31.5.18

Corpo em câmara lenta (ou a matéria cinzenta da eutanásia)


Três Tristes Tigres, “Zap Canal”, in https://www.youtube.com/watch?v=ryOYr9GWXI8
Agora que o parlamento reprovou a eutanásia, uma pergunta que não vi ninguém fazer: fora do entendimento (admito que maioritário) de que o Estado deve legislar sobre tudo, não sobra espaço para o livre arbítrio? Temos de contaminar a discussão sobre a eutanásia com aspetos exteriores à vontade de quem poderá estar na condição subjetiva de piedosamente clamar por um ato de morte sua (como os médicos e a sua consciência, o prosperar de um mercado da eutanásia – e, ah!, como sabemos que os mercados são sempre vis entidades... –, ou o totalitarismo das crenças religiosas que se abate sobre a vontade individual)?
 Não sei se os opositores à eutanásia passaram pela excruciante experiência de verem um ente querido definhar até à morte. Não sei se alguma vez foram testemunhas do ato inumano que é esperar pela falência de um corpo quando a doença é irremediável – e o corpo devolvido a uma sacrificial câmara lenta. Não sei se, mesmo os que têm arreigadas convicções religiosas e, assim, ficam reféns delas, continuam a defender a proibição da eutanásia tendo passado pelo sofrimento de verem o humilhante sofrimento de alguém até ser levado pela morte. Não sei se essas pessoas, elas também, não foram contaminadas por um duplo sofrimento: o de verem o definhar do ente querido no leito de morte, sendo carne própria do sofrimento da pessoa em condenação irremediável, e do sofrimento próprio – pois não é de ânimo leve que se transita pelo tempo enquanto dura o ato soez do prolongamento do penar de quem espera demoradamente que a morte o leve. Não sei se alguma vez passaram por uma experiência que não se recomenda; nem sei se, confrontados com tal provação (própria e de quem se entrega ao padecimento da morte sem dia aprazado), no caso dos tementes a deus e cultores do catecismo católico, continuam a pensar que deus é bondoso e que a dilação do sofrimento é um ato caritativo de deus.
Se este texto puder funcionar como testamento vital (não me interessam as convenções legais, se o permitem ou não), deixo a vontade lavrada para memória futura: caso seja tomado de assalto pelo vulto intempestivo da doença sem remédio, quero ser poupado ao sofrimento. Até hoje não fiquei convencido que o sofrimento seja apanágio do bem-estar da espécie. Admito: ninguém é imune ao sofrimento ao longo da existência; a carestia do bem-estar não se compadece com a ausência de episódios de sofrimento, porque são estatisticamente dotados de uma elevada probabilidade, na exta medida de que o mundo está longe de um ideal de perfeição, e porque o significado do que é bom supõe a experiência da sua antítese.
Quero, pois, ser poupado ao sofrimento inútil. Quero levar da vida um derradeiro retrato que não seja o do sacrificial vulto do padecimento gratuito. Quero que arranjem modo de me tirarem a vida antes que o sofrimento consuma todas as minhas forças e, exangue delas, capitule aos braços da morte. Dispensarei juízos morais, pois a vida é minha e eu sei o que fazer com ela. Enquanto for vivo e se a morte vier aos ombros de uma temível doença. E no momento em que a morte se anunciar, dilacerante. Dispensarei a mordaça da sociedade acutilante, sempre preparada para ser vigilante do que considera desvios aos cânones, punindo-os a preceito, pois a sociedade deve reger a vida em conjunto e as decisões individuais (como o destino da vida em circunstância de sofrimento ditado pelo anúncio da morte sem data) fogem à tutela da sociedade. 
(E por isso considero, numa deriva ortodoxa, que nem sequer devia haver legislação a enquadrar a eutanásia. Seria, apenas, o produto de uma decisão individual.)

30.5.18

O ateador de fogueiras


Prince, “Purple Rain”, in https://www.youtube.com/watch?v=TvnYmWpD_T8
Foram proveitosas as aulas de química: o fogo tem o predicado de tudo consumir na sua imparável voracidade. Com a combustão a elevada temperatura, sobram umas cinzas indistintas. Não ficam restos para contar ao futuro o que foi o passado. 
A certa altura, considerou que tinha em mãos o desafio da imperscrutável História, da História incómoda que não o largava. Talvez o segredo para resolver o imponderável, fosse tornar-se incendiário. Não um incendiário vil, que ateia fogos em florestas feitas de árvores a sério, apenas com o prazer de ver o fogo tornar-se invencível, ou apenas como peão da terrível maquinação dos interessados em tirar partido de florestas carbonizadas. Seria incendiário do passado incómodo. Logo ele, que tanto vituperava a soviética condição do revisionismo histórico; convenceu-se, porém, que se tratava de planos diferentes. A limpeza do seu registo passado não afetaria ninguém. Melhor dizendo: podia dar-se o caso de expurgar umas quantas pessoas dos anais, mas não seriam informadas do facto. Era um bem superior que se adensava no fio da memória: era imperativo resgatar alguma serenidade para se reconciliar com a História sua. Se tivesse de ser à custa de fogueiras ateadas, qual censor de si mesmo, não havia outro remédio.
Não contou a ninguém. Tinha a certeza que seria desaprovado nas suas intenções, pelo cisma que é reinventar o acontecido através de uma lente que separa os acontecimentos incómodos e os destina à pira onde são incensados. Seria uma função que só ele saberia acontecer. 
A seletividade impunha-se. Teria de recuperar da memória aquilo que queria dela banido. Era um exercício esquizofrénico. À medida que inventariava os relapsos momentos de antanho, ateava a grande fogueira onde seriam consumidos. Era tarefa para demorar – o inventário e o incensar da larga fogueira. A coincidência vinha a calhar. Não era com ligeireza que se separavam os acontecimentos. Primeiro, era necessário compulsá-los. Saber os que eram desmerecedores de inscrição nos painéis que habilitam a memória. Segundo, era preciso avaliar se um acontecimento em forma de sobressalto tinha mesmo sido um sobressalto; não se podia dar o caso de a seletividade extravasar o razoável e pedaços largos da memória acabassem obliterados (para não haver o risco do refazer da identidade). Terceiro, era preciso ter o desassombro de renegar o que havia a renegar, definitivamente, através da sua redução a cinzas por ação da fogueira. Era preciso ter a noção que a fogueira não admitia retrocessos. 
Acabou por ser modesto. A fogueira ateada era um pequeno fogo onde apenas meia dúzia de resgatados atos foram atacados pela combustão. O pior, era a ideia de que por mais voraz que tenha sido a fogueira ateada, não tinha sido possível banir esses proscritos acontecimentos do inventário da memória. A memória era ignífuga. Antes que fosse totalmente consumido pela fogueira – não fosse decair na tentação de a tornar indomável, para perceber se conseguia arregimentar mais memória ateada –, recuou nas intenções. Apagou a fogueira e aprendeu a conviver com o eu que era o lastro de todo o tempo pretérito.

