Lena d’Água, “A Grande Festa”, in https://www.youtube.com/watch?v=WZ3yHIz2lso
“Avô:
(Tu sabes que não devo começar a carta com “querido avô”, pois não preciso de te lembrar que me és tão querido.)
Há dias, estavas na poltrona a ler um livro, e eu dei por mim a admirar-te. Cada ruga que ensina uma vida inteira, os óculos inclinados sobre o nariz escondendo o olhar cansado mas lúcido, as mãos que não tremiam, como consumias as páginas numa leitura que pareceu vagarosa, interiorizada. As pessoas costumam dizer que os velhos estão cansados. Mas tu não estás velho. Não são as rugas, ou o andar às vezes hesitante, ou o olhar que parece de alguém que só dormiu um par de horas, que de ti fazem um velho.
Vamos acabar com um mito: noto que à minha volta há uma patrulha do vocabulário que tenciona proibir determinadas palavras, por as considerar incorretas para o uso corrente. “Velho” é uma dessas palavras. Eu não entendo essas patrulhas nem o índex para onde são atiradas, arbitrariamente, as palavras assim proibidas. Por isso, e porque sei que odeias essas patrulhas e a nova geografia das palavras, sei que posso usar a palavra “velho”. És mais velho do que eu. Não há polícias do vocabulário que o possam negar e que me impeçam de usar a palavra nas nossas conversas.
Escrevo-te esta carta porque me apeteceu ter a ousadia de te recomendar um par de coisas. Sei que costuma ser ao contrário, são os mais velhos que ensinam lições de vida aos estroinas que ainda vão ter de durar muito para atingir a velhice, ainda vão a tempo de asneirar pelo caminho fora. Como aprendi contigo a ser insubmisso, vou com a ousadia por diante. Escrevo-te esta carta porque olho para ti e sinto que ainda tens uma vida inteira para apreciar. Uma vida inteira, pois o que importa é a qualidade do tempo que passa pelas nossas mãos.
Queria tanto que aproveitasses a vida inteira que ainda tens pela frente! Não me dizes, talvez para esconderes a mágoa que ainda te consome, mas sei que é como te sentisses amputado porque ainda não habituaste a viver sem a avó. A melhor prova de amor que lhe podes reservar, a melhor homenagem de que podes ser-lhe cultor, é viveres agarrado à vida como nunca. Se te apetecer viajar, viaja. Se te apetecer ir ao teatro, vai. Se quiseres ler o livro complexo que andas a prometer há tanto tempo, aproveita a oportunidade e mergulha nele. Se só queres sair para tomar um café e demorar na esplanada, fá-lo. Se queres uma experiência bizarra (daquelas que, pelos teus cânones, consideras bizarra: por exemplo, gastar uma extravagância num restaurante gourmet, só para teres a prova que aquilo não é gastronomia que se defina), não percas o ensejo. Se quiseres almoçar comigo sem pré-aviso, telefona-me. Se quiseres falar de memórias, ou das minhas consumições interiores, ou dos meus estudos e da desorientação que me persegue, ou da política que te desgosta, ou apenas do sentido da vida na sua intemporalidade, desafia-me (caso eu esteja à altura). Se quiseres ajuda para fazer um álbum de família, ou para recolher as memórias em folha de papel, ou as tuas anotações organizadas sobre as peças de teatro, os filmes, as viagens, as pessoas, serei teu cúmplice nessa empreitada.
Quero, avô, que tenhas uma vida intensa. Ainda mais intensa do que a que trouxeste até aqui. Pois – vou-te confessar uma angústia – a tua velhice não me deixa reconhecer que é velhice suficiente para algum dia ter de me despedir de ti. Tenho mais medo da tua morte do que da minha própria morte.”