elevada probabilidade, na exta medida de que o mundo está longe de um ideal de perfeição, e porque o significado do que é bom supõe a experiência da sua antítese.
Quero, pois, ser poupado ao sofrimento inútil. Quero levar da vida um derradeiro retrato que não seja o do sacrificial vulto do padecimento gratuito. Quero que arranjem modo de me tirarem a vida antes que o sofrimento consuma todas as minhas forças e, exangue delas, capitule aos braços da morte. Dispensarei juízos morais, pois a vida é minha e eu sei o que fazer com ela. Enquanto for vivo e se a morte vier aos ombros de uma temível doença. E no momento em que a morte se anunciar, dilacerante. Dispensarei a mordaça da sociedade acutilante, sempre preparada para ser vigilante do que considera desvios aos cânones, punindo-os a preceito, pois a sociedade deve reger a vida em conjunto e as decisões individuais (como o destino da vida em circunstância de sofrimento ditado pelo anúncio da morte sem data) fogem à tutela da sociedade.
(E por isso considero, numa deriva ortodoxa, que nem sequer devia haver legislação a enquadrar a eutanásia. Seria, apenas, o produto de uma decisão individual.)