29.5.18

Da perplexidade invasiva


Iguana Garcia, “60KF”, in https://www.youtube.com/watch?v=SkuUjwZpbgg
Um exemplo: a companhia. Será companhia como sinónimo de empresa, ou a companhia das pessoas que se têm por companhia? A companhia cultiva-se; seja quando se é titular de uma empresa, seja a das pessoas que entram no restrito rol dos que fazem companhia. Se a companhia fracassar, a empresa vai à falência. Dissolvida a companhia, ela perde sua função. É uma orfandade. Se a companhia se perder e a sua presença for substituída pela ausência, também é uma orfandade. Podem ambas as orfandades ser efémeras, mas trazem consigo um custo: a angústia, a melancolia invasora, a sensação de perda, o encontro com o desencontro de si mesmo. 
De que serve o desamparo de uma companhia? No caso da empresa, ela perde-se no labirinto da concorrência. Se não suporta os desafios das mais capazes, a companhia perde o chão que seria seu amparo. Perde-se o sustento, com o malogro da companhia. Os alicerces são atirados à equação da subsistência. Há casos de miséria consequentes ao definhar de uma companhia. Há responsabilidades que vêm por acréscimo. Os contratos não honrados. O desemprego para que são atirados os que laboravam na companhia. Os débitos que ficaram por saldar. Possivelmente, um mau nome selado na praça do comércio. Uma certa dose de vergonha a abater-se sobre as pálpebras humilhadas. A carência de sustento para os mais próximos.
Se a companhia tiver por referência pessoas que se habilitam como tal, o desamparo da companhia é, por vezes, o sentir excruciante de uma dor. Admita-se que cada um de nós é o produto da sua identidade, da sua personalidade intrínseca, de todas as influências em que nos embebemos; mas também, das influências que recebemos dos outros que temos por companhia. Nem os mais acérrimos verbetes de narcisismo escapam à exposição ao ambiente exterior. Até porque um narcisista precisa de um outro – de muitos outros – para cimentar a afirmação do seu eu centrípeto. O que acontece quando uma companhia é dada como perdida é mais doloroso para o narcisista. Por mais que invoque, a seu favor, a imensa constelação de outros que alimentam o seu ego, a companhia perdida aumenta de valor depois de ter sido dissolvida do mapa das companhias.
Só os ascetas se refugiam do marear das ausentes companhias. O isolamento metódico é a caução. Sozinhos, não precisam de companhia. Dispensam as companhias. Do mais fundo das masmorras em que vivem aprisionados, trocam a melancolia (que não reconhecem) pela ausência das excruciantes dores se fossem assaltados pela perda da companhia. Se perguntarem a um sociopata, ele confirma-o: “os outros são o inferno”, dirá, sem contudo se aperceber como é tangente a sua existência com a do narcisista.

28.5.18

A incompetência não é de propósito


Unknown Mortal Orchestra, “Everyone Acts Crazy Nowadays”, in https://www.youtube.com/watch?v=ad2Iy0DMCWU
Não é uma convocatória à comiseração. No máximo, é condescendência; e a condescendência não chega a assumir os foros da comiseração. Na condescendência, toleramos um certo atributo, um certo gesto, um punhado de palavras; toleramo-los, apesar de nos serem desagradáveis, às vezes até roçando a agressão – e toleramos porque não queremos ser fautores de julgamentos de ninguém e os atributos, ou os gestos, ou as palavras pertencem a quem teve sua autoria. 
Na comiseração é diferente. Olhamos com piedade para alguém e, desse modo, não conseguimos reprimir (mesmo que seja involuntária) a noção de que olhamos para um desgraçado que precisa de ombro para seus prantos. O mais certo é não estarmos disponíveis para emprestar o ombro, mas não deixamos de verter uma lágrima de pena pelo desgraçado. Não se sabe se a comiseração adianta alguma coisa: não corrige o infausto que se abateu sobre o comiserado, que continua imerso em sua desgraça, não sendo dissolvida na exata medida das doses de piedade que sobre si são ungidas; poderá, no limite, desembaraçar as teias que aprisionam os fundilhos das consciências de quem julga que a comiseração alivia as dores respetivas.                
Dizem que a incompetência é uma praga. Pressuposto: a incompetência não é propositada. Quem, no seu perfeito juízo, admite fazer de propósito para ser tido pelos outros como um incompetente sem remédio? Tirando os casos (que são exceção) de gente que tem a patologia da autopunição e dos outros que costuram uma estratégia para serem empurrados para fora sob o pretexto da sua incompetência, não parece que alguém caia no rodo da incompetência por livre e espontânea vontade. Ou seja: a incompetência é inata – e nisso há alguma espontaneidade, mas que se sobrepõe à vontade do incompetente, pois fora das exceções assinaladas não há vivalma que queira ser incompetente.
Deste modo, não devemos condenar os incompetentes ao degredo. Não os devemos isolar num redil onde são mostrados como antítese do que devem ser os competentes quando se esforçam por sê-lo. (Até porque a subjetividade dos juízos, e o entendimento do que é competência e o seu contrário, atiram muita plasticidade à função.) Talvez seja caso para exibirmos alguma comiseração aos incompetentes, mesmo que da incompetência sejamos vítimas. Não devemos esquecer: não são incompetentes de propósito; está-lhes no sangue. Resta-nos lamentar a sua condição. Sem efabulações suplementares, sem deles escarnecer, não permitindo que o juízo crítico ultrapasse os limites de alguma civilidade.

25.5.18

Como ser uma pessoa recomendável


Trentemøller, “Gravity”, in https://www.youtube.com/watch?v=vV3U6j8ZGuw
Tenho-me por pessoa recomendável (não é que o assunto assalte o sono). Sei que sou juiz de mim próprio para assim me considerar. E sei que juízos outros poderão não afinar pela concordância, podendo haver fundamentadas razões para desalinhar do preceituado acerca dos meus pergaminhos. Para os que se têm a si mesmos em muito elevada consideração, e apenas para os casos em que não há entorses à honestidade intelectual (porque um crápula pode saber que o é e, em total negação de si mesmo, ou só por provocação, se considera pessoa reputada), ser tido como pessoa recomendável é um processo moroso.
Há uma questão lateral que pode contaminar uma reputação: se me der com pessoas não recomendáveis, torno-me uma pessoa não recomendável? A vulgata dirige a resposta para o sim; o convívio com pessoas de duvidosa reputação atua como doença contagiosa: quem não é pessoa não recomendável transfigura-se numa por osmose quando passa muito tempo com pessoas que sejam habilitadas no mercado das pessoas não recomendáveis. Parece conclusão precoce e superficial. Parte do pressuposto que a má reputação, e os atos que com ela vêm de mão dada, se colam irremediavelmente aos que, à partida, são à prova de bala. Não se conta com a personalidade da pessoa que se expõe ao escol dos de má reputação – se for forte a personalidade, é imune aos desvios que o determinam como pessoa não recomendável. Não se admite a possibilidade de a influência atuar em sentido contrário: os que não são recomendáveis podem ter um súbito sobressalto e reveem-se no companheiro recomendável, querendo imitá-lo e abjurando o capital de desconfiança que era nutrido pelos seus maus pergaminhos.
Haveria muito a indagar sobre os cânones que autorizam as conclusões sobre a “recomendabilidade” de uma pessoa. Por que estalão se determina que uma pessoa não é recomendável? Quem ajuíza? Damos crédito ao julgamento se tiver a autoria de uma pessoa recomendável (aos nossos olhos) e o mesmo crédito se ele partir de uma pessoa não recomendável (também pela nossa bitola)? Não pode operar um efeito aritmético de anulação de dois iguais, arvorando à condição de pessoa recomendável alguém que tenha sido atirado para o opróbrio de não ser recomendável por alguém que, manifestamente, não é recomendável? E o contrário: quando, em clara sintonia que se confunde com um cerimonial de proteção de casta, uma pessoa recomendável recomenda outro seu par como pessoa recomendável, podemos desconfiar da solidariedade corporativa e escolher uma delas (ou, se calhar, as duas) como pessoa não recomendável?
Ser uma pessoa recomendável não obedece a roteiro. Não importa invocar valores e o seu imperativo respeito como precondição para entrar no olimpo dos recomendáveis. O conceito (de pessoa recomendável) é como o vento que se esquiva entre os dedos das mãos que o querem emoldurar: impossível de delimitar. Uma desimportância. 

