2.8.19

A voz do crepúsculo (short stories #133)


Sébastian Tellier, “La Ritournelle”, in https://www.youtube.com/watch?v=30O92akDeJg
          Juntam-se as vírgulas num monte para onde são atirados restolhos. Não fraquejem as intenções. Os habituais pederastas da História arrastam seus ossos cansados contra a perenidade do tempo. Não se cansam os que cursam as aprendizagens por vontade própria. Se soubessem dos livros desconhecidos, não teriam escolhido essas artes, mas talvez outras. Mas não há lugar às contingências. Em surdina, uma voz eleva-se por cima do céu. Invade tudo em seu redor. Murmura umas palavras, indiscerníveis. Ao fim de algum tempo, desistes de tentar captar o seu significado. Tens esse murmúrio como a banda sonora que acompanha o entardecer. Como se fosse um filme, o entardecer, e tu ator arregimentado a seu favor. Podias supor que palavras escondiam o murmúrio. Dirias que era a voz do crepúsculo. Um pressentimento qualquer, em antecipação da noite que se desdobrava do crepúsculo. De repente, à imagem mental subia o retrato da escombreira para onde seriam atiradas as vírgulas. Não todas, que não pode ser o seu uso indiscriminadamente indevido a justificar a sua extinção. Apostavas que do murmúrio lânguido ecoava um protesto contra os atentados à gramática. Não sabias o que pensar. Por um lado, tens-te purista no uso do idioma. Irrita-te o uso descomplexado de vírgulas fora do sítio. Protestas contra as entorses que vírgulas desfasadas cometem à inteligibilidade das frases. Sabes que não podes fazer nada: a autoria das palavras não te pertence e não cuidas, nem cuidarás, de ser curador dos contratempos gramaticais dos outros. Por outro lado, pareceu-te excessivo aquele murmúrio constante que vociferava contra os ignaros que não sabem dar uso às vírgulas. E suspeito. Paradoxalmente, isso incomodou-te. Depois, conseguiste tirar a prova dos nove: o murmúrio era o ecoar da voz do crepúsculo, no fundo, um espelho nítido onde tu eras projetado. Saíste da noite admitindo que é onerosa a empreitada de nos vermos a partir do exterior de nós mesmos.

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