24.5.18

Deixa andar


Rhye, “The Fall”, in https://www.youtube.com/watch?v=JJS5ywEIsA4
Princípio geral das facilidades: não levantarás o seu antídoto para não soçobrarem no caminho os peticionários. Não infundirás injustiça, para não te terem como persona non gratano vasto mar onde se aninham as facilidades entronizadas como direito constitucional. Deixarás andar. Se atrasos se sobrepuserem ao calendário, não te importes: os atrasos punem quem deles for fautor. Se for invocado o preceito culturalmente arreigado das facilidades constitutivas, não recuses a exortação: poderás ser movido para o desconfortável escol dos párias. 
(A menos que não te importes com os rótulos e, menos ainda, com os juízos afivelados pelos outros.) 
Deixar andar é o hedonismo militante que subiu na categoria das modas. Diremos: hoje, o máximo que se consegue é procrastinar – o que, por si só, já é massuda empreitada: assim como assim, os adiamentos exigem um esforço intelectual, na exata medida em que é preciso obnubilar o malogro de um prazo não acertado e, depois, impõe-se a hercúlea tarefa do adiamento, o que, por sua vez, exige um prazo que se suceda ao prazo de que entretanto se perdeu o vestígio. 
Deixar andar: as exigências (do domínio da interior predisposição para essa cultura) são aves raras. Homessa: se anda o mundo inteiro em demanda do holístico hedonismo, que cobre todos os lados da existência cuja existência se possa supor, por que hás de ser dissidente? Por que teimas em manter elevada a fasquia das exigências, mesmo que invoques a autoexigência como estalão que te conduz? Os outros não têm culpa da tua autoexigência. Não podem ser vítimas da muito elevada fasquia que dizes ser a tua interior bitola. Os outros são diferentes. Todos são diferentes de todos. A exigência que dizes ser teu sextante só a ti se pode aplicar.
O tempo é a líquida condição que não tolera apressamentos. Que propósito existe na monástica sinecura que aos olhos outros mais parece uma reclusão, como se um chicote estivesse constantemente adejando sobre o dorso à espera da primeira contrariedade, da primeira oportunidade para “deixar andar”? Não é tortura – diz-se – o malogro das juras alinhavadas a jeito da exigente aprovação de si mesmo. Talvez seja melhor deixar a maré fazer o seu caminho. Nadar no sentido contrário é uma canseira que melhor aconselha a “deixar andar”. 
Lembrete para memória futura: a preguiça militante impede os sobressaltos apascentados pela exigência interior.

23.5.18

Diplomacia narcísica


Ty Segall, “Despoiler of Cadaver” (live in KUTX98,9 Radio), in https://www.youtube.com/watch?v=xl2fPOnVB_8
Há aqueles apoderados do super ego que não se contentam com a menor das medidas. Exaltam-se a toda a hora. São predestinados. São diferentes. São melhores. São referência e exemplo. Convocam o reconhecimento e o aplauso. Não se contentam com o interior regozijo dessa superior condição: a exibição imperial faz parte da exaltação interior; se os outros não são capazes de reconhecer o seu superior estatuto, de que serve que a narcísica entidade se projete para o exterior?
A diplomacia padece desta patologia. Perguntem ao ministro e a diplomatas de carreira e são céleres a inventariar as proezas pátrias. Não percebi se serve para ostentar divisas, no pessoal comprazimento de se acharem ungidos pelo bastão das políticas corretas, ou se é uma projeção versátil para fidelizar apoios e besuntar o dorso necessitado com uma dose, uma dose que seja, de orgulho pátrio. Se a última for a hipótese a considerar, o ministério é muito mais dos negócios internos do que dos negócios estrangeiros.
O pior, é que o discurso acontece em circuito fechado. É uma farsa, por omitir os termos de comparação. Somos fautores das proezas diplomáticas de raiz exaustivamente enunciadas, mas ninguém investiga se ficam aquém ou além das proezas diplomáticas dos países rivais. (E, neste domínio, por mais que contem os eufemismos da linguagem codificada e devidamente medida dos diplomatas, todos os países são rivais a partir de um certo ponto.) É um cortejo de dados esmagados contra a audiência; mas é um esmagamento pedagógico, com o propósito de arrancar um aplauso, ou com o propósito de a audiência sair da audiência e apaziguar as dores por ocasião das dúvidas existenciais acerca da pertença e da identidade.
Há um sentido pueril em tudo isto. O narcisismo diplomático arregimenta lealdades dos que estejam enfeitiçados pelo desfilar das proezas, mas diz pouco sobre o resto – e o resto conta mais nestes cálculos. É pueril porque se assemelha à pose infantil dos que estão enfeudados num super ego e precisam de exibir, a bandeiras destravadas, o viço do orgulho próprio. É infantil porque sente que precisa de advertir a audiência para o óbvio, a menos que se duvide da capacidade de análise das pessoas, assim substituída pelos iluminados da diplomacia. 
Talvez tudo isto seja o sintoma de uma doença pátria profundamente enraizada, os despojos de um império que o deixou de ser. Fomos grandes quando andamos uns passos à frente dos demais. Entretanto, sucumbimos à concorrência e deixamos de ser uma circunstância no poder do mundo. Sobrou a herança do passado. E a esquizofrénica confissão de não sabermos como caber na pequenez que somos quando dantes fomos tão maiores. 
A diplomacia, ao que parece, continua atavicamente esperançada no futuro do passado.

22.5.18

Desjeito


Jack White, “Over and Over and Over”, in https://www.youtube.com/watch?v=ShCRN3tFy80
A prova sem ser na ponta de baioneta: só é preciso ser o habitual – desastrado sem remédio, a palavra desaconselhada no pior momento possível, o gesto indevido, o tropeço no idioma e assim o idioma maltratado, um histrionismo incorrigível, a noção geral de que anda a descompasso do mundo. 
Não faz nada por mudar. Já tentou e o resultado foi pior. Exagerava no esforço mas continuava a cair nos vários ardis de si mesmo. Não precisava de algozes a espalhar armadilhas; só por ser quem era, fazia a vez dos algozes e constituía-se vítima de si mesmo. Valia que as consequências dos desastrados atos eram banais. Das asneiras não colhia grandes males. Os de fora esboçavam um sorriso largo quando eram anunciados do asnear militante. As mãos eram um repositório de desastres. Parecia tê-las untadas num qualquer líquido viscoso, tantas as vezes que as coisas que às suas mãos iam parar acabavam no chão – umas vezes sem dano maior, outras vezes estilhaçadas. 
Mesmo sendo incorrigível catedrático do desjeito, não aprendia a conviver com o predicado. Sempre que era fautor de uma desastrada coisa, ruborizava e era algum desconforto que exibia, porque os que o ladeavam não conseguiam esconder um sorriso sarcástico, um certo escarnecer do desjeito. Convenceu-se, a páginas tantas, que era irremediável, o desjeito. Tinha de aprender a aceitá-lo. Tinha de aprender a ignorar os que o escarneciam. Foi quando descobriu que podia ser mecenas da desastrada feição, reunindo semelhantes seus numa associação. Não era propósito condoerem-se em público, nem queriam a comiseração dos outros. Apenas queriam um módico de compreensão, que os outros, diferentes deles, não se servissem da óbvia desqualificativa para serem seus usurários de troça. 
Não foi preciso. Numa inesperada reviravolta (como é apanágio das modas), ser desastrado passou a constar das condições que animam o charme junto dos semelhantes que assim não são. Quem se enamorava de um desajeitado não sabia explicar – como costuma acontecer nestes preparos do amor (sente-se, não se indaga a hermenêutica do sentimento). O jogo foi virado do avesso. Já poucos ridicularizavam os desastrados sem remédio e o seu infindável rol de tremendas asneiras. Agora eram o ponto onde se ancorava a inveja. Alguns, anotando a mudança de paradigma, ensaiaram ser tutores do desjeito. Não conseguiam. Ser um desajeitado era tão difícil como ter um dom qualquer.  

21.5.18

A enseada


Mazzy Star, “Quiet, the Winter Harbor”, in https://www.youtube.com/watch?v=WBbEVzgoEhA
Os barcos descansam no mar à frente da enseada. Não a espiam; no seu descanso, porque querem refúgio da noite, homenageiam a enseada: detêm-se de frente para ela, em sinal do tanto que a reverenciam. 
Os tripulantes e os passageiros dos barcos contemplam a pulcritude da enseada. Nós, que estamos deste lado da enseada, somos parte da enseada aos olhos dos passageiros e dos tripulantes dos barcos ancorados diante de nós. A certa altura, indagamos sobre o que veem os olhos deles nesta que é a posição diametralmente oposta à nossa. “Vemos diferentes enseadas”, murmurou a tua voz, enquanto os olhos desfilam pelo cortejo dos barcos que parecem estar de peregrinação à enseada. “Aposto que eles contemplam uma paisagem mais bela do que nós – e, todavia, estamos no mesmo lugar, apenas a olhamos deste ponto de ancoragem diferente; o que pode fazer toda a diferença”, concluíste. E eu, demoradamente em silêncio. À espera que o entardecer esculpisse a luz desmaiada e ela fosse substituída pela constelação de luzes que ornamentam os barcos. Depois de um longo silêncio, contrapus: “Será que o mesmo lugar é desigual se o olharmos desde pontos diferentes?” 
O meu silêncio deu a vez ao teu silêncio. Continuámos entretidos a observar o êxtase das pessoas que estavam a bordo. Estavam maravilhadas com a enseada; talvez estivessem ansiosas para estar na nossa posição, para saberem como era sentir a enseada com os pés em terra firme. Admitimos que talvez fosse a primeira vez que visitavam a enseada. Ou, talvez ainda, estivéssemos a ser injustos com a enseada: de tão infinitamente bucólica, as pessoas não sentiam fadiga da sua beleza de cada vez que a visitassem. 
De volta à conversa entrecortada pelos silêncios que quadravam com a solenidade da enseada, disseste: “Não importa de onde nos fazemos observadores. Apenas importa o feixe de sensações que nos invade ao sermos deslumbrados pelo fausto do lugar.” Concordei. O nosso lugar era o de marinheiros sem navio, fulgurantemente arrebatados pelos contornos da enseada que, àquela hora, se fundiam com o entardecer já mergulhado na penumbra. A falésia crescia desde a praia, abraçando a enseada, tornando-se numa semicircunferência que, por sua vez, parecia abraçar-nos e aos barcos que na enseada procuraram refúgio. 
Com as primeiras iluminações a sinalizaram a noite infante, as pessoas recolheram-se ao interior dos barcos. “Devem ter ido jantar”, foi o teu presságio. “Não precisavam”, arrisquei uma metáfora: “a enseada é alimento bastante.

18.5.18

O homem sem leme


Madness, “One Step Beyond”, in https://www.youtube.com/watch?v=SOJSM46nWwo
Da má loucura: um homem outrora entronizado destroçou pergaminhos com a demencial passagem pelos dias. De cada vez que falava, o corpo enterrava-se num pântano irremediável. Ele não dava conta. Cada dia que se retirava ao calendário era um peso que arqueava sobre o seu dorso. Ele preferiu fugir em frente. Ainda não se sabe se estava convencido que não havia precipício, ou se fora o desespero que o levou a transitar por esse que era o único caminho que o aceitava. 
A cada dia retirado ao calendário, rareavam pessoas à sua volta. A sua presença tornara-se tóxica. Tudo em que tocava transformava-se em matéria inerte, morta pela sua extrema-unção. Mas continuava a não se reconhecer um deserto, a aridez irrenunciável. Passara da fronteira em que o arrependimento (se merecesse a concordância mínima dos demais) é manobra de resgate pela marcha-atrás que cauciona. Não tinha remédio. Não tinha redenção possível. Já não era por causa do asnear acumulado – esse era um capital adquirido; era pela sucessão de despautérios que o abeiravam do despenhamento fragoroso. 
Continuava agarrado ao leme que ganhara em tempos. A cegueira não contemplava uma introspeção que destilasse equívocos. Talvez por serem em rol tão abundante e por ele, ainda que agarrado a um leme que era de um navio desabitado, ter caído em negação. Convenceu-se que todos conspiravam contra ele. Era o mundo contra ele – e ele, em vingança, cavalgando na redobrada conspiração contra o mundo. Talvez não se olhasse ao espelho. Nem se escutasse quando proclamava os maiores disparates, de jaez inconfundível e sem par com outros seus semelhantes, dizendo-os como se de coisas sérias se tratasse. 
Teimava em ter o leme nas mãos, escondendo-o dos outros. E enquanto o navio assim mal tripulado estava no limiar do abismo, ele insistia em golpes de asa que eram deslumbrantes manifestações de loucura – da má loucura. Por mais que à sua volta houvesse deserções a eito, não se desagarrava do leme. A negação patológica impedia-o de contemplar o quadro mais belo de todos: ele já não tinha mão no leme, mas ainda continuava convencido que era suserano. 
Era uma questão de tempo até ser defenestrado. 

17.5.18

Hoje apetece-me mousse de chocolate


Wand, “Pure Romance”, in https://www.youtube.com/watch?v=NdD5_UMUxDI
Apetece-me: invadir uma estufa onde se cultivem framboesas e colhê-las na avidez do meu apetite; sulcar a corrente de um rio indomável, saltando entre as rochas que irrompem das águas frias; ir ao teatro e sorver as palavras demiúrgicas da peça, mesmo sabendo que àquela hora não há função (minha será a empreitada de substituir o enredo); escrever um texto sem adjetivos e frases longas, na difícil tarefa da simplicidade; hoje apetece-me mousse de chocolate, nem que seja daquelas empasteladas que advêm de preparados artificiais.
Hoje apetece-me: desapetecer o dia, deixando o corpo estendido na languidez, aprisionando o pensamento ao nada; fazer malas e depois desfazê-las (como se houvesse necessidade de adestrar a arte de emalar); fincar os pés no chão, sentir as suas raízes, sentir as veias a latejar com a emoção de uma pertença; pegar num livro que pertence à estante e, ao calhas, abrir numa página, ler essa página três vezes seguidas e depois reescrevê-la sob o olhar contundente de um crítico manso; almoçar na Casa Guedes; colher uma camélia prematura e deitá-la à lapela; hoje apetece-me mousse de chocolate, apesar do aluvião de calorias que aí vem.
Apetece, ainda: trazer do entardecer a maresia que se levanta; enfeitar o dia sobrante com estrofes cerzidas no alpendre da música; obedecer aos apetites vulgares e não reprimir os apetites implausíveis; ficar acordado pela noite fora, caminhando nas ruas desertas; desenhar a lua numa folha de papel subtraída ao amarrotado; dizer palavras que não sabia existir, jogando com a sua musicalidade; deitar fora objetos guardados no baú de recordações, sem critério; fazer uma tatuagem (mesmo sabendo que a meio da madrugada não há estabelecimentos comerciais abertos – ou, talvez, por essa razão); hoje há de apetecer, quando for hora a preceito, uma boa colherada de mousse de chocolate, mesmo que seja rafeiro o cacau usado.
Apetece, hoje: encher duas páginas inteiras com rimas simplistas; recomeçar aquele livro do Saramago que fechei na página vinte e sete (por causa da ausência de pontuação); escrever às divindades supostas, perguntando por seu paradeiro; telefonar a um amigo, só para saber se está bem de saúde; oferecer uma nota gorda ao primeiro mendigo; estacionar no aeroporto e apreciar a coreografia dos aviões ao aterrar; desatar preconceitos antigos, esvaziando-os por dentro até que percam sentido; meter as mãos na terra molhada logo após a chuva e sentir o aroma inconfundível (para desafiar a pertença que tumultua as veias); hoje hei de comer uma mousse de chocolate, de preferência gourmete preparada segundo uma receita original.
Hoje apetece-me isto e o mais que possa vir no sargaço do improvável. Porque o mundo, lá fora, está impossível de aturar.

16.5.18

O jogo das improbabilidades (ou: catorze mandamentos)


Iceage, “The Day the Music Dies”, in https://www.youtube.com/watch?v=14eJfs8O--Y
1. Não conto as medidas vazas dos dias pretéritos. Não conto os dias pretéritos. Não conto com os dias pretéritos.
2. Posso dizer o indizível, na militância provocatória – mesmo que seja para agitar as consciências adormecidas, mesmo que não quadrem tais proclamações com a matéria nutriente que corre em minhas veias?
3. Só há um domínio que entra no pessoal cativeiro de intolerâncias: a intolerância. 
4. Posso provocar o bem-estar e as crenças dos outros? Posso fazê-lo, sem que os outros entendam a provocação como desrespeito? Poderão os outros, tão ofendidos com o que alegam ser falta de respeito, considerar que se lhes fizesse a vontade estava a sucumbir à sua vontade, por sinal oposta à minha, e que na oposição de duas vontades não é egoísmo fazer vingar a minha?
5. Tenho nas mãos um mapa em branco. Posso desenhá-lo. Ou posso deixar que o vento que vier de feição traga os utensílios e o desenhe por mim.
6. Em matéria de costumes, não tenho nada a dizer sobre os que impendem sobre outrem. Admito que haja reciprocidade metódica.
7. No verosímil quadro das incumbências, não há registos. Os planos são uma distração. Consomem a imaginação, a eles amordaçada, sobrando uma impenitente espada sobre a cabeça dos sitiados pelo totalitarismo dos planos.
8. Gosto de idiomas. Falo poucos. Adoro a sonoridade dos idiomas ininteligíveis.
9. Prometi que deixava de olhar tantas vezes para o relógio. Apesar de os considerar obras de arte – e aqui apenas importa a estética, não o que os relógios traduzem às escondidas. 
10. Também prometi que desaprovava as juras, por invariável propensão a elas não poder ser leal (ou porque as circunstâncias conspiram contra as juras, ou porque as juras acabam imersas na irrelevância).
11. Prefiro uma viagem a cinco idas a um restaurante. 
12. Não sei o que será: temor do envelhecimento, ou a usura da estética e a insaciável sede de atualizar o conhecimento? Continuo a ter assinatura diária na atualização da música. (O mesmo é válido para o cuidar do corpo.)
13. Um dia sem o mar por perto do olhar é um dia amputado.
14.  Desconheço o sentido da metafísica. Pelo que me é dado a saber, a solidão da alma é critério preferível.

15.5.18

Adivinhar o passado


Blur, “Tender”, in https://www.youtube.com/watch?v=SaHrqKKFnSA
Ponto da situação: ainda têm serventia os oráculos que se jogam incessantemente na boca dos arautos da prospetiva? Eles deitam-se na adivinhação do futuro, empreitada arriscada e, dir-se-ia, vã. E insistem, por mais que o tempo vindouro seja o desmentido da sua impresciente atividade, por mais que esse seja o tempo onde vem selado o seu malogro. 
Os possuidores de oráculos passam uma esponja sobre o passado quando o futuro, em sua forma presente, trata de os contradizer. Têm memória seletiva; e se há de algo que se podem ufanar, é a desonestidade intelectual: só quando improváveis coincidências se conjugam para mostrar o devir em rima com o que pressagiaram, é que se erguem de peito feito e reclamam créditos. Essas adivinhações são acasos. Não têm a regularidade que tutele a condição invocada. Os inverosímeis profetas não conseguem saber do futuro porque nem o futuro sabe como virá em sua revelação. E se nem a posteridade cuida dos seus próprios termos, os simples mortais que querem saber mais do tempo vindouro do que o próprio tempo vindouro só podem ser tidos na conta de aldrabões refinados, senhores de uma impudicícia que é pergaminho para a sua (não) consideração entre os demais.
Devia existir um observatório dos profetas. Seria sua função adivinhar o passado que fosse emolumento perentório dos adivinhadores, a prova dos nove da imodéstia dos seus oráculos, consagrados que são a embainhar a batuta da impossibilidade do futuro. O observatório teria de repristinar as profecias seladas pelos impenitentes aldrabões. E depois faria o favor a toda a gente (menos aos ditos cujos) de cotejar as profecias com o tempo já resguardado do futuro, o tempo em que as profecias deixariam de o ser por ser o tempo que as desmente. Seria possível atestar que é mais fácil adivinhar o passado do que o futuro – o que não encerra nenhuma conclusão surpreendente, a não ser na própria formulação: não é habitual adivinhar o que já teve lugar na linha do tempo. Mas é útil, para expor profetas sem vergonha.
No epílogo das suas funções, o observatório dos profetas faria um lapidar inventário de atividades, ditando o encerramento dos possuidores de oráculo – ou, se teimasse o impudor dos ditos cujos, alimentada por um punhado de seguidores que se esquece dos termos presentes e apenas se interessa com a efemeridade do tempo vindouro, arranjar-se-ia um lodaçal qualquer para os deixar nele a vegetar.

14.5.18

Manifesto (língua franca)

Beirut, “Elephant Gun”, in https://www.youtube.com/watch?v=SWSz_PAfgNc
A promessa: não faço promessas. As contingências podem-se jogar contra as promessas, que exibem seus frágeis alicerces. É mais sensato ir jogando os dados à medida do sol que se põe, sem revirar os mapas com os dedos perfumados por boa vontade, à mercê do voluntarismo que se atraiçoa na curva não esperada. 
Prefiro a língua franca. Os modos estabelecidos em cada palavra, sem estarem agrilhoadas à vulgata, sem serem caução de estética predeterminada. Não me importam as éticas. Não considero as considerações ardilosas, apenas ditadas pelo pomposo protocolar. Tenho em mim os rudimentos de uma língua que se forja, franca: uma língua que não foge à responsabilidade, uma língua que cultiva a musicalidade das palavras, a língua que busca sentidos reinventados nas palavras como penhores da sua própria reinvenção. Mas sempre palavras que não fogem de si mesmas, nem adulteram significados nas entrelinhas próprias de quem não consegue encarar nos olhos quem seja seu interlocutor. Coloquiais ou singelas, fermentando esta língua que se ambiciona franca – a língua entendível, a língua que desiste dos equívocos e dos significados ambíguos; mas a língua que não desiste das metáforas. 
Pode esta língua ser franca a partir de quem é seu tutor. Outro tanto pode não acontecer quando encontra cais nos seus destinatários. A língua franca não pode cuidar dos mecanismos da comunicação. E não pode reverter em favor dos que transitam no limiar da agitada hermenêutica. O arquiteto da língua franca invoca, em sua defesa, que a língua franca que promove parte de alguém que está ao nível da mediania. Não se justificam os embaraços que os destinatários possam usar para fugirem ao entendimento. É domínio que extravasa os limites da língua franca. Ao património da língua franca apenas importa a sua semântica. A linhagem não se intui consensual. Não é essa a vocação. 
Através da língua franca, sucedem-se as metáforas que não são esconderijo das palavras nem celebram um refúgio do que as orações querem enunciar. Seja desta língua franca o lugar não ermo de onde as transações de sentimentos e sentidos possam fluir sem embaraços. E se à língua franca sobrar um lugar assim reconhecido, recusem-se os gabaritos e as celebrações: a língua franca é modesta, não quadra com as manifestações auto-congratulatórias. A língua é franca por agilizar o desejo de a usar (e esta proclamação pode encerrar um duplo sentido).

11.5.18

Deixei as túlipas na jarra


Mogwai, “May Nothing But Happiness Come Through Your Door”, in  https://www.youtube.com/watch?v=t1oxICtQh_A
Não há problema. As túlipas não vão secar. Nem nos dias de ausência. A jarra ficou provida de água bastante. As túlipas hão de continuar a medrar, hão de continuar a ser manancial de um ar puro, exalando toda a sua beleza, enchendo a casa com as suas pétalas carnudas – como se fosse possível as pétalas destacarem-se dos caules que as aprisionam e multiplicarem-se pela casa. Podíamos chamar à casa a casa das tulipas. Das tulipas azuladas, em rima com os dias soalheiros que se compõem e que, depois da chuva do calendário, entram pela pele e nos projetam uma renovação que não podemos desdenhar. 
Podia ter-me esquecido das túlipas imarcescíveis. Podia ter-me esquecido de acomodar as tulipas na jarra que as serve, ficando espalhadas em cima da mesa, à espera que a sede as consumisse num leito de morte. Não houve esquecimento. Sabemos, agora que digo que deixei as tulipas devidamente acondicionadas na jarra, que assim que abrirmos a porta de casa ela se encontra florida à nossa espera. Por todos os cantos, uma irradiação floral que nos atira com oxigénio à cara, para que nunca sejamos reféns da apoplexia. E, através das tulipas que glosam o sol, nas pétalas que se abrem generosamente à luz solar, saciarmos as outras sedes que nos acometerem. Para depois seremos os guardiães do tempo, recusando a sua usura, perpetuando as tulipas como quadro centrípeto da casa. 
Às tulipas, faremos uso em harmonia com a sua altivez. Não seremos seus servidores; às tulipas fica cometido esse papel: podemos rasgar uma tulipa, moldar a matéria das pétalas como se fosse plasticina e dela criarmos artefactos que ornamentam os nossos corpos. Podemos suplicar a uma tulipa que forneça um mapa da felicidade. Não que precisemos, pois já somos tutores de uma felicidade sem raiz quadrada nem número por limite. Não que precisemos; mas não é inglório perguntar à tulipa, assim destacada, se o mapa que nos lega quadra com a felicidade que é nosso ingrediente. 
Esperamos a resposta da tulipa genesíaca. Um daqueles atos predestinados. Fazemos a pergunta e intuímos a resposta: temos a certeza da felicidade de que nos compomos. É das poucas certezas que podemos trazer no embaraço das certezas. E nem carecemos de selo exterior, pois a felicidade de que somos tutores não é apreciada por mais ninguém no exterior de nós. 
Talvez queiramos dar uso às tulipas que estão na jarra a emprestar graciosidade à casa; ou as tulipas personificam a felicidade com que tingimos as paredes da casa. Um mero pretexto, como se fosse precisa a bênção das tulipas que ficaram devidamente acondicionadas, e com água a preceito, na jarra. 

10.5.18

“Eu gosto de escândalos”


Protomartyr, “Wheel of Fortune”, in https://www.youtube.com/watch?v=has3qKCRo0A
(Ficha número xxxxx/1981, do cidadão Xxxxxx Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, depositada no arquivo central dos serviços secretos)
“Eu gosto de escândalos. De todos os géneros. Daqueles que vociferam ideias implausíveis, só pelo prazer de ver os situacionistas de todas as estirpes, dando azo à colérica coligação que patrocina os bons costumes, a saírem da toca e, irados, rebaterem um por um os argumentos que são tão implausíveis como a teoria em que se alicerçam.
Eu gosto de escândalos. De provocar as pessoas, desafiando-as a libertarem-se das algemas que tolhem a individualidade. E, ato contínuo, mesmo que se insurjam em coro contra mim, não me importo: ao menos abjuram a letargia que os apequena.
Eu gosto de escândalos. Gosto de dizer o contrário do que penso (mas não sei ao certo o que penso, pelo menos neste momento) e assistir, sentado na primeira fila da plateia, aos iracundos defensores do contrário do que proponho atacarem as ideias que alinhavo. Admito o prazer sublime de vê-los de atalaia à protegida normalidade, soltando os mastins esfaimados que desejam um pedaço da minha carne, mesmo sem saberem que aquilo que proclamo não corresponde ao meu pensamento (seja ele qual for, que não tenho a certeza de ser o que é).
Eu gosto de escândalos. Da promiscuidade, por exemplo. De provocar a volúpia mal disfarçada de senhoras cobertas pelo manto moral da igreja. De provocar o suor no sangue e depois deixar a febre ficar sozinha em seu canto, com a promessa de posterior investida. Gosto de tresandar a imoralidade e de ser apedrejado pelos vícios que não oculto. 
Eu gosto de escândalos. Gosto de infundir polémica intelectual que, não fosse o muito tempo livre dos intelectuais e uma inclinação para polemizar gratuitamente, nem saía dos currais da divergência sanável. Gosto de desafiar a agilidade dos eruditos, de os ver defendendo suas virginais damas em esgrimida prosa gongórica, e de pontuarem os argumentos de autoridade com ataques pessoais que julgam serem desqualificativos da minha pessoa. Engasgo-me com tantas gargalhadas ao vê-los digladiarem-se já em minha ausência do palco da polémica. 
Eu gosto de escândalos. Porque gosto de ser julgado como pária de todos nós. É julgamento que não confere punição (a não ser a que mais me contenta: ser marginalizado das franjas do aceitável, arrostando o rótulo de sociopata). 
Eu gosto de escândalos. Porque detesto concordar, num onanismo coletivo que nos ponha a bolçar mínimos denominadores comuns, pela homenagem ao princípio geral da convergência que se alinha na antinomia das diferenças (vistas como matéria passível de ostracização).
Eu gosto de escândalos. Porque sim – e este é o meu argumento definitivo.”

9.5.18

As consecutivas chaminés que armadilhavam a tenência dos tempos e condenavam as crianças à madurez extemporânea


Zeal & Ardor, “Don’t You Dare” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=BFGU0g1LA9I
Era uma idolatria excessiva: noctívagas enseadas, escondidas das pretensões avisadas, abrigavam os seres cultivados como deuses, ou pelo menos assim por eles próprios entendidos ao olhar outro. Não havia nada a fazer. Os pedestais eram frágeis como a casca fina que protege os ninhos de pássaros. Ao menor contratempo, era toda uma imagem autoconstruída em estilhaços, numa reificação à força, uma aterragem forçada e dolorosa.
Tudo isto fazia lembrar aquelas paisagens severas, mas com predicados encantatórios para cineastas: as paisagens industriais, a sucessão de chaminés arrojando doses maciças de fumo negro, como os seus danos diminuíam o ar doméstico e, mesmo assim, havia artistas que prestavam homenagem à intensa estética do quadro. Não se importavam com os vestígios acumulados na prova da intemporalidade, como as sucessivas camadas de poluição eram o algoz das gerações futuras, quando as terras deixassem de ser férteis, o ar se tornasse irrespirável e aquele lugar passasse a ser inabitável. Todo o peso da infâmia cairia sobre o dorso de crianças inocentes, provavelmente ignorantes do sentido de uma poluição castradora. A imagem derradeira das chaminés seria a sua capitulação, logo a seguir ao êxodo forçado e ao exílio das crianças, condenadas a serem adultas antes do tempo. O mal já estava feito.
A idolatria que se ensimesma tropeça nestas provações. Os demais são indiferentes. Pois os fumos movimentados pelas chaminés têm ancoradouro noutro lugar. Ninguém sabe se os habitantes desse lugar aceitam o papel que lhes está reservado pela decisão unilateral da casa de partida, quando encomenda a algures os fumos indesejáveis. Neste estado de coisas, há uma guerra civil permanente entre os diferentes lugares, entre as diferentes personificações que se digladiam com um manto de silêncio como pano de fundo. 
A sucessão de chaminés e o seu rasto devastadoramente silencioso é a vergonha em que se decompõe a idolatria cultivada. Diz-se, no âmago colonizado pelo ensimesmar: os outros não importam. Até chegar o momento em que um dos outros é necessário e a liga metálica do oportunismo, depois de decapado o verniz fátuo que cobre a veneração, alimenta a infâmia em que se consome quem do outro precisa. Talvez não tenham sido adultos antes do tempo, como se supunha. Talvez não tenham crescido nem com o beneplácito do tempo. Foram poupados ao tempo. Agora, não sabem ser adultos.

8.5.18

O epicurista improvável


Dead Combo, “Waiting for Nick at Rick’s Café”, in https://www.youtube.com/watch?v=ywAPyZ308os
De fonte segura: era exatamente o contrário do que assinalava a sua presença em público. Acreditava-se na sua erudição, nos muitos fóruns em que se fazia notar, na militância desmultiplicada em associações cívicas, nas artes, em que também tinha lugar próprio, no discurso eclético e palavroso. O ativismo frenético só podia ser compatível  - dizia-se, de fonte segura – com poucas horas de sono. 
Era tudo uma máscara. Queria que dele pensassem ser quem a exteriorizada figura aparentava. Fazia de propósito. Garantia-lhe notoriedade, alguma autoridade intelectual que vinha a jeito para contornar polémicas, pois não devem, os investidos de autoridade intelectual, provar os argumentos que terçam em polémicas. Também garantia alguma respeitabilidade, sendo levitado ao degrau de onde espreitam sobre os demais, com sobranceria a preceito, os senadores. As sinecuras que perfilavam privilégios de tratamento eram superiores à sua vontade. Por mais que teorizasse sobre as “virtudes republicanas”, sobre a igualdade como destino a prazo da humanidade; as ideias não ficam mal a quem as lega ao conhecimento, mesmo que desse papel não irrisório subjaza um estatuto de escol.
No seu íntimo, que não mostrava a ninguém (não fosse sua escolha uma reclusão monástica), era tudo na antítese do que exibia a abundante presença pública. Era epicurista. Se dele se descobrisse tal faceta, adivinha-se o sobressalto que a revelação causaria. No seu íntimo, desligava da corrente elétrica a que parecia perenemente ligado. Não lia. Não via televisão. Não se importava com as ideias que eram atiradas, em seu perfeito contraditório, para a arena onde eram adestradas. Não escrevia uma frase que fosse. Dormia dez horas por dia. E nem com a morte se importava: um insolúvel agnosticismo não o amedrontava diante da morte e nem testamento deixara – os distantes sucessores que resolvessem o legado. 
A epiderme de epicurista improvável era a válvula de escape para a condição da visibilidade pública. Sabia que tinha um desígnio: fazer da presença aos olhos dos demais o oposto da intimidade que reservava do olhar alheio. Ninguém sabia do seu incorrigível lado epicurista. Como perseverava em esconder o lado íntimo do olhar alheio (ou não fosse ele, por definição, íntimo), provinha na abundante presença pública a antítese do que se reservava a ser na fortaleza que escondia de toda a gente. Pelo tempo fora, sempre guardou a dicotomia de personalidades. 
A certa altura, ficou apreensivo. De tanta dicotomia de personalidades, não sabia qual delas (e se alguma delas) correspondia ao seu eu. Já não sabia se era de esquizofrenia que se tratava, ou se conseguia conter dentro de dois herméticos hemisférios personalidades que gravitavam num contraste tão perturbante. O epicurista venceu o braço-de-ferro: a dúvida existencial não tem lugar na medula de um epicurista. Depressa lhe passaram as dores existenciais e continuou, mas em segredo, a ser lídimo epicurista.

7.5.18

BTT


Trickly ft. Selah Sue, “Sun Down” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=LWqXWzLJCxE
O óculo monolítico ata as asas e impede voos promissores. Condene-se, pois, o monolitismo ao degredo. Em sua substituição, uma BTT – uma bicicleta que anda em todos os terrenos. Pois as letras assimiladas devem ter origem na diversidade. De outro modo, o afunilamento da peritagem é um caminho que acantona o pensamento, aprisionando-a à mesmice. 
Para não medrar em sua pequenez, nem se adestrar em cálculos que transitam pelo de sempre, pega-se na BTT e palmilham-se múltiplos terrenos. Vão mudando, um dia atrás do outro, para devolver a estafa à procedência – à procedência onde campeiam os homogéneos interesses. Se as circunstâncias exigem a perícia como condição funcional, a escolha da perícia não pode prejudicar a variedade de conhecimentos. Os heterogéneos conhecimentos podem ser um legado para a própria perícia que a função exige: entrecruzam-se os saberes, aprendem uns com os outros, põem-se à conversa sem nenhum deles encerrar a porta aos demais, servem de teste surpreendente às teorias ancoradas na área pericial, tudo num holismo que se abraça a todos os terrenos a que se pode abraçar, sem recusar terrenos ainda por explorar. Pois quando sabemos de cor as cores de um chão amplamente percorrido, a letargia toma conta do pensamento e a imaginação soçobra aos pés do entorpecimento. Quando sabemos de cor as cores de um chão amplamente percorrido, o desmazelo, próprio de quem se convence dos pergaminhos de perito, impede que o olhar se inquira fora da caixa – fora de uma caixa que se torna cada vez mais exígua, apequenando o próprio pensamento.
Na posse da BTT, o critério alarga o olhar, que transborda para outros caminhos, enriquecendo a linguagem com o vocabulário e o raciocínio dos novos chãos apreendidos. Se não, torna-se impossível fazer desvios que desarticulam as agendas, desvios que, por serem inesperados, não vinham no roteiro. Na posse da BTT, as próprias agendas perdem serventia. O melhor é deixar vir às mãos o sedimento de cada maré, sem virar o rosto aos caminhos por conhecer, nem desistindo, à primeira contrariedade, dos chãos que deram luta depois do primeiro conhecimento. 
A BTT aprovisiona o tirocínio do pensamento em sua rica diversidade. 

4.5.18

Os alcoviteiras


Thundercat, “Them Changes”, in https://www.youtube.com/watch?v=GNCd_ERZvZM
(Não é erro, a falta de concordância de género entre o substantivo e o artigo definido)
                  Nem as togas diluem o “espírito de porteira”. Um togado, nos bastidores do palco onde se apresta, ele e os demais togados, a ir a cena, faz conversa de circunstância com os restantes. A língua viperina não precisa de atalaia, naquela sala que tem as paredes seladas. O togado tece considerações sobre os últimos rumores do microcosmos académico, ao jeito de uma banal revista cor-de-rosa. 
Dois dos outros togados entram na converseta, deixando o ar circunspeto ao darem conta da oportunidade para afiarem a língua. A excitação sobe uns graus quando o togado que deu à ignição comenta que um dos seus pares (não presente, como é óbvio: a lição primeira, é só falar nas costas de quem está ausente) se tinha perdido de amores por uma também par de todos eles. A novidade, era a diferença de idades: a consorte é muito mais nova que o seu insigne par. O que motiva alguma inveja no comentário restante. (Não fosse dar-se o caso de os togados em animada troca de impressões mundanas serem sexagenários, estabelecidos pais de família há um ror de anos, e a instituição onde têm responsabilidades ensine um catecismo que não tolera desvios ao santo matrimónio.) A converseta soou a pura inveja do noutras ocasiões togado que conseguiu seduzir uma também par muito mais jovem. 
Não é a cobiça (hipotética) que vem ao caso. O que importa, é descobrir que gente com pergaminhos intelectuais descai para o chinelo da inconfidência e faz conversa, animada e demorada, que podia vir em forma de “prosa” numa revista que documenta as frivolidades que se expõem na passadeira onde desfila a “nata” da sociedade. São como porteiras sem terem portas para guardar – a não ser as portas que se entreabrem à sua imensa curiosidade leviana. Para os titulares do pensamento igualitário, não seria surpreendente a revelação (para mim, foi-o): assim como assim, devemos viver num lugar onde não são toleradas castas ou elites, em nome do sacrossanto valor da igualdade. 
Talvez sem o saberem, os togados fizeram a vontade à cartilha do igualitarismo. Sendo alcoviteiras assanhadas não reproduziram as diferenças de pergaminhos, deixando a falar, por sua própria voz excitada, a indiferença entre os togados e as porteiras que se cansam no dia a dia de tanta prosápia trocaram com as circunstantes. Talvez sem o saberem, contudo: pois os togados fazem repousar parte da sua autoridade intelectual no atávico ritual das togas em sessões que exigem um cerimonial que também celebra a elite a que pertencem. 
Por um momento, dei-me absorto num (possivelmente não surreal) pensamento: e se as porteiras vestissem togas e os togados se passeassem com uma esfregona a tiracolo?

3.5.18

Sonha comigo


Julia Holter, “Betsy on the Roof” (live at Pitchfork Music Festival) in https://www.youtube.com/watch?v=NUfBEf-cV6I
Sonha comigo. A dormir. Ou quando estamos ambos acordados. Quando estamos por junto. Ou quando há uma distância que não nos separa. Sonha comigo. Serve-te das minhas veias e navega em sua ebulição, para adornares os teus, meus sonhos uníssonos. Pois sabemos que os sonhos se encenam em seus deslimites. Cabe-nos, tutores dos sonhos juntos, empurrar os deslimites para o mais longe que seja possível, para telhados só por nós conhecidos. Somos ambiciosos adestradores de sonhos e contentamo-nos com a empreitada.
Sonha comigo. Como quem diz: sonhemos os mesmos sonhos juntos, sonhos feitos ímpar por sua fusão na quimera dos nossos corpos. Sonhamos com as cidades a que fomos. Sonhamos com a música que já vimos tocada. Sonhamos com todas as peças de teatro de que fomos espetadores – mas sonhamos, sobretudo, com a peça de teatro que montámos num palco que nos é próprio e com as peças de teatro que forem o fruto da nossa vontade no devir. Sonhamos que os sonhos não são a ilusão de um sonho; sonhamos que os sonhos são matéria tangível, apropriados pelas nossas mãos, transfigurados no lugar em que somos nós. 
Sonha comigo. Ao mesmo tempo. Comunga das sementes em que prosperam os meus sonhos, faz deles teus. Prometo retribuir e em teus sonhos medrar a minha quintessência. Prometo sonharmos com as cidades que ainda temos por visitar, com toda a música que há de ser altar a nossos pés, com o teatro que continuamos a encenar, num novelo imorredoiro, muito para além da finitude dos corpos. Prometo que havemos de sonhar teatros que ainda não imaginamos.
Sonha comigo. No entretecer das mãos, no lânguido olhar que se funde, nas varandas que trazemos no regaço, nas flores que colhemos dos dedos suados, da chuva que amacia os rostos. Aceitamos os ocasionais, implausíveis pesadelos que se enxertam nos sonhos de outra lavra; conduzimos numa estrada estreita e não temos a total intendência das coisas que pertencem ao domínio dos sonhos. Pois é no pesadelo também junto que nos desembaraçamos mais depressa das teias em que se tece. Para depois deixarmos desimpedida a vasta planície onde se congeminam os sonhos que temos para sonhar juntos. 
Sonha comigo. Sabemos que os sonhos se transferem para a casa em que somos imperadores. Pois somos nós os seus fautores; somos nós que, com a convicção de um uníssono singular, damos ordem para a verificação dos sonhos. Sonha comigo. Pois juntos sonhamos o idílico algébrico do infinito, despidas todas as mortalhas anciãs, recusados todos os embaraços boçais. Para só ficarem as estrofes sem limites que costuram a imensidão onde, terraplanados, os sonhos se fruem no campo caiado dos corpos abraçados. Abraçados aos sonhos que são segredo que guardamos a sete chaves.

2.5.18

Dentes de leão


Mercury Rev, “Holes”, in https://www.youtube.com/watch?v=Y_2c_E_c-U0
Esta “base inconcreta da loucura”, este farol exaurido, esta combustão que arde em seu próprio fogo: os covardes não se imolam em fogo nenhum, muito embora se lhes solte, amiúde, a língua de trapos da denúncia e se esqueçam que não muito tempo antes se desfaziam em públicas genuflexões diante dos agora denunciados. 
Há nesta covardia um abjeção total, o enfraquecimento dos covardes sem que o consigam apreciar, pois convencem-se, do púlpito do anonimato (que costuma cobrir as denúncias), que são tutores de uma imensa coragem. Não sabem, por falta de cognição, que são cadáveres de si mesmos, envoltos na mortalha de uma covardia disfarçada de bravura. Espetam os seus dentes de leão nas personagens que se põem a jeito do papel de vítimas sacrificiais. O que inquieta é o duplo rosto dos que se emaranham nos corredores do conhecimento, os que jogam com a informação como fonte de poder, e atiram as vítimas sacrificiais para a arena do ultraje público, quando dantes foram elogiadas, respeitadas, convidadas, glosadas, procuradas para a obtenção de sinecuras e de benesses. 
Agora, por uma cósmica conjugação de circunstâncias, caem em desgraça mercê dos dentes de leão das alcoviteiras que transacionam conhecimentos e influências. São, esses dentes de leão, matéria putrefata. O espelho irremediável onde se incensa, mas lentamente, um espírito comum. Não se dirá que tudo fica adulterado: os soezes tráficos de influências, que jogam com pessoas como se fossem meros peões num xadrez jogado, são matéria habitual, um património a caminho de se tornar genético. Não proponho lapidações, nem abjurações. Deixo para os lugares próprios os julgamentos, pois a esses lugares pertence a correspondente legitimidade. 
Dirão que se não fossem os covardes que transacionam personagens para os altares sacrificiais, se não fossem as suas anónimas malsinações, crimes ficariam fora da alçada do conhecimento e a usura teria prémio através da indiferença perante o que é impossível conhecer. Não me convenço. Não gostaria de amesendar com um destes justiceiros, por não poder garantir a segurança de meu paradeiro futuro. São como mastins que aferroam seu dente pútrido, como meliantes que delinquem no furto de carteiras alheias. O pior dos males, é que são rostos sem rosto, gente possivelmente comum que anda entre nós, gente malnascida que não hesita em transacionar outros, gente que se alambaza, com um prazer obsceno, a assistir ao público julgamento de que foram detonadores.
Os fins não são garantia de quaisquer meios. Dispenso estes covardes de algibeira que pertencem ao mais baixo estalão de todos nós.